Existem
assuntos importantes que fazem parte do jogo de poder, principalmente do poder
econômico, e isso na escala mundial. A tributação de grandes fortunas é um
desses temas. No Brasil, ao longo das últimas décadas, as elites conseguem
manter os seus privilégios, frustrando qualquer tentativa de reforma nesse
campo.
Como
entender essa questão? Muitas vezes fica difícil para um simples cidadão formar
uma opinião própria mais correta e justa.
A
matéria que trago hoje para o blog Indagações-Zapytania é a entrevista "Não discutir impostos sobre riqueza é
loucura", com o economista francês Thomas Piketty, que pode servir de ajuda
para quem estiver interessado em entender um pouco mais a importância,
necessidade e a urgência de um país resolver esse problema.
A entrevista foi realizada por Miguel
Martins há três anos atrás (publicada
por CartaCapital em 2014), mas continua atual e interessante.
Vale a pena ler!
WCejnóg
01/12/2014
"Não discutir impostos sobre riqueza é
loucura"
por Miguel Martins
No Brasil, a simples
menção a um aumento nos impostos é garantia de turbulência para o governo. No
caso do tributo sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal e
jamais aplicado, o tema só foi lembrado nas eleições deste ano por partidos de
esquerda como PSOL e PSTU. Durante a campanha, Dilma Rousseff nem ousou pisar
no terreno espinhoso. Nos países desenvolvidos, cujas fortunas chegam a superar
em seis vezes a renda nacional, a criação de taxas para limitar os ganhos de
capital já começou. Em 2012, a França aprovou uma alíquota de 75% sobre as
maiores riquezas do país.
O economista francês
defende o aumento dos tributos
sobre heranças e fortunas no País
e afirma que a
fatia de riqueza dos 10% mais ricos está sendo subestimada.
Não à toa, trata-se da
terra natal de Thomas Piketty, economista alçado ao status de celebridade após
entrar para a lista dos autores mais vendidos do New York Times por
seu livro O Capital No Século XXI, lançado no Brasil pela editora
Intrínseca. O sucesso explica-se não apenas pela densidade de sua base de
dados, responsável por atestar o grande aumento da desigualdade de renda nos
países ricos do Ocidente a partir da década de 1970. O livro inspira-se na
tradição historiográfica francesa ao enxergar política, economia e cultura como
dimensões integradas, e as relaciona com notável erudição. Por esse motivo,
Piketty se vê mais como um cientista social e menos como um economista.
De passagem pelo Brasil,
o pesquisador concedeu uma entrevista a CartaCapital.
Simpático, fez questão de reiterar inúmeras vezes a necessidade dos países
adotarem impostos mais onerosos às grandes fortunas para impedir a acumulação
crescente dos 10% mais ricos no planeta. "A limitação da concentração é a
saída para fazer da propriedade privada algo temporário", diz.
"É como dizer: 'Você é o dono, mas não para sempre. Se você continuar
investindo e trabalhando, poderá manter essa propriedade. Se mantiver seu
capital parado, iremos distribuí-lo.".
Afinado com a realidade
política e econômica brasileira, Piketty defende o aumento de impostos sobre as
heranças no País, até 10 vezes inferiores aos da Alemanha e dos Estados Unidos,
e critica o grande volume de tributos indiretos, a alta taxa de juros e a falta
de transparência nos dados da Receita Federal para grandes fortunas. Sobre
programas como o Bolsa-Família, defende sua importância na redução da pobreza,
mas considera ainda mais relevante a política de valorização do salário mínimo.
A dificuldade em debater o aumento dos impostos sobre riqueza e patrimônio no
país o surpreende. "Não discuti-los no Brasil é uma loucura. Todos os
países têm impostos sobre herança muito superiores ao brasileiro. Você não
precisa ser de esquerda para defender essa medida. Por acaso Angela Merkel ou
David Cameron são de esquerda?"
Entrevista
CartaCapital: Professor,
um dos aspectos mais interessantes de seu livro é o diálogo apresentado entre a
economia e as outras humanidades, em especial a história. Há uma forte base da
história social de Fernand Braudel e Geroges Duby em seu trabalho. Trata-se de
uma abordagem rara atualmente. Por que é tão difícil encontrar estudos
econômicos interdisciplinares no contexto atual?
Thomas Piketty: Eu
estou muito feliz que você diga isso, pois eu gostaria que meu trabalho se
situasse na tradição de Braudel e outros historiadores franceses. Em 1995,
deixei o MIT, nos Estados Unidos, para retornar à França, e fui para a Ecóle de
Hautes Etudes en Ciencies Sociales, onde Braudel era o presidente, havia
grandes historiadores, sociólogos como Pierre Bourdieu. Mas também fui influenciado
por economistas anglo-saxônicos como Simon Kuznets, que foi um dos pioneiros na
coleta de dados sobre distribuição. Eu tento combinar essas duas tradições. As
fronteiras entre economia, história e sociologia são tênues demais. A divisão é
bem menos clara do que os economistas imaginar ser. Me vejo mais como um
cientista social.
