Hoje trago para esta página uma interessante
entrevista com três teólogos italianos, que foi publicada na Itália por La Lettura em março deste
ano (2020), no início da pandemia do Coronavirus Covid-19, e também logo em
seguida, no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Perguntas importantes e respostas interessantes. Sobretudo para quem procura entender um pouco
melhor as dificuldades que frequentemente inquietam a mente e o coração de ser humano, uma
boa leitura pode ser muito proveitosa.
Não deixe de ler!
WCejnóg
IHU - ADITAL
23 março 2020
Cabe à ciência
explicar o que está
acontecendo e indicar como
sair disso. Não tem dúvidas a tal respeito a opinião pública ocidental às
voltas com o drama da pandemia. A religião não é central. É
claro que falamos a respeito: por causa da colaboração entre autoridades civis
e religiosas na aplicação de restrições, das celebrações
on-line e as religiões nas redes sociais, do retorno de ritos antigos
de súplica à Virgem e aos santos. No entanto, parece que o Ocidente
sairá da emergência fortalecido em sua identidade como espaço secularizado, no
qual o poder da ciência conta mais, e onde a religião sobrevive
apenas como subalterna e residual.
É realmente assim?
Deus realmente tem que se contentar em estar à margem da cena? La Lettura apresentou
a pergunta a três teólogos italianos: Cettina Militello, 74, siciliana
de Castellammare del Golfo (Trapani), que reside em Roma; Roberto
Dell'Oro, 60 anos, natural de Lecco, desde 2003 em Los Angeles;
e Severino
Dianich, 85 anos,
originário de Fiume e que adotou Pisa como sua cidade.
A conversa
com Cettina
Militello, Severino
Dianich e Roberto
Dell'Oro foi editada por Marco
Ventura, publicada por La
Lettura, 21-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista
Onde foi parar
Deus no momento da pandemia?
Cettina Militello: Deus está exatamente
onde pensamos que não esteja. Ele está conosco, não há dúvida. É uma presença
misteriosa que não sentimos, e também é justo que nos rebelemos, que lhe
perguntemos onde você está ... Mas Deus está onde há alguém que sofre. Não pode
haver dúvida. Pelo menos para o crente.
Severino Dianich: Para pensar em Deus, devemos
dar um passo em direção a um espaço adicional. Em direção a um horizonte
infinito, cujas dimensões não podemos medir. Devemos levar o espírito humano ao
limite. Se sentimos Deus dentro do nosso horizonte, com a nossa lógica,
percebemos apenas suas contradições.
Roberto Dell'Oro: Com o vírus, experimentamos a
contingência, daquilo que atinge a todos sem que o tenhamos desejado. Através
dessa experiência, podemos voltar à origem da contingência. Poderia ser
o nada. Em vez disso, é o tudo, isso é, Deus. E em Deus encontramos a
alteridade das coisas, uma realidade subtraída do nosso controle.
“Deus nos ama”,
escreveu um comerciante romano na vitrine de sua loja fechada pelo decreto
antivírus. Alguém acrescentou (a versão literal é mais apimentada):
"Imagine se não nos amasse".
Cettina
Militello: São modos
primitivos e toscos de pensar em Deus, Deus sofre e sofre conosco, está
presente e está presente conosco. Na tragédia daqueles que não conseguem,
daqueles que têm medo, na esperança daqueles que
conseguem se confortar. Diante de uma tragédia, se pode perder a fé.
Severino Dianich: Há quem perde a fé. Há quem a
encontra. Eu nem tentaria dizer o porquê. Aqui se entra em um terreno
insondável. A que fé se pode recorrer neste momento?
Cettina Militello: Reagimos à maneira
primitiva. Fazendo barulho, gritando, cantando. Remédios atávicos para medos atávicos. A superstição preenche emotivamente os
vazios que a fé refletida não consegue preencher...
A fé refletida?
