Abaixo, um interessante e sobretudo relevante artigo
sobre a questão das polêmicas nutridas
pela pequena parcela dos tradiciolnalistas e seus adeptos dentro da Igreja
Católica. Essas polêmicas tentam contaminar a opinião geral contra as reformas
propostas e conduzidas pelo papa Franciso.
Penso que esta é uma questão que a Igreja Católica precisa
de enfrentar com muita determinação e confiança. É importante analisar com
seriedade esta questão.
O Artigo, originalmente publicado por Sapientia,
22/07/2021, foi também publicado postriormente no site do Instituto Humanitas
Unisinos (IHU).
Não deixe de ler!
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IHU
– ADITAL
23
Julho 2021
"O clamor dos conservadores católicos e dos
autodenominados “tradicionalistas” sobre a
decisão do Papa Francisco de restaurar as restrições à versão latina não
reformada e pré-1970 da missa foi tão furioso e angustiado que obscureceu
várias realidades importantes sobre essa controvérsia".
O comentário é de David Gibson, jornalista, escritor, cineasta
e diretor do Centro de Religião e Cultura da Fordham University,
em artigo publicado por Sapientia, 22-07-2021. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
A
histeria da missa em latim
Essas realidades são cruciais para compreender esse
drama de proporções quase cismáticas, aquilo que de fato está em jogo e por que
Francisco fez o que fez. Deixe-me apontar três dos principais equívocos.
Proibição?
Primeiro, o papa não proibiu os padres de
celebrarem a missa em latim. De fato, a versão oficial
padrão do missal atual está em... latim. Várias partes do mundo usam traduções
para o vernáculo a partir desse texto básico, que também pode ser usado para
rezar a missa em latim.
O que o Papa Francisco restringiu foi o rito
codificado após o Concílio de Trento (1545-1563) e promulgado pelo Papa
Pio V em 1570. O Concílio Vaticano II (1962-1965) pediu que a
liturgia fosse atualizada e renovada, e em 1970 – 400 anos depois do missal
tridentino – o Papa Paulo VI promulgou um novo missal, aquele que quase
todos os católicos do mundo seguem na missa em sua própria língua.
Os padres ainda podem celebrar a “missa em latim”,
apenas com o novo formato e as novas fórmulas que expressam uma eclesiologia e
teologia diferentes da versão anterior. “Se você gosta da missa em latim, você
pode ficar com a missa em latim, porque o Missal de Paulo VI é a
missa em latim”, escreveu Adam Rasmussen, professor de Teologia, no blog
Where Peter Is.
Aliás, há um interessante debate sobre como chamar
o rito mais antigo agora. Como a unidade da Igreja Católica romana de
rito latino se expressa na celebração da missa segundo a mesma forma, o
falecido Papa João Paulo II estabeleceu restrições em 1988 sobre quando
os clérigos poderiam celebrar a missa mais antiga, a missa tridentina, como era
frequentemente chamada. Quando o Papa Emérito Bento XVI emitiu uma carta
apostólica, Summorum pontificum, em 2007, ele afrouxou essas
restrições e chamou o rito antigo de “Forma Extraordinária” [...].
Agora que Francisco voltou ao status quo
ante, e mais um pouco, há um novo debate sobre como chamar a velha missa (eu
prefiro chamá-la de Rito Tridentino, mas o liturgista beneditino Anthony
Ruff escreveu um bom post sobre os prós e os contras de todos esses rótulos
[disponível em inglês aqui]).
Peronismo
papal?
A segunda concepção errônea, que pode ser deduzida
da breve história acima, é que a decisão de Francisco foi a ação
precipitada e peremptória de um forte papa “peronista”, como o vaticanista John
Allen, do Crux, descreveu Francisco.
Pelo contrário. Esse drama com a direita da Igreja
Católica já se arrasta há mais de 50 anos, e durante todo esse tempo os
papas, de Paulo VI a João Paulo II e, mais especialmente, até Bento
XVI, dobraram para trás e até distorceram a tradição e o raciocínio básico
para fazer concessões especiais aos tradicionalistas. E, a cada passo, os
direitistas empacavam ou se rebelavam.
Eu estava em Roma trabalhando na Rádio
Vaticano em 1988 quando o arcebispo francês Marcel Lefebvre, um dos líderes da rebelião tradicionalista, consagrou quatro bispos
contra as ordens de João Paulo II e levou seus seguidores a um cisma
formal. João Paulo II, com a orientação de seu assessor doutrinário, o
então cardeal Joseph Ratzinger – que depois da morte de João Paulo II em
2005 seria eleito Papa Bento XVI –, criou várias “avenidas” para a
permanência dos direitistas.
A Fraternidade São Pio X, de Lefebvre, acabou sendo considerada não formalmente
cismática, uma espécie de fraternidade pseudocismática. Mas do que mais você
poderia chamar quando um grupo rejeita as reformas legítimas de um Concílio
Ecumênico devidamente convocado? Para eles, nenhum tipo de acomodação seria
suficiente.
