Temas diversos. Observar, pensar, sentir, fazer crítica construtiva e refletir sobre tudo que o mundo e a própria vida nos traz - é o meu propósito. Um pequeno espaço para uma visão subjetiva, talvez impregnada de utopia, mas, certamente, repleta de perguntas, questionamentos, dúvidas e buscas, que norteiam a vida de muitas pessoas nos dias de hoje.

As perguntas sobre a existência e a vida humana, sobre a fé, a Bíblia, a religião, a Igreja (sobretudo a Igreja Católica) e sobre a sociedade em que vivemos – me ajudam a buscar uma compreensão melhor desses assuntos, com a qual eu me identifico. Nessa busca, encontrando as melhores interpretações, análises e colocações – faço questão para compartilhá-las com os visitantes desta página.

Dedico este Blog de modo especial a todos os adolescentes e jovens cuja vida está cheia de indagações.
"Navegar em mar aberto, vivendo em graça ou não, inteiramente no poder de Deus..." (Soren Kierkegaard)

domingo, 31 de agosto de 2014

O dom da vida. – Texto de D. Eusébio Oscar Scheid. Muito bom!


Nesta última semana do mês de agosto um dos meus três filhos, Pedro, o do meio, fez o seu 13º aniversário. Lembrar e comemorar esta data, assim como as datas dos demais aniversários em nossa família, é, sobretudo, sentir a alegria de estar aqui, junto com os outros, e sentir gratidão pela vida. É muito emocionante poder dar e receber um abraço, olhar nos olhos do outro e desejar-lhe felicidade, isto é, querer que a sua vida seja repleta de paz e felicidade.

São momentos como esses, que me fazem pensar na vida, no sentido da nossa existência humana, e fazer ‘avaliações’ das coisas boas e ruins, que aconteceram e estão acontecendo sem parar na vida de cada um de nós, até o momento em que inevitavelmente sairemos, um por um, deste mundo. 

Penso, então, no mistério da vida, no ‘privilégio’ ou sorte de estar vivo, no dom da vida – e tudo dirige-se na direção de Deus, que é Pai/Mãe, fonte de tudo, o Mistério insesgotável, o Amor revelado-nos em Jesus.

Recordo duma frase de Ellen G. White: “Nada temos a temer quanto ao futuro, a menos que nos esqueçamos como Deus tem nos conduzido no passado." Pois é, o futuro a Deus pertence; o futuro de todos e de tudo! E é irrelevante - penso eu - se alguém crê nisso, ou não, se concorda - ou não. Tudo pertence a Deus que é AMOR. Nada mais importa.

Para acrescentar mais uma reflexão sobre o dom da vida, trago aqui, também, um texto de autoria do  Dom Eusébio Oscar Scheid. É um convite para aprofundar um pouco a presente reflexão.
Vale a pena ler.

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 O dom da vida


Por: Dom Eusébio Oscar Scheid

Raramente, nos detemos para “sentir” a vida, isto é, para meditar sobre este maravilhoso dom que recebemos de Deus. Mas é assim que aprendemos a desfrutar o verdadeiro tesouro que ela representa. Isto tem a ver com uma qualidade de vida saudável, que supera o mero hedonismo, enquadrando todas as alegrias e tristezas na climática da esperança, própria dos que confiam em Deus.

Podemos assinalar quatro tipos de posições filosóficas em relação à vida. Há os que querem aproveitá-la a todo custo: Carpe diem, como dizia Horácio. Essa era, também, a meta dos epicuristas, escola fundada pelo filósofo Epicuro nos séculos IV–III a.C.: aproveitar enquanto é tempo, porque depois vem a morte. Entretanto, o mais simples bom senso reconhece que a ânsia em degustar tudo o que existe de bom traz os maiores dissabores e, até, a doença.