CartaCapital: Seu
livro mostra como as duas guerras mundiais e suas consequências econômicas
proporcionaram uma forte distribuição de renda. Todavia, em momentos de maior
harmonia comercial e econômica entre as potências, como ocorreu na Belle Époque
do fim do Século XIX e está ocorrendo atualmente, a riqueza acumulada pode
superar e muito a renda nacional. Karl Marx não estava certo sobre o acúmulo
infinito de capital ao menos em momentos de paz?
Thomas Piketty: Acho
que ele estava um pouco certo, mas também errado em alguns pontos. No tempo em
que ele escreveu, havia uma grande acumulação de capital e toda a nossa base de
dados indica uma longa estagnação dos salários no Reino Unido e na França,
entre 1800 e 1870, mesmo com a revolução industrial. Por isso, foi uma
observação tão forte. Mas vejo erros em alguns pontos. A sua primeira limitação
é o que ocorreria após a abolição da propriedade privada. Os países que o fizeram
não foram capazes de organizar a sociedade e o Estado, foi um grande desastre.
É fácil perceber o tamanho da acumulação de capital excessiva, mas é difícil
pensar nas boas e democráticas soluções para limitar o poder do capital, entre
elas o estabelecimento de impostos progressivos.
Não é por conta do
desastre das experiências socialistas que precisamos parar de pensar nisso. A
limitação da concentração da riqueza é uma saída para fazer da propriedade
privada algo temporário. É como dizer "você é o dono, mas não para sempre.
Os impostos vão tirar parte de sua propriedade ao longo do caminho. Se
continuar a investir e trabalhar, poderá manter essa propriedade, mas se
mantiver seu capital parado, iremos distribuí-lo".
CartaCapital: No
Brasil, a discussão do imposto sobre grandes fortunas é vista por muitos como
uma agenda radical da esquerda. Na campanha eleitoral, Um dos únicos partidos a
tocar abertamente no assunto foi o PSOL, cuja representação no Congresso é
tímida. O senhor considera a proposta de esquerda?
Thomas Piketty: O
Brasil poderia ter um sistema de imposto mais progressivo. O sistema é bastante
regressivo, com altas taxas sobre o consumo para amplos setores da sociedade,
enquanto os impostos diretos são relativamente pequenos. As taxas para as
maiores rendas é de pouco mais de 30%, é tímido para os padrões internacionais.
Países capitalistas taxam as principais rendas em 50% ou mais. Os impostos
sobre herança e transmissão de capital são extremamente reduzidos, apenas 4%.
Nos Estados Unidos é 40%, na Alemanha é 40%. Não discutir a cobrança de
impostos sobre a riqueza no Brasil é uma loucura. É tudo muito ideológico.
Todos os países têm imposto sobre herança muito superiores ao brasileiro. Você
não precisa ser de esquerda para defender essa medida. Por acaso
Angela Merkel ou David Cameron são de esquerda?
O Brasil precisa de um
sistema mais progressivo de impostos. Deveria haver uma redução de impostos
indiretos. O PT poderia ir nessa direção, é uma forma de ter um sistema mais
transparente e trazer mais confiança para o governo. Eu entendo que o PT está
buscando um novo projeto para este mandato. Uma grande reforma tributária seria
importante.
CartaCapital: O caso
francês é uma referência?
Thomas Piketty: O
imposto sobre a fortuna é uma evolução importante. O problema na França e na
Europa é que só agora estamos mudando para um transmissão automática de
informação entre os países sobre ativos financeiros transnacionais. Até agora,
se você tinha uma conta bancária na Suíça, a receita francesa não possuía a
informação. É muito difícil controlar a cobrança de impostos em um continente
com tamanha integração econômica e fluxos livres de capital. É necessário mais
cooperação, e acho que vamos seguir nesta direção.
CartaCapital: No
debate da USP, na quarta 26, o senhor discutiu suas ideias com André Lara
Resende, ex-presidente do BNDES no governo Fernando Henrique Cardoso, e Paulo
Guedes, um dos fundadores do instituto Millenium, dois economistas de posição neoliberal
e contra impostos sobre a riqueza. É um tipo de reação comum que o senhor tem
testemunhado?