Mesmo aqueles tradicionalistas que se aproveitaram
da munificência do Vaticano para se declarar formalmente em comunhão com
Roma continuaram causando problemas, talvez até mais do que aqueles que
se rebelaram. Eles afirmavam que o “seu rito” era superior à missa reformada de
1970 e provocaram rixas nas paróquias e nas dioceses em quase todos os lugares
aonde foram. Eles têm sido um lócus de tensão política, pastoral e teológica a
tal ponto que Francisco foi forçado a desfazer aquilo que Bento XVI
havia lançado como um esforço para acomodá-los.
A direita não estava interessada em brincar. Bento
XVI “nunca pretendeu iniciar um movimento, muito menos uma ideologia!”,
como disse um dos colaboradores mais próximos do papa emérito a Michael Sean
Winters, do National Catholic Reporter. Mas foi isso que aconteceu e
acabou prejudicando toda a Igreja.
“Eles são uma pequena minoria dentro da Igreja que
cresceu em proeminência durante o último pontificado, a ponto de se tornarem o
rabo que abana o cachorro”, escreveu Robert Mickens, do La Croix.
De fato, apesar do tratamento mais indulgente
possível por parte de Roma e da hierarquia, os proponentes tridentinos
nunca se tornaram um movimento, como afirmavam que fariam.
Forma
superior de catolicismo?
E esse é o terceiro e talvez o maior equívoco – que
o Papa Francisco está estrangulando um florescente renascimento
tradicionalista de uma forma superior de catolicismo que revigorará a Igreja.
“A verdade triunfará, porque a tradicional liturgia da missa em latim expressa
a verdade da fé de uma forma mais completa e bela, e isso é uma obra de Deus, e
Deus também triunfará sobre alguns dos eclesiásticos que hoje são poderosos na
Igreja”, disse o bispo Athanasius Schneider, um bispo tradicionalista do
Cazaquistão, no início de junho.
A ideia de que os católicos anseiam pelo rito
tridentino é a tendência que nunca morre. É a linha que os tradicionalistas têm
alimentado há décadas e foi amplificada por lideranças da Igreja como o Papa
Bento XVI, que, ao ampliar o uso do rito antigo em 2007, disse que a sua
medida era motivada por contínuos pedidos de todo o mundo e pelo fato de que
“até mesmo os jovens” eram atraídos por ele.
O editor da First Things e fiel da missa em
latim Matthew Schmitz repercutiu esse ponto de vista em um artigo de
2017 no Catholic Herald: “Para onde quer que se olhe, todos os jovens
gostam do rito antigo”.
Essa ideia era repetida com tanta insistência e
autoridade que as mídias seculares dificilmente resistiam a noticiar os “jovens
à moda antiga” atraídos pela antiga Missa Solene, com todos os tipos de
rendas, ornamentos, incensos e sinos. Era tão impressionante, dramática e
visualmente, que se tornou a premissa inteira da série The Young Pope,
da HBO, em 2016.
“Está moda ser um tradicionalista na Igreja
Católica”, escreveu a The Economist em 2012. “A vida moderna é feia,
brutal e árida. Talvez você deveria provar uma missa em latim”, afirmava um
artigo do New York Times, em 2020, que afirmava que tais práticas
“provavelmente refletem o único futuro viável do cristianismo em uma era
secular”.
O problema é que nenhuma dessas anedotas se
sustenta de acordo com as estatísticas. De fato, os números mostram um pequeno
número de fiéis tridentinos, cujas fileiras não estão crescendo, e certamente
não globalmente.
O site do Latin Mass Directory fornece a
melhor métrica disponível para medir a disponibilidade da antiga missa
tridentina e mostra um total de 1.684 “locais” ao redor do mundo que oferecem a
missa de 1962, uma ínfima parcela litúrgica de uma Igreja mundial de mais de
1,2 bilhão de católicos. Além disso, muitos desses locais oferecem a missa
antiga apenas esporadicamente.
Principais países onde se celebra a missa em latim
(Foto: Latin Mass Directory)
Acima de tudo, a lista demonstra claramente como
essa pequena minoria está até geograficamente distorcida: os Estados Unidos,
que abrigam apenas 6% dos católicos do mundo, abrigam quase 40% de todas as
missas tridentinas, com 658 locais. França, Grã-Bretanha e Itália
são os próximos mais populares, com 199, 157 e 91 locais (que podem ser uma
paróquia, uma capela ou outro local designado), respectivamente.
De fato, a Europa e a anglosfera respondem
por mais de 86% de todos os locais tridentinos, e se você tirar os 56 locais no
Brasil – o país católico mais populoso do mundo – dificilmente haveria
algum outro na América Latina, África ou Ásia, os
continentes onde a população católica é maior e cresce mais rapidamente.