Contemporâneos dos epicuristas, os estóicos de Zenão de Chipre contradiziam aquele princípio, afirmando que é preciso chegar ao desprezo das coisas, sejam boas ou más, e conquistar a tranqüilidade absoluta, que conduziria à imperturbabilidade. Existem, realmente, pessoas tão equânimes e equilibradas, que as consideramos admiráveis. São os melhores conselheiros. Porém, quem conseguiria, em todas as circunstâncias, colocar-se acima das vicissitudes, a ponto de tornar-se imperturbável? Mesmo os santos, apoiados na graça de Deus, nem sempre o conseguiram.

A corrente que mais tem resistido ao tempo, mas nem por isso sendo menos errônea, é aquela que considera o ser humano sujeito a uma sucessão de vidas, as chamadas reencarnações. Por elas, cada indivíduo resgataria o mal cometido em vidas passadas, até chegar à pureza total, libertando-se desse ciclo. Nessa perspectiva, cada um salvaria a si próprio, excluindo a necessidade do sacrifício redentor de Jesus, como nosso Salvador.

O budismo também considera isso. Tive a oportunidade de estudar algo mais sobre as oito vias, ascéticas e místicas, que essa filosofia prescreve para superar os desejos e a dor que provocam. Atingem até o último dos desejos a ser suprimido, que é o desejo do viver, enaltecendo, até mesmo, o suicídio.

Nós, cristãos, cremos que a vida é obra da Criação divina. A força intrínseca que lhe dá origem está naquilo que Santo Agostinho chamava de “razões seminais”, contidas nos diversos ciclos reprodutores, e ali colocadas pelo próprio Criador. Nisto está a diferença da nossa concepção de Criação, como obra de um Deus inteligente e amoroso, em relação a outras teorias, que tentam justificar a existência das criaturas através do acaso, sem rumo, ordem ou destino.

Não há como dissociar vida e criação, porque Deus é o Ser Vivo por excelência, doador da existência aos demais seres, especialmente, àqueles dotados de vida perene. Por isso, a Bíblia nos ensina que a vida é preciosa e bela: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31).

O maior dom da Criação foi ter dado a vida aos seres humanos, que a receberam como pessoas, livres e inteligentes. Usando uma linguagem pedagógica, numa concepção tipicamente judaica, o texto sagrado descreve Deus que modela o ser humano, criado à sua imagem, e insufla em suas narinas o nefesh, sopro de vida (cf. Gn 2,7). Assim, a vida veio a ser uma das grandes manifestações da nossa semelhança com Deus. Embora presidindo funções comuns aos vegetais e animais, a vida humana as supera, assinalando a transcendência da nossa origem e do nosso destino.

Apesar disto, nosso corpo físico, enquanto matéria, está sujeito à caducidade e à morte. Nos livros da Antiga Aliança, ainda não havia clareza quanto à vida eterna feliz, após a morte dos justos. Assim, autores inspirados queixam-se da brevidade da vida, especialmente nos Salmos e na literatura sapiencial: “Setenta anos é o total de nossa vida, os mais fortes chegam aos oitenta. A maior parte deles é sofrimento e vaidade, porque o tempo passa depressa e desaparecemos” (Sl 89[90],10). 

A Deus pertence a ciência da vida, que Ele compartilha com o homem. O Livro do Eclesiástico introduz profundas considerações sobre este tema, que considero o maior elogio que os médicos, e os outros profissionais da saúde, poderiam receber: “O Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas. Meu filho, se estiveres doente não te descuides de ti, mas ora ao Senhor, que te curará. Em seguida, dá lugar ao médico, pois ele foi criado por Deus; que ele não te deixe, pois sua arte te é necessária” (Eclo 38,6.9.12). 

A vinda de Cristo muda o rumo das nossas vidas. Isso é extraordinário! Num certo momento da história, veio Aquele que não somente quis partilhar a vida conosco, mas afirmou: “Eu sou a Vida. Vim ao mundo para que a tenham em abundância” (Jo 14,6 ; 10,10). Ele como que traz a vida nas próprias mãos, e a derrama sobre nós, sobre nossas comunidades e famílias, do mesmo jeito como Ele a trouxe do Pai.

