Excelente artigo: O “novo” velho golpe, do sociólogo Jessé Sousa. Penso que a sua leitura pode ajudar muito a
quem realmente procura entender os fatos e a situação política e social do
nosso Brasil para poder construir uma opinião própria, mais objetiva e justa. É
muito importante saber separar a verdade das mentiras propositalmente “servidas”
à sociedade brasileira.
O artigo foi publicado dia 16 de Janeiro deste ano (2018) por Carta Capital.
Vale a pena ler!
WCejnóg
16/01/2018
O “novo” velho golpe
por Jessé Souza* — publicado 16/01/2018
Desde 1930,
por obra da oposição a Vargas, o Brasil repete um mesmo roteiro
Luiz Carlos
Murauskas/FolhaPress
A mídia
oferece uma fraude diária ao público
por meio da distorção sistemática da
realidade
A sociedade
brasileira foi vítima, a partir de 2013, de um dos ataques mais insidiosos e
virulentos do capitalismo financeiro internacional.
O ataque
teve um sentido duplo: quebrar a nascente experiência do BRICS enquanto tentativa
de inserção internacional autônoma do País e transformar o Orçamento público
por meio da dívida pública – gigantesca fraude de socialização de prejuízos e
privatização de lucros –, além das riquezas nacionais, em um espaço livre para
a rapina econômica de uma ínfima elite.
Como as
outras frações dos proprietários, incluídos o agronegócio e a indústria, retiram
seu lucro maior, crescentemente, da mesma fraude, a fração financeira do
capital passa a ter o comando do processo econômico e do processo político.
O
capitalismo financeiro não é apenas uma nova ordem econômica mundial. Ele não
muda apenas a forma e a velocidade da acumulação do capital e a forma do
controle do processo de trabalho.
Também
criminaliza e estigmatiza a esfera política para que esta perca qualquer
autonomia e a agenda predatória financeira possa impor-se sem qualquer
restrição. E, acima de tudo, deseja evitar a mediação política como expressão
de interesses das classes populares.
Daí a
criminalização dos movimentos populares, o ataque aos sindicatos e a
estigmatização dos partidos de esquerda. Na dimensão simbólica, o ataque foi
planejado há décadas pela disseminação de think tanks conservadores no mundo e
pela compra e cooptação da indústria cultural e da mídia.
O núcleo
duro da nova forma de poder é bifronte: o capital financeiro assalta a
população e legaliza sua corrupção pela compra da política e do Judiciário. E a mídia frauda o público por
meio da distorção sistemática da realidade.
Essa
estratégia de manipular as mentes para assaltar o bolso dos imbecilizados tem
sólida tradição no Brasil. Como mostro no meu livro mais recente (A Elite do
Atraso, Leya, 2017), a elite paulistana construiu a criminalização seletiva da
política, contra Getúlio Vargas e seu projeto nacional, ao cooptar a elite
intelectual e fundar a imprensa elitista e venal que hoje possuímos.
A ascensão de Vargas, com o
apoio da classe média “tenentista”, havia mostrado à elite a necessidade do
controle da heterodoxia rebelde da classe média letrada. Se em relação à classe
trabalhadora e à “ralé” de marginalizados a violência material e física era, e
continua a ser, o tratamento “normal”, em relação à classe média a estratégia
teria de ser outra.
O movimento dos tenentes assustou os donos do poder
e exigiu uma pronta reação
Como a
pequena elite precisa da classe média como sua aliada carnal no exercício
diário da dominação econômica social e política, esta tem de ser seduzida e
conquistada. Daí a estratégia de convencimento e não de repressão. Para
“convencer” é preciso ideias e uma imprensa elitista e venal para
distribuí-las.
Essa elite criou a USP como seu gigantesco think tank do liberalismo conservador brasileiro e a tornou universidade de referência nacional, que forma os professores e estipula os critérios das outras instituições de ensino superior.
Assim, temos
a formação de todas as elites nacionais segundo uma referência comum, as ideias
centrais de patrimonialismo e de populismo, ambas
criadas e difundidas pela USP.
A primeira
tese sustenta que a corrupção é só do Estado e da política para tornar
invisível a corrupção do mercado, possível pela captura do poder público
enfraquecido e criminalizado. Depois, ainda diz que a elite do mal está no
Estado, tornando o mercado um espaço idealizado de virtudes como
empreendedorismo, honestidade, trabalho duro e iniciativa individual.
O conceito
de populismo serve, por sua vez, para tornar as classes populares suspeitas de
burrice inata e, portanto, presas fáceis de líderes demagógicos e manipuladores. Com isso, de uma penada, pode-se mitigar o efeito do princípio da
soberania popular e tornar suspeita qualquer liderança popular. São essas
ideias, distribuídas desde então todos os dias, que envenenam a capacidade de
reflexão da população.
Não
bastasse, criou-se uma narrativa histórica de longa duração, baseada nessa
visão distorcida, possibilitando uma singularidade “vira-lata”, hoje patrimônio
indissociável de todo brasileiro. É que a corrupção dos tolos, só do Estado e
da política, passa a ser percebida como herança portuguesa e ensinada não só
nas universidades, mas a toda criança brasileira na escola.