Thomas Piketty: Sempre
há grupos de pessoas com diferentes reações. Muitas pessoas no Ocidente querem
adiar o imposto sobre a riqueza. Eu entendo que os dois economistas com quem
debati são também homens de negócios, talvez não economistas bilionários, mas
eles querem adiar o máximo possível. Eles são a favor de um aumento dos
impostos sobre herança, o que já é algo. O que me surpreende é ter conhecido muita
gente a favor do imposto sobre herança, mas não ver ações concretas neste
sentido.
CartaCapital: O
senhor também comentou no debate sobre suas dificuldades em acessar os dados
anuais consolidados da Receita Federal no Brasil, principal fonte de sua pesquisa
em 20 países. Quais são os maiores entraves?
Thomas Piketty: Quando
há apenas o sistema de pesquisas domiciliares para se medir a distribuição de
renda, você tende a subestimar a desigualdade. Os 10% mais ricos em particular
não são bem registrados em pesquisas com famílias. Na maior parte dos países,
quando há imposto de renda, os governos publicam balanços anuais detalhados. No
Brasil, o governo não está publicando estas informações de forma transparente.
Fomos capazes de encontrar os balanços de imposto de renda entre 1963 e 1999. A
partir desse ano a base parece ter desaparecido. Recentemente, algum acesso foi
dado a um grupo de economistas brasileiros, do professor Marcelo Medeiros, da
UnB, relativo ao período de 2006 a 2012. O fim da publicação da base
de dados em papel pode ter contribuído para isso. Muitas vezes há mais
restrição para acessar os dados informatizados.
Em termos gerais, há uma
falta de transparência na base de dados do imposto de renda no Brasil. As
conclusões preliminares de Medeiros mostram um nível de desigualdade bem maior
do que aquele aferido pelas pesquisas domiciliares. Ao tomar como referencia os
dados da receita entre 2006 e 2012, houve inclusive um aumento na concentração
dos 10% mais ricos, que saltou de 50% para 55% da renda total.
CartaCapital: Embora
não seja tanto o foco da sua pesquisa, como o senhor vê os programas de
transferência de renda no Brasil como o Bolsa Família?
Thomas Piketty: Olho
bastante para base a pirâmide. Me preocupo muito no livro com os 50% mais
pobres. O Bolsa Família tem sido um imenso sucesso, o que contribui para a
redução da extrema pobreza e o aumento da renda dos mais pobres. A parte dos
impostos tem peso em meu livro, mas a transferência também. No caso brasileiro,
mais importante ainda é a política de valorização do salário mínimo.
Isso foi muito positivo.
Quaisquer que sejam os dados, a diminuição da miséria no Brasil é um fato,
pelas políticas introduzidas pelo PT. Mas é possível ainda que os 10% mais
ricos tenham ampliado sua distância. Pode ser ter ao mesmo tempo uma diminuição
da pobreza e um aumento da desigualdade. É um erro imaginar que o Brasil já fez
o suficiente em termos de redução da pobreza.
CartaCapital: O
Brasil tem uma taxa de juros alta, superior a 11%. Quais os riscos desse alto
patamar para o futuro da distribuição de riqueza no País?
Thomas Piketty: Há
limites com o que você pode fazer com política monetária. Precisamos de mais
políticas e reformas fiscais. Inflação pode ser importante em alguns casos para
distribuir renda, mas muitas vezes não têm funcionado. O Brasil paga muito mais
em juros do que está colocando no Bolsa Família. Se você realmente quer
distribuir riqueza e limitar o acúmulo e concentração de capital, é necessário
um sistema mais progressivo. Para mim, os impostos progressivos sobre riquezas
privadas são uma forma civilizada de inflação. A inflação geralmente pune
cidadãos com pouco dinheiro em suas contas bancarias.
CartaCapital: Qual a
sua visão sobre o sistema de Bretton Woods hoje e qual o potencial do banco dos
Brics, recém-criado?
Thomas Piketty: Precisamos
de um sistema multipolar e faz sentido uma instituição coordenada pelos Brics.
Também acredito que esse sistema deveria envolver uma Europa mais forte e o
fortalecimento do Euro. Não é bom ter apenas dois países hegemônicos. O poder
do dólar é bom para os Estados Unidos, mas não para o resto do mundo.
Especialmente pelo
sistema legal por trás do dólar. Recentemente, a Argentina teve de pagar uma
dívida bilionária da noite para o dia. Na França, o maior banco, o BNP Paribas,
foi subitamente acionado a pagar uma multa enorme pelo sistema judicial norte-americano.
Isso é errado. Nós todos nos beneficiaríamos de um sistema multipolar, com
alternativas. Se você não está feliz com o dólar e o sistema jurídico por trás
da moeda, você deve poder recorrer a outros sistemas.
Fonte:CartaCapital.com.br
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