São Pedro vai pregar aos judeus a conversão, afirmando: “Vós matastes o Autor da vida, mas Deus o ressuscitou dentre os mortos. E disso nós somos testemunhas” (At 3,15). Jesus, embora sendo Deus, quis se unir à nossa humanidade, frágil e transitória. Na força do Espírito Santo, deu-nos vida nova, gloriosa, com todo o esplendor da glória divina, através da sua Ressurreição.

Assim, Cristo nos mereceu essa mesma vida, da qual já participamos: recebida no Batismo, renovada e acrescida nos demais Sacramentos e aprimorada pela Palavra de Deus. Tão sublime dom nos foi concedido para ser degustado, desfrutado e levado à plenitude, na comunhão com os irmãos e irmãs. Afinal, a nossa vida romperá os umbrais do tempo, para consumar-se na eternidade feliz, como disse Santa Teresinha: “Eu não morro; entro na vida”.

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* D. Eusébio Oscar Scheid é cardeal-arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Foi o sexto arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro, tendo sucedido a  Dom Eugênio Sales e teve como sucessor Dom Orani João Tempesta.









Fonte: Amai-vos




sexta-feira, 29 de agosto de 2014

“Para salvar a vida humana no mundo é preciso aprender a perder.” – Reflexão de José Antonio Pagola. Muito bom!


“Se alguém quer salvar a sua vida a perderá, mas quem a perde a encontrará por mim”. (Mt 16,25)
 
Abaixo, uma reflexão muito interessante e atual do padre e teólogo espanhol José Antônio Pagola sobre o texto Mt 16, 21-27. Foi publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Não deixe de ler.
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IHU - Notícias
Sexta, 29 de agosto de 2014

Aprender a perder

A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 16, 21-27 que corresponde ao 22º Domingo do Tempo Comum, ciclo A do Ano Litúrgico. O teólogo espanhol José Antonio Pagola comenta o texto.


Eis o texto

O ditado está registrado em todos os evangelhos e se repete até seis vezes: “Se alguém quer salvar a sua vida a perderá, mas quem a perde a encontrará por mim”. Jesus não está falando de uma temática religiosa. Ele está propondo aos seus discípulos qual é o verdadeiro valor da vida.

O ditado está expresso de forma paradoxal e provocativa. Há duas formas muito diferentes de orientar a vida: uma conduz para a salvação, a outra para a perdição. Jesus convida todos a seguir o caminho que parece mais duro e menos atrativo, pois conduz o ser humano à salvação definitiva.

O primeiro caminho consiste em se aferrar a vida vivendo exclusivamente para si mesmo: fazer do próprio “eu” a razão última e o objetivo supremo da existência. Este modo de viver, buscando sempre a própria ganância e vantagem, conduz o ser humano à perdição.

O segundo caminho consiste em saber perder, vivendo como Jesus, abertos ao objetivo final do projeto humanizador do Pai: saber renunciar à própria segurança ou ganância, buscando não somente o próprio bem, mas também o dos outros. Este modo generoso de viver conduz o ser humano à sua salvação.

Jesus está falando desde sua fé num Deus Salvador, mas suas palavras são uma forte advertência para todos: Que futuro espera uma Humanidade dividida e fragmentada, onde os poderes econômicos buscam seu próprio benefício; os países, seu próprio bem-estar; os indivíduos, seu próprio interesse?

A lógica que dirige nestes momentos o caminho do mundo é irracional. Os povos e os indivíduos estão caindo progressivamente na escravidão de “ter sempre mais”. Tudo é pouco para dar-se por satisfeito. Para viver bem, é necessário sempre mais produtividade, mais consumo, mais bem-estar material, mais poder sobre os outros.

Procura-se insaciavelmente o bem-estar, mas será que não há uma progressiva desumanização? Quer-se “progredir” cada vez mais, mas qual é o progresso que leva a abandonar milhões de seres humanos na miséria, na fome e na desnutrição? Por quantos anos será possível desfrutar desse bem-estar, fechando as fronteiras aos famintos?