Mesmo assim, o New York Times publicou um
longo artigo em 2017, de Matthew Schmitz, sobre como a antiga missa em
latim estava “prosperando” na Nigéria, embora haja exatamente uma igreja
onde se celebra a missa em latim todos os domingos, em um país de 24 milhões de
católicos.
Mesmo as estatísticas gerais não contam toda a
história. Nos últimos anos, vários comentaristas, inclusive católicos
conservadores que apoiam o rito tridentino, têm alertado sobre a fraqueza da
narrativa de crescimento que está sendo contada sobre o rito antigo.
“Parece que se atingiu um teto. A missa tradicional
em latim atrai um certo nicho de católicos, mas o número desse grupo parece ter
atingido o seu ponto máximo”, escreveu o Mons. Charles Pope, um padre
tradicionalista em Washington, em uma coluna para o jornal conservador National
Catholic Register, em 2016.
Quando Bento XVI autorizou pela primeira vez
um uso mais amplo da missa tridentina em 2007 – a política que Francisco
acabou de revogar – houve um aumento na frequência dessas missas, de acordo com
o papa, assim como ele e outros prometeram que aconteceria. Mas esse entusiasmo
diminuiu, algo que eles não esperavam.
“Na minha própria arquidiocese, embora ofereçamos a
missa tradicional em latim em cinco locais diferentes, nunca conseguimos atrair
mais do que de cerca de 1.000 pessoas. Isso representa apenas 0,5% do número
total de católicos que frequentam a missa em sua arquidiocese todos os
domingos”, escreveu ele.
“Uma das nossas paróquias oferece generosamente uma
Missa Solene uma vez por mês no domingo à tarde, uma missa que eu mesmo
celebro há mais de 25 anos. Mas passamos de uma igreja quase cheia, para uma
igreja com dois terços de fiéis, e agora com apenas cerca de um terço.”
Pope citou
outros exemplos de paróquias tridentinas que atraem um número muito pequeno de
fiéis, insuficiente para se sustentarem, e outros relataram o mesmo fenômeno.
“Eu apoio a missa tradicional em latim, mas rejeito
toda a ideia de ‘missas tradicionais em latim cheias de jovens’ por ser
imprecisa”, tuitou um padre de Michigan durante o intenso debate online
sobre a medida de Francisco. “Nossa diocese doa enormes quantidades de
dinheiro para manter abertas as nossas paróquias que celebram a missa
tradicional em latim, precisamente porque elas tendem a não crescer. Tudo
depende de muitas coisas, mas não do tipo de missa.”
Crescimento
ilusório
Em 2019, um esforço dos fãs da missa tridentina
para fornecer pesquisas que sustentassem a alegação de que o rito estava
“crescendo rapidamente” e de que seus seguidores eram mais devotos e ortodoxos
do que outros católicos estadunidenses serviu apenas para mostrar como essas
afirmações são vazias.
Em um artigo para a First Things, uma
revista conservadora, a socióloga Audra Dugandzic revelou que o assim
chamado estudo era falho, já que o principal problema era que se tratava de uma
pesquisa com fiéis da missa tridentina autoescolhidos.
A tendência dos fãs da missa latina de se
autoescolherem, de se reunirem intencionalmente e muitas vezes com maior
esforço do que muitos paroquianos é uma função natural da sua paixão, e essa é
a principal razão pela qual eles podem projetar uma imagem de uma coorte
crescente. Eles são visíveis e muitas vezes falam abertamente sobre as suas
crenças.
Se eles são minoritários, isso não significa que
não tenham influência. Chamá-los de o “1% litúrgico” seria exagerar em muito o
seu tamanho. Mas não o seu alcance. A popularidade da missa em latim acompanha
quase perfeitamente a oposição ao Papa Francisco, uma oposição
alimentada por uma pauta política conservadora, muito dinheiro e uma plataforma
nos países ocidentais industrializados.
“Os anglotradicionalistas colocaram o pontificado
de Francisco na mira desde o primeiro dia, liderando uma guerra de
guerrilha contra este papado”, tuitou Christopher Lamb, correspondente
vaticano da The Tablet e autor de “The Outsider”, um livro
sobre a oposição conservadora a Francisco. “O papa está dizendo que você não
pode mais usar a liturgia nessa guerra.”
A visibilidade e a influência – na política e, até
o surgimento do Papa Francisco, nos níveis mais altos da Igreja
Católica – dessa coorte tridentina de superelite é a principal razão pela
qual você está vendo tanta cobertura sobre essa controvérsia. Muitos defensores
do rito tridentino permanecem firmes, e muitos deles juraram resistir à nova
lei do pontífice, e alguns podem romper abertamente com Roma.
Mas é importante lembrar que a sua partida seria
tanto a perda de uma “lasca” quanto um cisma. O verdadeiro futuro do catolicismo
está em outro lugar, e sempre esteve.
Fonte:
IHU – ADITAL