Cettina Militello: A fé adulta. Capaz de
argumentar. Em vez disso, somos bombardeados por santos, ostensórios, bispos
que imploram ... Vamos deixar claro: a fé dos simples deve ser respeitada. Tem
um poder incrível. Mas não aceito que seja usada ou humilhada. Incomoda-me
aqueles que se aproveitam dela de maneira inadequada. Aliás, é claro, a
verdadeira fé não precisa dessas coisas.
A fé da fé simples
e a fé refletida convivem na Igreja?
Cettina Militello: Uma das nossas
responsabilidades como Igreja é ter apoiado essa deriva. Em
vez disso, devemos nos perguntar o que fizemos com nossos relacionamentos, que
mundo construímos, que fideísmo científico erigimos como substituto da fé.
Severino Dianich: Os bispos convidaram os
italianos a rezar a São José no dia 19 de março. Nós nos perguntamos o
que isso significa. No Antigo Testamento, a imploração de Deus é
coletiva, assim como a penitência coletiva. Quando Jonas vai para Nínive,
o rei decreta o jejum de todos os habitantes e, por fim, Deus poupa a cidade.
Com Jesus a culpa é pessoal. Mas o senso do povo não se perde, que é,
aliás, o sentido da Igreja. Deus poderia parar a pandemia.
Roberto Dell'Oro: O Deus cristão não causa
nada. No mundo da realidade e das coisas. Deus está à obra nos eventos humanos,
mas não os causa diretamente. Somos nós que, a partir dos eventos humanos,
devemos remontar ao significado de sua presença.
Cettina Militello: Deus não é um
tapa-buracos que vem para resolver problemas
criados por nós mesmos. Ele nos fez livres. Ele nos confiou a criação.
Nós o massacramos, estamos nos destruindo por nosso delírio de onipotência.
No entanto, o
criador Deus deveria poder intervir.
Roberto Dell'Oro: A criação não reside no
efeito físico. O amor de Deus deixa que as coisas estejam em sua
liberdade. Não as determina ou controla. A relação entre Deus e o mundo é a
relação entre duas liberdades. A liberdade de Deus deixa o mundo estar
em sua contingência. Por isso, dela remontamos a ele.
Então, a que serve
rezar?
Roberto Dell'Oro: A oração é uma confidência,
um retorno à fé na bondade da origem que nos gerou. É claro que também
pedimos que Deus nos salve, que ele nos mantenha vivos, que permanecerá fiel à
sua promessa, mas como Deus não é um ídolo ... se pudéssemos controlá-lo, ele
seria apenas um ídolo ... em vez disso, confiamos no mistério de sua
transcendência e redescobrimos a nossa liberdade.
Cettina Militello: Fora da perspectiva da fé, a
oração é apenas uma técnica de relaxamento. No âmbito cristão, a oração
é diálogo, é conversa. É abandonar-se a Deus, mesmo com aspereza, mesmo
perguntando onde você está. Infelizmente, geralmente prevalece a oração de
pedido. É o nosso limite. Eu não vou criticar. Eu mesma digo: Senhor nos ajude.
Mas também gosto de dizer a ele: sei que você está aqui, comigo.
Severino Dianich: Jesus recomenda a oração de
pedido e promete a resposta. Alguém poderia objetar: querido Jesus, você foi o
primeiro a não ser atendido quando rezou no Getsêmani "Deus, afasta
de mim esse sofrimento".
Nenhuma certeza.
Severino Dianich: O Evangelho garante: o Pai,
no entanto, lhe dará seu espírito. Eu posso derivar disso uma atitude interior
de confiança. Uma libertação da ansiedade de minha sorte imediata. Como
se dizia entre nós antigamente, e como os muçulmanos ainda falam, será
como Deus quiser.
Enquanto alguém
reza, todos nos voltamos para a ciência.