O ridículo
dessa crença, que supõe já existirem no século XIV em Portugal noções que só
seriam criadas no século XVIII, entre elas a ideia moderna de bem público, que
pressupõe o conceito de soberania popular, não parece ter incomodado ninguém.
Uma tese bastante difundida prega que a corrupção
só existe no Estado.
O mercado seria um poço de virtudes, eficiência e
meritocracia (Acervo Jornal da USP)
O ponto
decisivo, ao arrepio da verdade e da inteligência, é inverter o sentido de
apropriação privada do público como atributo do Estado e da política e nunca do
mercado e da elite de proprietários.
Sem o
esclarecimento dessa pré-história, a conjuntura atual é incompreensível. O
golpe de 2016 é uma continuidade aprofundada e mais cruel dessa grande fraude
brasileira iniciada em 1930. Todos os golpes de Estado desde
então tiveram exatamente o mesmo roteiro.
No mais
recente, não apenas se reverberou a mentira pronta de cem anos da corrupção dos
tolos e do populismo. Sob o comando da Rede Globo e da farsa da Operação Lava
Jato, atacou-se o próprio princípio da igualdade social como maior valor do
cristianismo e da cultura ocidental.
O ataque
seletivo ao PT, entre 2013 e 2016, como “organização criminosa”, narrativa
criada pela Globo e depois assumida pela própria Lava Jato, desnudando seu
conluio midiático e elitista, é o principal elemento da conjuntura.
O PT, com
todos os seus defeitos, foi a única verdadeira novidade da política brasileira
nesses últimos cem anos. Um partido que nasceu, em grande medida, de baixo para
cima, espécie de confederação de movimentos sociais e associações de
trabalhadores do campo e da cidade que procurou assegurar uma pequena parte da
riqueza social e do Orçamento público para a maioria carente.
Ao
criminalizar tão somente o Partido dos Trabalhadores, enquanto se “fulaniza” a corrupção das demais legendas, conseguiu-se
rebaixar a própria demanda por igualdade que o PT simbolizava para as classes
populares, de fim moral mais alto em simples meio para um suposto saque ao
Estado.
Para onde
vão o ressentimento e a raiva justa que os excluídos sentem por causa da
exclusão? Sem expressão racional e política possível, o ressentimento popular
transforma-se em massa disforme de anseios, medos e desejos irracionais à
procura de expressão. Esse é o verdadeiro pano de fundo para as eleições de
2018.
Jair
Bolsonaro, como ameaça real, só é compreensível pela ação conjunta do conluio Globo-Lava Jato. Por sua
vez, a imunidade parcial de Lula a uma desconstrução orquestrada é reflexo da
inteligência prática das classes populares que percebem a política como o jogo
dos ricos e corruptos, e querem saber unicamente o que sobra para eles. E foi
Lula quem entregou algo a quem nunca teve nada.
Apesar do
sucesso pragmático inicial, o golpe perde legitimidade a cada dia. Seu
planejamento míope e de curto prazo cobra agora um alto preço daqueles que
sujaram as mãos pela elite do saque, a começar pela mídia venal que arriscou
seu capital de confiança. E passa pela casta jurídica que acobertou a Lava Jato
e destruiu a segurança jurídica e pela política tradicional, que perdeu
qualquer legitimidade.
Articuladores
tão medíocres fizeram com que, pela primeira vez nestes cem anos de domínio material e simbólico da
elite do saque, as entranhas do País real estejam à mostra como nunca dantes.
Tudo que era sólido se desfez no ar. Todas as ideias que colonizavam a direita
e a esquerda também.
O discurso dos progressistas e dos movimentos
sociais não pode ser de volta ao passado, mas se apoiar no aprendizado de um
novo futuro. Não há como escapar do desafio
(Foto: Ricardo Stuckert/Instituto
Lula)
As
oportunidades abertas pelo fracasso na legitimação do golpe são
revolucionárias. Elas podem efetivamente permitir expor a crueldade do domínio
de uma elite mesquinha e de seus prepostos hipócritas na mídia e no aparelho de
Estado. Abre-se a possibilidade objetiva de um processo de aprendizado
histórico inédito no Brasil.
O problema
real da oposição de “esquerda” é que ela foi criada nesse mesmo jogo e, ainda
pior, nas mesmas ideias. A esquerda é tão miopemente moralista quanto a direita.
Também não possui ideias próprias sobre o funcionamento da sociedade ou do
Estado.
Daí ter
perdido a narrativa da ascensão social, que ela
mesma produziu, para as igrejas evangélicas. Daí ter aparelhado e dado força a
instituições de Estado que depois a perseguiram com sanha assassina.
Como em toda
crise radical temos agora em 2018 tanto a possibilidade do caos quanto a
oportunidade do novo. O discurso da esquerda não pode ser o da volta ao
passado, mas o do aprendizado de um novo futuro. O desafio é difícil, mas
incontornável.
Fonte:
CartaCapital