O texto “Não houve eleição e não há presidente” do
filósofo e escritor brasileiro nascido no Chile, Vladimir Pinheiro Safatle* mostra
com muita clareza o jogo político das elites brasileiras, que fizeram (e
continuam fazendo!) de tudo para voltar a dominar o cenário político e
econômico do Brasil. Para quem estiver realmente interessado em entender melhor
o que de fato está acontecendo hoje no Brasil, o texto oferece uma excelente
ajuda e oportunidade.
A matéria foi publicada recentemente no El
País. Trago-a também para este espaço para ajudar um pouco na sua divulgação.
Não deixe de ler!
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Não houve eleição e não há presidente
O que vimos foi simplesmente um processo sem condição alguma de preencher
critérios básicos de legitimidade. Ou seja, uma farsa.
30 Jul 2019
Bolsonaro e equipe participam da 17ª Reunião do
Conselho de Governo,
nesta terça-feira. Marcos Corrêa PR
Desde que a
opinião pública brasileira descobriu a natureza das mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol ficou
claro que não houve nada parecido a eleições minimamente legítimas no ano de 2018.
O que vimos foi simplesmente um processo sem condição alguma de preencher
critérios básicos de legitimidade. Ou seja, uma farsa, mesmo para os padrões
elásticos da democracia liberal.
Como todos sabem, as mensagens demonstraram algo
cuja descrição correta só pode ser uma rede de corrupção envolvendo membros do
poder judiciário. Pois é corrupção do estado toda ação feita tendo em vista a
distorção de procedimentos legais para benefício próprio. O sr. Moro e seus
asseclas utilizaram dinheiro público como se fosse privado (no caso do pedido
do sr. Dallagnol para uso de 38.000 reais da 13ª Vara para o pagamento de
campanha publicitária), aproveitaram-se financeiramente da condição de
servidores públicos com informações privilegiadas (ao, em meio a processo
envolvendo alguns dos maiores agentes econômicos nacionais, serem pagos em
palestras milionárias), tentaram tomar para si a gestão de 2,5 bilhões de reais
da Petrobras por meio da criação de uma fundação privada: tudo em nome ao
combate à corrupção.
Como se isto não bastasse, o sr. Moro foi flagrado
“melhorando provas”, agindo juntamente com procuradores para fazer do
julgamento de um dos mais importantes casos da política brasileira uma simples
encenação. Pois todos, independente de quem sejam, têm o direito a um
julgamento justo e imparcial. Mas isto não aconteceu no caso que estava sob sua
jurisdição.
Seus apoiadores afirmam que era necessário “quebrar
as regras” para conseguir enfim combater o pior de todos os males que assola
esse país desde o momento que suas terras foram invadidas por portugueses, a
saber, a corrupção. No entanto, ninguém precisa acreditar nessa história
cínica. Na verdade, o sr. Moro quebrou todas as regras possíveis para benefício
próprio, ou seja, para prender o candidato à Presidência que impedia seu
próprio projeto pessoal de se tornar presidente em 2022. Ninguém que tem
interesse pessoal em um processo pode ser o juiz do mesmo. Mas como ninguém
parou o sr. Moro, ele pode ser agora catapultado para o centro da política brasileira
pelas mãos de um político que ele, mais do que ninguém, elegeu ao tirar o
primeiro colocado de circulação, ao alimentar o noticiário com notícias
construídas tendo em vista o calendário eleitoral. Que ninguém se engane. Este
senhor já está em campanha, sua mulher já está em campanha, seus apoiadores já
estão em campanha.
Por outro lado, não precisou mais do que sete meses
para o Governo que ele ajudou a eleger demonstrasse sua própria rede de
corrupção. Casos de financiamento ilegal no partido deste que ocupa a
Presidência, envolvimento de seu filho senador em desvios de verba de gabinete,
envolvimento de sua família com milícias. A lista não é pequena.
Diante deste cenário, basta juntar os pontos para
tirar as reais consequências. O que vimos no ano passado foi uma eleição
fraudada, viciada, montada em todas as peças para ter o resultado que teve. Não
há razão alguma para respeitá-la. Uma eleição real pede partidos livres,
possibilidade de todos se candidatarem e não interferência de poderes extra-eleitorais
nos processos em curso. Não há eleição real quando se escolhe quem pode e quem
não pode concorrer.
O Brasil segue sem presidente. Quem está no poder
sabe tanto disto que sequer finge governar para a maioria do povo brasileiro. O
sr. Bolsonaro governa para os porões da caserna de onde saiu, além de governar
para consolidar a mobilização dos 30% da população brasileira que seguirão lhe
apoiando. Ele sabe que este é seu teto.
