Hoje trago para o blog Indagações-Zapytania um excelente texto, com as
colocações bem claras, diretas e bem explicativas sobre a essência do
cristianismo. O texto é a reprodução do Colóquio
"Sociedade e Espiritualidade” proferido por Frei Betto durante a
Conferência na Academia Brasileira de Letras, no mês de março deste ano (2016).
Da minha parte quero parabenizar o autor por todas essas colocações.
Acredito que uma leitura serena dessas palavras e uma reflexão sobre o
seu conteúdo possam ajudar muito às pessoas que, como cristãs, sentem-se inseguras
e/ou até ‘perdidas’ no mundo de hoje, quando o assunto é a fé cristã e a
pertença à Igreja.
Realmente, vale a pena ler!
WCejnóg
Cristianismo como projeto civilizatório
Conferência
na Academia Brasileira de Letras
– Colóquio
"Sociedade e Espiritualidade” –
15 de março de 2016
Por Frei Betto*
O Brasil é
um país de matriz cristã. Pergunte-se a um homem ou mulher do povo como é a sua
visão de mundo e, certamente, se escutará uma resposta tecida em categorias
religiosas.
O
cristianismo, em sua versão católica, chegou ao nosso país de braços dados com
o projeto colonizador português. Integrar-se à civilização, tal como a concebia
a Península Ibérica, era tornar-se cristão. Esta a obsessão missionária de
Anchieta: anular as convicções religiosas dos povos originários da terra
brasilis, consideradas idólatras, para introduzir o cristianismo segundo a
teologia europeia ocidental, em uma agressão à cultura indígena.
Os
colonizadores trouxeram os africanos como escravos. Estes tinham que se
submeter ao batismo para entrar no inferno aqui na Terra, sob a promessa de
que, bem dóceis à vontade e aos perversos caprichos dos brancos, haveriam de
merecer o Paraíso celestial como recompensa. Pregava-se Jesus crucificado à
senzala, para que se resignasse aos atrozes sofrimentos, e o Sagrado Coração de
Jesus à casa grande, para que abrisse seus cofres às obras da Igreja.
A flauta e
a hóstia consagrada
No início
do século XX, um padre destinado a catequizar uma aldeia do Xingu ficou
indignado ao constatar que o ritual religioso centrava-se numa flauta tocada
pelo xamã, cuja música estabelecia a conexão com o Transcendente. Trancadas nas
malocas, mulheres e crianças eram proibidas de assistir à cerimônia.
Escoltado
por soldados, o missionário trouxe a flauta para o centro da aldeia, fez vir
mulheres e crianças e, diante de todos, quebrou o instrumento musical rechaçado
como idolátrico e pregou a presença de Jesus na hóstia consagrada.
Ora, o que
impede um grupo indígena de ingressar na igreja da Candelária, abrir o
sacrário, rasgar as hóstias consagradas e jogá-las no lixo? Apenas a falta de
uma escola suficientemente armada.
Fé e
política
Nós,
ocidentais, dessacralizamos o mundo ou, como prefere Max Weber, o
desencantamos. A ponto de se decretar "a morte de Deus”. Se abraçamos
paradigmas tão cartesianos, felizmente em crise, isso não é motivo para
"quebrar a flauta” dos povos que levam a sério suas raízes religiosas.
Hoje, erra
o Oriente por ignorar a conquista moderna de laicidade da política e da
autonomia recíproca entre religião e Estado. Erra o Ocidente por
"sacralizar” a economia capitalista, endeusar a "mão invisível” do
mercado e desdenhar as tradições religiosas, pretendendo confiná-las aos
templos e à vida privada.
Os
orientais se equivocam por confessionalizar a política, como se as pessoas se
dividissem entre crentes e não crentes (ou adeptos da minha fé e os demais).
Ora, o marco divisor da população mundial é a injustiça que segrega 4 dos 7
bilhões de habitantes.
Por sua
vez, os ocidentais cometem grave erro ao pretender impor a todos os povos, pela
força e pelo dinheiro, seu paradigma civilizatório fundado na acumulação da
riqueza, no consumismo e na propriedade privada acima dos direitos humanos.
Cristianismo
à imagem e semelhança do capitalismo
Muitos de
nós, presentes nesta sala da Academia Brasileira de Letras, somos filhos e
filhas do século XX, e nascemos em famílias católicas. Fomos batizados e
crismados, fizemos a Primeira Comunhão, aprendemos a rezar e a ter devoção a santos
e santas.
Esse
cristianismo se casava perfeitamente com a moral burguesa que divorciava o
pessoal do social, o privado do público. Pecado era se masturbar, mas não pagar
um salário injusto a uma empregada doméstica confinada na casa em um quartinho
irrespirável, desprovida de direitos trabalhistas e obrigada a desempenhar
múltiplas tarefas. Pecado era faltar à missa aos domingos, e não impedir uma
criança negra de frequentar o colégio religioso dos brancos. Pecado era ter
maus pensamentos, e não pagar, em uma noite, por uma garrafa de vinho, o que o
garçom que abastecia as taças não ganhava em três meses de trabalho.