Se os países privilegiados só procuram “salvar” seu nível de bem-estar, se não se quer perder o potencial econômico, jamais se darão passos em direção a uma solidariedade a nível mundial. Mas não nos enganemos. O mundo será cada vez mais inseguro e mais inabitável para todos e também para nós. Para salvar a vida humana no mundo é preciso aprender a perder.



quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Recordando dom Hélder Câmara. – Artigo de Gerolamo Fazzini. Vale a pena ler!


Trago hoje para o blog Indagações-Zapytania um excelente artigo do jornalista italiano Gerolamo Fazzini*, que recorda a figura do saudoso dom Hélder Câmara, falecido há exatamente 15 anos.
A matéria foi publicada recentemente na revista Popoli e, posteriormente, também no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Para quem quiser conhecer um pouco mais ou mesmo relembrar mais detalhes sobre a vida do Dom Hélder Câmara - aqui tem uma grande oportunidade.
A presente postagem não deixa de ser também mais uma forma de justa homenagem a esse grande santo do povo brasileiro - Dom Hélder Câmara. 
WCejnog


IHU - NOTÍCIAS 
Quarta, 27 de agosto de 2014

Recordando dom Hélder Câmara


"Hoje sabemos bem que não é assim: Câmara, de fato, é enumerado entre aqueles que imprimiram uma virada decisiva à Igreja do nosso tempo. Bastem estas últimas palavras para mostrar sua atualidade: 'Se Marx tivesse visto em torno de si uma Igreja encarnada, continuadora da encarnação de Cristo; se tivesse vivido com cristãos que amavam, de modo real e de fato, os homens como expressão por excelência do amor de Deus, se tivesse vivido nos dias do Vaticano II, que reassumiu tudo o que de melhor diz e ensina a teologia sobre as realidades terrestres, Marx não teria apresentado a religião como o ópio dos povos e a Igreja como alienada e alienante'", escreve  Gerolamo Fazzini, jornalista, em artigo publicado na revista Popoli, 25-08-2014.

Eis o texto.

Morria no dia 27 de agosto há 15 anos Hélder Câmara, um dos bispos latino-americanos mais amados, graças à sua paixão por uma Igreja pobre e dos pobres, à sua atenção pelas pessoas e à sua fé encarnada. O retrato de um pastor que pode ser certamente considerado um precursor do Papa Francisco.

“O bispo vermelho Câmara na via da beatificação”, clamava Il Messaggero de 29 de maio passado. Um título que exalta como uma parte da opinião pública acolheu a notícia da iminente abertura do processo canônico que poderia conduzir aos altares dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda-Recife. Entre os protagonistas da história recente (não só eclesial) da América Latina, o próprio Câmara, por toda a sua vida, precisou fazer as contas com aquela pesada etiqueta: “Quando dou de comer a um pobre, me chamam de Santo – é uma de suas frases passadas à história – mas, quando pergunto por que os pobres não têm comida, então me chamam comunista”.

Curioso: também o Papa Francisco, respondendo às perguntas de um grupo de jovens belgas, há poucos meses havia esclarecido: “Escutei que uma pessoa disse: com todo este falar dos pobres, este Papa é um comunista! Não, esta é uma bandeira do Evangelho, a pobreza sem ideologia; os pobres estão no centro do Evangelho de Jesus”.

Eis: se há um motivo pelo qual valha a pena hoje, a 15 exatos anos da morte, reevocar a figura de dom Hélder – nascido em 1909 e falecido aos 27 de agosto de 1999 -, é sua paixão pelos pobres, o seu extraordinário empenho para tornar a Igreja mais fiel àquela de Jesus: “Uma Igreja pobre para os pobres”. Nisto se pode afirmar, sem temor de desmentidos, que Câmara antecipou o Papa Bergoglio.