Severino Dianich: Na Igreja ortodoxa grega,
houve resistência em interromper a comunhão com o pão e o vinho por causa do vírus. Para nós, é clara a
distinção entre a substância sacramental, onde Deus não pode transmitir nenhuma
infecção, e a substância física dos
elementos, através da qual pode se disseminar a epidemia. Podemos ouvir o
epidemiologista e, ao mesmo tempo, podemos rezar. O fato é que a ciência pode
nos ajudar mais que Deus. E que um Deus que não me ajuda é um Deus mau.
Roberto Dell'Oro: Somos sempre livres para ir a
Deus ou recusá-lo, culpá-lo, cobrá-lo por causa das coisas terríveis que
acontecem conosco. Deus não nos obriga a interpretar os fatos nem no sentido da
bondade das coisas que acontecem nem no sentido de sua maldade. O mau
por excelência é o diabo.
Cettina Militello: Nós somos o diabo.
Nós somos o sujeito do pecado. A culpa é nossa. Individual e coletiva.
Devemos parar de inventar bichos-papões que estão fora de nós.
Severino Dianich: O diabo está agachado diante
de nossa porta, lemos no Gênesis. Em outras palavras, o diabo é a
tentação da qual devo me defender.
Roberto Dell'Oro: O diabo é o princípio da separação.
É o que coloca em nós a dúvida de que a origem seja ruim. Como tal, representa
o atentado mais fundamental à fé. O diabo leva a pensar em Deus como mau. A
negar que nossa relação com ele seja uma relação de liberdade e não de
necessidade.
Essa liberdade
poderia ser a chave da aliança entre Deus e os cientistas?
Cettina Militello: A ciência é uma
aliada. Exceto quando se pensa onipotente. Vamos lutar juntos para derrotar
esse vírus abençoado... ou amaldiçoado...
Abençoado ou
amaldiçoado?
Cettina Militello: Amaldiçoado pela dor que
traz ... pela quantidade
infinita de caixões
... Abençoado no sentido de que pode nos dar um reinício, pode nos devolver o
senso do limite que perdemos completamente. Como um amigo teólogo, cujo nome
prefiro não citar, disse hoje recentemente, nem tudo ficará bem, mas tudo
ficará melhor.
No sentido de que
nos distanciarmos nos unirá?
Roberto Dell'Oro: O desafio fundamental nos
dias de hoje é a solidariedade
social. No momento do
distanciamento, repensamos o sentido da proximidade. Porque assim é Deus em
relação a nós. Está próximo e, portanto, nos solicita à proximidade recíproca.
Vemos isso na solidariedade que se expressa no trabalho do pessoal da saúde.
Cettina Militello:
Misericórdia é a palavra que
une todo o falar de Deus. Devemos nos preocupar com outras coisas. Temos
oceanos de compaixão nestes dias. Pensamos naqueles que arriscam suas vidas. O
que os move, se não esse profundo senso do dever de estar perto do outro? Isso,
e nada mais, é o nome de Deus.
Severino Dianich: Jesus é perguntado várias
vezes sobre a culpa das vítimas. Por exemplo, no desmoronamento de uma torre.
Ou no massacre ordenado por Pilatos no templo. Para ele, o que importa
não é se os que perderam a vida pecaram, mas se a tragédia será um estímulo à
conversão.
É a pergunta que
eu dirijo para você para encerrar. A tragédia nos converterá?
Cettina Militello: Tudo isso será uma lição. Não
podemos continuar a abusar de nós mesmos e da criação. O ecossistema
global insurge. Nesse
sentido, a conversão é um retorno a Deus, à sua aliança, à sua Palavra.
Roberto Dell'Oro: Somos dados a nós mesmos como
seres livres. Livres para pensar sobre a origem ou negá-la. A experiência do vírus é uma ocasião para se
distanciar da origem. Ou se reaproximar.
Severino Dianich: Sim, a pandemia é a ocasião para alguns
passos de conversão. Ou seja, mudar o estilo de vida, de orientação da vida.
Esse é o significado da fé cristã.
Fonte: IHU – ADITAL