Como
ressaltou Max Weber, o cristianismo dotou de espírito o capitalismo. Há que ter
fé na mão invisível do mercado, assim como se crê no Deus que não se vê. Há que
estar convencido de que tudo depende de méritos pessoais, e que a pobreza
resulta de pecados capitais como a preguiça e a luxúria. Há que ter presente
que muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos para desfrutarem, já na Terra,
as alegrias que o Senhor promete aos eleitos nas mansões celestiais...
Não foi o
cristianismo que converteu o Império Romano, na época de Constantino. Foram os
romanos que converteram a Igreja em potência imperial. Do mesmo modo, não foi o
cristianismo que evangelizou o Ocidente, foi o capitalismo ocidental que o
impregnou com seu espírito de usura, de individualismo, de competitividade. E o
que a história nos expõe como resultado?
Todas as
nações escravocratas da modernidade eram cristãs. Eram cristãs as nações que
promoveram o genocídio indígena na América Latina. É cristão o país que cometeu
o mais grave atentado terrorista de toda a história, ao calcinar milhares de
pessoas com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. Eram cristãos os
governos que deflagraram as duas grandes guerras do século XX. Ostentavam o
título de cristãs as ditaduras que, no século passado, proliferaram na América
Latina, patrocinadas pela CIA. São cristãos os países que mais devastam o meio
ambiente. Como são cristãos os que mais produzem pornografia e abastecem o
narcotráfico. São cristãs muitas nações, como o Brasil, na qual a desigualdade
social é gritante.
De que
diabos de cristianismo estamos falando? Certamente não daquele que refletiria a
prática e os valores testemunhados por Cristo.
Jesus veio
fundar uma religião?
Fomos
educados na ideia de que Jesus veio fundar uma religião ou uma Igreja. Isso não
condiz com o que dizem os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, as
principais fontes sobre a pessoa de Jesus.
Em todos os
quatro evangelhos a palavra Igreja (ecclesia, em grego) aparece apenas duas
vezes, e assim mesmo em um único evangelista, Mateus. E os evangelhos comprovam
que Jesus foi severo crítico da religião vigente na Palestina de seu tempo,
basta ler o capítulo 23 de Mateus.
Já a
expressão Reino de Deus (ou Reino dos Céus, em Mateus) aparece mais de cem
vezes na boca de Jesus. O teólogo Alfred Loisy dizia que Jesus pregou o Reino,
mas o que veio foi a Igreja...
Jesus
viveu, morreu e ressuscitou no reino de César, título dado aos 11 primeiros
imperadores romanos. Desde o ano 63 antes de nossa era a Palestina estava sob o
domínio do Império Romano. Era mais uma província fortemente controlada
política, econômica e militarmente desde Roma. Toda a atuação de Jesus se deu
sob o reinado do imperador Tibério Cláudio Nero César, que permaneceu no poder
do ano 14 ao 37. A Palestina na qual viveu Jesus era governada por autoridades
nomeadas por Tibério, como o governador Pôncio Pilatos (que, curiosamente,
ficou imortalizado no Credo cristão) e a família do rei Herodes. Predominava
ali uma sociedade tributária dirigida por um poder central mantido pelos
impostos cobrados do povo, das comunidades rurais e das cidades.
Portanto,
falar de outro reino, o de Deus, dentro do reino de César, equivaleria a, hoje
em dia, falar de democracia em tempo de ditadura. Isso explica porque todos
nós, cristãos, somos discípulos de um prisioneiro político. Jesus não morreu de
hepatite na cama nem de desastre de camelo numa rua de Jerusalém. Como tantos
perseguidos por governos autoritários que foram presos, torturados e mortos,
ele também foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e condenado
à morte na cruz. A pergunta a se fazer é esta: que qualidade de fé têm, hoje,
os cristãos, que nem sequer reagem a essa desordem estabelecida, na qual,
segundo a Oxfam, 62 famílias detêm em mãos fortuna equivalente à soma da renda
de 3,6 bilhões de pessoas, metade da humanidade?
Ao
contrário do que muitos pensam, para Jesus o Reino de Deus não era algo apenas
lá em cima, no Céu. Era, sobretudo, algo a ser conquistado nesta vida e nesta
Terra. "Vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10,
10). E ele foi, por excelência, o homem novo, protótipo do que deverão ser
todos os homens e mulheres do ‘Reino’ futuro, a civilização do amor, da justiça
e da solidariedade.