O pequeno Bispo

Recebemos repetidas confirmações em Recife.
A Igreja das Fronteiras, junto à qual ficava a residência de Câmara, é ainda hoje o coração pulsante de sua memória. Na praça fronteiriça uma estatuado “bispinho” (como era apelidado), te acolhe de braços abertos. Ao lado fica a sede do Instituto dom Hélder Câmara. Aqui encontramos um dos membros, uma anciã, mas lúcida senhora, Bete Barbosa, que trata das publicações de Câmara: “Em muitos comportamentos e palavras do Papa Francisco – diz – encontramos acentos semelhantes àqueles de dom Hélder. A começar pela atenção com as pessoas, por suas necessidades”.

Faz -lhe eco Luis Tenderini, de 70 anos, italiano de origem, mas no Brasil há mais de 40 anos. Como longo braço direito de Câmara na diocese e fundador de Emaús Recife, por encorajamento do próprio dom Hélder, se faz de guia precioso e conta: “Desde o primeiro encontro pessoal com ele, em julho de 1979, quando me convidou a colaborar na atividade pastoral, recordarei sempre o gesto final: terminado o colóquio, me acompanhou ao portão de saída, esperando que eu dobrasse a esquina antes de reentrar. Mais tarde descobri que fazia a mesma coisa com todos que o visitassem”.

Outro traço que associa decididamente o atual Papa e o “bispo vermelho” é o estilo de sobriedade extrema e a distância sideral daquela mundanidade que Bergoglio não cessa de indicar como um dos males da Igreja atual. Hoje impressiona a decisão de  Francisco de viver num modesto alojamento em Santa Marta, renunciando ao tradicional apartamento pontifício. Mas, dom Câmara havia feito o mesmo, anos antes, decidindo morar em dois modestos locais adjacentes à Igreja das Fronteiras.

Também a tumba de Câmara fala de essencialidade: uma simples laje de mármore, sobre a qual estão incisos somente o nome e as datas de nascimento e morte, com uma pomba estilizada. Está colocada na catedral de Olinda, antiga cidade colonial a poucos quilômetros de Recife. Daquela igreja, hoje meta de peregrinos e turistas, se goza de uma vista espetacular sobre a cidade situada abaixo e sobre a inteira baía.

Mais ainda. O Papa Bergoglio fala dos pobres como da “carne de Cristo”.  Câmara, por toda a sua vida, manifestou uma preocupação pelos últimos que, antes ainda de assumir os tons da denúncia social, se configurava como atenção às pessoas em gestos simples.

A propósito, eis um precioso testemunho de Marcelo Barros, abade beneditino e teólogo da libertação, colaborador de dom Hélder por 12 anos: “Em cada irmão e irmã que encontrava ele via a presença divina – escreveu há tempo em Nigrizia -. Uma vez por semana nos reuníamos em sua casa. Enquanto falávamos, muitas pessoas batia à porta. Ele mesmo se levantava e as recebia. Às vezes demorava em escutar. Dizia: “Procuro recebê-los pessoalmente, porque não quero perder o privilégio de acolher o próprio Senhor”.”

Protagonista do Concílio

É interessante observar como, da mesma forma como Oscar Romero, outro gigante da Igreja latino-americana, também dom Câmara tenha percorrido um caminho pessoal de “conversão”, antes de tomar as posições corajosas que conhecemos. Nascido numa família numerosa, crescera num ambiente eclesial antes conservador. Ordenado sacerdote em 1931, se converte aos pobres quando, em 1952, se torna auxiliar do cardeal do Rio de Janeiro: é naquele período que o jovem e dinâmico bispo conquista na área o epíteto de “bispo das favelas”.

O carisma de dom Hélder se dilata rapidamente fora dos limites da cidade. Em 1952 ele está entre os promotores da Conferência episcopal brasileira, da qual se torna secretário por 12 anos. Três anos depois, lança no Rio a convocação da primeira Conferência dos bispos latino-americanos, da qual nascerá o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano).

