Achei bem interessante o artigo Morte de um filósofo, de Colby
Dickinson, em que o autor comenta o livro de Ross Romero, JS, Without
the Least Tremor. The sacrifice of Socrates in Plato’s Phaedo.
Para os interessados ou
amantes de temas filosóficos aqui temos uma interessante leitura. O texto foi
publicado em novembro do ano passado (2016).
Não deixe de ler!
WCejnóg
Revista IHU ON-LINE
17 Novembro 2016
Morte
de um filósofo
"O que
testemunhamos no belo estudo de Romero é uma leitura textual
rica e aprofundada do Fédon de Platão, bem como
uma série de comentários significativos sobre este diálogo, a fim de alcançar
uma interpretação luminosa sobre a morte de Sócrates".
O comentário
é de Colby Dickinson, professor de Teologia na Universidade Loyola de
Chicago e autor de Agamben and Theology, Between the Canon and the
Messiah: The Structure of Faith in Contemporary Continental Thought e
de Words Fail: Theology, Poetry, and the Challenge of
Representation, em artigo publicado por America, 21-11-2016. A
tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o
artigo
Capa do livro de M. Ross
Romero, sj. Foto: Divulgação
Without the Least Tremor
M. Ross Romero, SJ
SUNY Press. 176p.
Neste
clássico conto filosófico, Sócrates morre uma morte que tem sido
objeto de tanta especulação e controvérsia que se torna difícil determinar, ao
longo do tempo, o que exatamente foi conquistado, filosoficamente falando, por
meio de sua morte singular - se é que há algo. No entanto, a importância da
questão permanece: por que Sócrates fez isso? Por que ele bebeu do cálice que levaria
à sua morte iminente? Além disso, como dizem que Sócrates segurou o copo de
veneno que estava prestes a beber "sem o menor tremor", será que ele
sinalizou através desta determinação firme o seu desejo de produzir uma outra
maneira de perceber a morte e, neste caso em particular, a morte do filósofo? O
que M. Ross Romero tenta fazer neste livro, cujo título
reflete o significado da frase de Platão, é nada menos do que permitir uma interpretação memorável em que a
nossa visão contextual de antigos rituais gregos de sacrifício, vistos a partir
de uma perspectiva religiosa, nos permita constatar que as ações de Sócrates
podem ter tido como objetivo "transformar o propósito do sacrifício"
por completo.
De Søren
Kierkegaard a Michel Foucault e Jacques Derrida (embora apenas o último seja mencionado
diretamente no livro), a morte de Sócrates e a releitura
radical dos antigos autocuidados gregos que tal ato pode levar-nos a
reconsiderar foram um ponto crucial de comparação e contraste com a teologia.
Tais discussões são recontadas por Romero como uma confirmação
final do desejo de Sócrates de levar a filosofia aos seus
limites, neste caso, os limites entre a vida e a morte, e entre o corpo e a
alma. Pensar que poderia se tratar da morte de qualquer filósofo, não apenas de
Sócrates, também nos dá uma razão para parar e refletir sobre como as ações de
Sócrates dão lições àqueles que procuram viver a vida examinada - vida
filosófica - acima de tudo.
O que
testemunhamos no belo estudo de Romero é uma leitura textual
rica e aprofundada do Fédon de Platão, bem como
uma série de comentários significativos sobre este diálogo, a fim de alcançar
uma interpretação luminosa sobre a morte de Sócrates.
Desde o
início, Romero esclarece que, em alguns aspectos, dá um passo
além a partir da análise recente de Catherine PickStock, fazendo
uma tentativa de associar comentários sobre as ações de Sócrates a
uma dimensão religiosa pouco trabalhada, ideia perspicaz desenvolvida a partir
da obra de Adriaan Pepperzak. Ao explorar os paralelos muitas vezes
despercebidos entre o sacrifício ritualístico antigo no contexto grego e as
palavras e ações de Sócrates que antecederam sua morte, Romero nos guia em uma
reconsideração pungente de como a morte de Sócrates intencionalmente tanto
reflete quanto não reflete tais sacrifícios, isto é, "esta concepção da
cena da morte considera-a uma mistura, um entrelaçamento cuidadoso, da
semelhança e da diferença - do sacrifício ritual e seu outro".
Através da
imitação de antigos rituais de sacrifício (muito da reflexão
oportuna de Romero se encontra nesta comparação), Sócrates consegue
produzir um contraste significativo com tais ritos reproduzindo de maneira
efetiva o que é central para a sua utilização ao mesmo tempo em que os modifica
de maneiras muito específicas. Ao demonstrar como o sacrifício ritualístico
mantém uma boa relação, ou proporcionalidade, entre os humanos e o divino,
através do aparente autossacrifício de Sócrates, Romero detecta um
nível que não é compatível com essas interpretações. Concentrando-se na
desproporção entre corpo e alma, o discurso de Sócrates no Fédon enfraquece
qualquer sentido de proporcionalidade (humano/divino, corpo/alma) estabelecido
pelo espetáculo da ritualística do sacrifício.
O que
Sócrates apresenta aos seus ouvintes, em vez da proporcionalidade esperada, é,
nas palavras de Romero, um "logos da alma", que se retrata "como
se" não fosse a si próprio, mas como outro para si. Tal inversão dos
códigos de sacrifício é nada menos que uma contestação radical de seus
mecanismos culturais e políticos, que governam a sociedade tanto na época de
Sócrates quanto em nossa própria.
Até que
ponto essa inversão deliberada dos códigos de sacrifício ritual na Grécia
antiga aponta igualmente para o desafio do sacrifício (para não
mencionar as várias teorias da expiação) dentro da história do cristianismo não
é tão discutido em sua leitura quanto o leitor esperaria. Tal contraste foi
precisamente o que intrigou Kierkegaard
anos atrás. No entanto, o que se vê é uma paródia
radical do sacrifício, que abre caminhos a outras maneiras de perceber as ações
de Sócrates. Essencialmente, a morte de Sócrates sugere que seus
seguidores mais ardentes levem mais a sério do que nunca a vigilância
necessária para levar a vida examinada e para superar os obstáculos da
arrogância e da desesperança, a fim de aprender a cuidar do dom de si mesmo e
compreender a si mesmo como um "logos encarnado".
Fonte: Revista IHU ON-LINE