Seu ato sórdido de falar sobre um desaparecido político na cadeira de um barbeiro contando a história de seu pretenso
justiçamento por membros da luta armada, quando todas as informações do estado
mostram seu assassinato sob tortura não é “mais uma derrapada”. É um ato de
governo pensado e encenado. É a sua real concepção de governo e que consiste em
mudar paulatinamente o centro dos limites do intolerável. Os que dizem que “são
só palavras” não entendem nada sobre o que palavras realmente são. Palavras são
o que temos de mais real, pois sua circulação autoriza ações, violências,
afetos e túmulos.
Dividir para
crescer
No entanto, Bolsonaro sabe ainda algo mais. Algo
que seus opositores não sabem ou parecem não querer saber: que enquanto não
houver incorporação efetiva da maioria que não lhe apoia em um processo comum,
os 30% que lhe apoiam serão mais do que suficiente para ele continuar no
governo. Se há algo que deve nos preocupar não é exatamente o que faz o sr.
Bolsonaro, mas o que nós não fazemos.
Há algumas semanas, o país viu a maior derrota da
história da classe trabalhadora brasileira desde o início da ditadura militar. A reforma previdenciária aprovada em primeiro turno na Câmara não é
mero ajuste, mas a mudança estrutural das relações trabalhistas no país.
Apenas para ficar em um de seus pontos. Enquanto a
idade mínima para homens aposentarem passou para 65 anos, estados como
Maranhão, Piauí e Alagoas têm expectativa de vida masculina em torno de 67
anos. Nos bairros pobres da cidade de São Paulo, como Cidade Tiradentes, Jardim
Ângela, Anhanguera, Grajaú, Iguatemi a expectativa de vida varia de 54 a 57
anos. Na verdade, 36 dos 96 distritos paulistanos têm expectativa de vida
abaixo de 65 anos. Ou seja, essas pessoas simplesmente não irão se aposentar
mais. Elas estão condenadas a parar de trabalhar apenas no momento em que se
aprontarem para a morte.
Mas a reforma passou, em seu primeiro embate, com
um silêncio tumular vindo da oposição. É em relação a isto que devemos estar
realmente preocupados. No momento em que foi necessário um processo comum (já
que todos serão, de alguma forma, afetados), não havia nada capaz de
produzi-lo. Onde estávamos e o que realmente nos mobiliza neste momento? Todos
deveriam fazer uma autocrítica honesta, não apenas partidos e sindicatos, mas
todos, isto se não quisermos ser tragados por movimentos desta natureza mais
uma vez. Enquanto a capacidade de produção de força comum estiver fora de nosso
alcance, continuaremos a perder.
Isto pode parecer com mais um chamado em nome da
“unidade”. Mas valeria a pena precisar melhor esse ponto. Por mais paradoxal
que isto possa parecer, talvez precisemos agora de divisão para unir, e não de união.
É claro que essa operação parece um contrassenso para os que acham que a
política anda na mesma via dos sinais matemáticos. Mas, a despeito de seu
estranhamento, ela faz todo sentido.
Há certas situações nas quais é necessário dividir
para crescer. A oposição brasileira até agora sonhou com uma união em cima do
nada. Ela não definiu as rupturas que quer tomar para si, o horizonte de suas
novas lutas. Tentará ela ser, mais uma vez, o “good cop” do capitalismo
brasileiro ou estará enfim disposta a vocalizar rupturas até agora não
tentadas? Será ela o arauto do retorno a uma democracia que nunca existiu entre
nós ou assumirá enfim o desafio de romper e criar o que até agora não existiu?
Pregará ela o evangelho da “integração para todos” e do respeito a uma
emancipação de indivíduos proprietários ou estará disposta a ser a força de
desintegração que nos levará para fora do universo de propriedades? Essas
divisões podem criar novas alianças. Por isto, elas podem nos fazer crescer.
Fonte: El Pais
* Vladimir Pinheiro Safatle (Santiago do Chile,
3 de junho de 1973) é um Filósofo, escritor e músico brasileiro nascido no
Chile. É professor titular da cadeira de Teoria das Ciências Humanas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Notabilizou-se ao grande público sobretudo por sua atividade como colunista no
jornal Folha de São Paulo. - Sua
produção intelectual centra-se nas áreas de epistemologia da psicanálise, psicologia,
pensamento hegeliano na filosofia do século XX e filosofia da música. Fonte: Wikipedia
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