As bases
desse projeto civilizatório e seus valores estão espelhados na prática e nas
palavras de Jesus. Se agirmos como ele, esse novo mundo haverá de se tornar realidade.
Esta é a essência da promessa de Jesus.
A
centralidade do humano
Você pode
não ter fé cristã e até mesmo aversão à Igreja. Mas você trilha a senda de
Jesus se é uma pessoa faminta de justiça, despida de qualquer preconceito a
seres humanos, capaz de partilhar seus bens com os necessitados, preservar o
meio ambiente, ter compaixão e saber perdoar, e ser solidário às causas que
defendem os direitos dos pobres.
Jesus não
veio nos abrir a porta dos céus. Veio resgatar a obra originária de Deus, que nos
criou para viver em um paraíso, conforme o livro do Gênesis. Se o paraíso não
se realizou, é porque abusamos de nossa liberdade na ânsia de tornar meu o que,
de direito, é de todos.
Jesus não
veio como um extraterrestre que nos traria um catálogo de verdades estranhas ao
nosso mundo. Veio re-velar, desvelar, tirar o véu, ou seja, nos fazer enxergar
o que já é parte do nosso proceder, do nosso cotidiano, mas que não tínhamos
ideia de seu valor transcendente.
Ele veio
nos alertar: o mundo que Deus quer tem esse perfil, essas características!
Mundo no qual não há excluídos, famintos, injustiçados. Mundo no qual a
solidariedade reina sobre a competitividade e a reconciliação sobre a vingança.
Esse
projeto de Deus, anunciado por Jesus, tem a sua centralidade, não em Deus, mas
no ser humano, imagem e semelhança de Deus. Só na relação com o próximo se pode
amar, servir e cultuar Deus.
Os
missionários que colonizaram a América Latina queimaram indígenas, como o
cacique Hatuey, em Cuba, por cultuarem outro deus que não o dos cristãos. Ora,
Jesus não pregou aos fariseus e saduceus um outro Deus, diferente daquele
cultuado pelos judeus no Templo de Jerusalém. Pregou que o ser supremo para o
ser humano é o ser humano. Em Mateus 25, 31-46, Jesus se identifica com o faminto,
o sedento, o imigrante, o desnudado, o enfermo e o prisioneiro. E frisa que
serve a Deus quem liberta o próximo de um mundo que produz essas formas de
opressão e exclusão.
Portanto, o que Jesus veio introduzir
entre nós não foi uma Igreja ou uma nova religião. Foi um novo projeto
civilizatório, baseado no amor ao próximo e à natureza, e na partilha dos bens
da Terra e dos frutos do trabalho humano. Uma nova civilização em que todos
seriam incluídos: coxos, cegos, hansenianos, mendigos e prostitutas. E na qual
a vida, dom maior de Deus, seria por todos desfrutada em plenitude.
Como
alcançar tal projeto civilizatório? Jesus acentuou nitidamente que para isso é
preciso renunciar, como valores ou meta de vida, o ter, o prazer e o poder,
simbolizados nos episódios das tentações sofridas por ele no deserto (Lucas 4,
1-13). E ao contrário do que se supõe, quem o faz encontra o que todo ser
humano mais anseia, a felicidade ou, nos termos do Evangelho, a
bem-aventurança, explicitada por Jesus em oito vias que imprimem sentido
altruísta às nossas vidas (Mateus 5, 3-12). Há que ser solidário com os
excluídos, como o bom samaritano; compassivo, como o pai do filho pródigo;
despojado, como a viúva que doou ao Templo o dinheiro que não lhe era
supérfluo. Há que assegurar a todos condições dignas de vida, como na partilha
dos pães e dos peixes. Há que denunciar os que colocam a lei acima dos direitos
humanos e fazem da casa de Deus um covil de ladrões. Há que fazer de nossa
carne e de nosso sangue, pão e vinho para que todos, como irmãos e irmãs, em
torno da mesma mesa, comunguem o milagre da vida unidos por um só Espírito.
Ora, se
estamos de acordo com o fundamento de toda a pregação de Jesus – de que o ser
supremo para o ser humano é o próprio ser humano – então só nos resta perguntar
por que tantos seres humanos, neste mundo globocolonizado em que vivemos, estão
condenados, por estruturas injustas, à miséria, à exclusão, à imigração
forçada, à morte precoce, enfim, a uma vida de sofrimento e opressão.
E tenham ou
não fé em Deus, todos que se empenham em combater as causas da injustiça fazem
a vontade de Deus segundo a palavra de Jesus. E acreditam que esse "reino
de César” deve ser abolido para ceder lugar a um outro reino, no qual todos
terão assegurados, por suas estruturas, a vida em plenitude. E nisso se resume
o projeto de Deus para a história humana e a utopia anunciada por Jesus.
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* Frei Betto
é escritor, autor de "Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros
livros.