Em 1964 – ano do golpe que instaura o regime militar no Brasil Câmara é nomeado arcebispo de Recife, capital de Pernambuco, no Nordeste, a região mais pobre do País. No dia do ingresso oficial, o novo arcebispo não quer ser acolhido dentro da catedral, mas na praça, no meio do povo. Nos anos subseqüentes o empenho de dom Hélder a serviço dos mais débeis continuará sem descanso, com tomadas de posição corajosas, que o tornarão famoso em todo o mundo. Uma frase retoma eficazmente o sentido profundamente evangélico de suas batalhas: “A revolução social da qual o mundo necessita não é um golpe de Estado, não é uma guerra. É uma transformação profunda e radical que supõe Graça divina”.

Embora sem jamais tomar a palavra durante as sessões de trabalho, foi um dos protagonistas do Concílio Vaticano II, entre os inspiradores do famoso Pacto das catacumbas: para entender o papel crucial basta ler suas circulares coletadas em Roma, duas da manhã (São Paulo 2011). Em 1970 o Sunday Times chegou a definir dom Hélder “o homem mais influente da América Latina após Fidel Castro”.

O paradoxo é que o interessado não havia projetado uma “carreira” de profeta. Antes, na idade de 34 anos, num momento de desconforto, havia escrito: “Atravessarei a vida sem deixar nenhum sinal incisivo. Olharei de longe são Francisco Xavier, sem poder imitá-lo. Ainda de mais longe olharei para são Francisco de Assis. No meu funeral qualquer um dirá que não produzi tudo aquilo que poderia ter produzido”.

Hoje sabemos bem que não é assim: Câmara, de fato, é enumerado entre aqueles que imprimiram uma virada decisiva à Igreja do nosso tempo. Bastem estas últimas palavras para mostrar sua atualidade: “Se Marx tivesse visto em torno de si uma Igreja encarnada, continuadora da encarnação de Cristo; se tivesse vivido com cristãos que amavam, de modo real e de fato, os homens como expressão por excelência do amor de Deus, se tivesse vivido nos dias do Vaticano II, que reassumiu tudo o que de melhor diz e ensina a teologia sobre as realidades terrestres, Marx não teria apresentado a religião como o ópio dos povos e a Igreja como alienada e alienante”.

Os prêmios e a rede

A casa canônica de dom Hélder Câmara tornou-se hoje um museu. Mais ainda do que a Catedral de Olinda, onde se encontra a tumba, é ali que em cada domingo uma pequena multidão se reúne para ver o pequeno estúdio do bispinho, com a biblioteca (onde ainda se destacam volumes de Guitton, De Lubac, M. L. King, Frère Schutz, Garaudy) e o quarto, onde ainda está presa a coloridíssima rede que ele usava nos últimos tempos para dormir.

No andar superior foi armada há pouco tempo uma exposição permanente de objetos que contam a vida intensa deste personagem, entre as vozes mais autorizadas do mundo na denúncia das injustiças e do subdesenvolvimento. Atestam-no os numerosíssimos reconhecimentos internacionais, das medalhas à cidadanias honorárias, às láureas honoris causa de variadas instituições acadêmicas de todo o mundo, conservados no pequeno museu.

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*Gerolamo Fazzini (Verona, 1962) é jornalista,  editor do mensal do Mondo e Missione  e do site MissiOnLine, lidera PIME (Pontifício Instituto das Missões Exteriores). Durante seis anos, ele foi o coordenador da FESMI – Federação da Imprensa Missionária Italiana.
Desde 1985, escreve para o jornal Avvenire, onde nos anos 1997-2001 trabalhava como chefe de informação religiosa. Dirigiu um semanário local, Il Resegone, em Lecco, cidade onde vive, com sua esposa e dois filhos.
Viaja ao encontro de outros povos, outras igrejas e outras religiões.
Escreveu vários livros, entre eles O Livro Vermelho dos mártires chineses (São Paulo 2007), com prefácio do cardeal Joseph Zen, traduzido em quatro línguas. [In:  facebook.com]