Hoje trago para esta página mais um excelente artigo de Leonardo Boff, “O Covid-19 nos faz descobrir espírito no cosmos, no ser humano e em Deus”, que foi publicado recentemente pelo autor em seu site. É um texto extenso, porém, muito bom.
Hoje, quando todos
nós vivemos momentos muito estranhos e dramáticos por causa da pandemia do COVID-19,
uma boa leitura pode ser muito proveitosa. Leonardo Boff – parabéns e obrigado
por esse texto!
Vale a pena ler!
WCejnóg
Site Leonardo Boff
12/08/2020
O Covid-19 nos faz descobrir espírito no cosmos, no ser humano e em Deus
Vivemos numa época particularmente anêmica de
espírito. A falta de políticas governamentais por parte do atual Presidente
para atacar o Covid-19 mostra mais que falta de empatia e de solidariedade para
com os mais de cem mil mortos. Mostra, o que é mais grave, a falta de espírito.
Parece que o presidente vive ainda no estágio pré-humanos, dos primatas. Não
cuida nem ama a vidau, a vida de seu povo.
Acresce ainda que cultura do capital que se funda no consumo afogou o espírito na materialidade opaca. E sem espírito perdemos o que há de melhor em nós: a comunicação livre, a cooperação solidária, a compaixão amorosa, o amor sensível e a sensibilidade cordial pelo outro lado de todas as coisas, de onde nos vêm mensagens de beleza, de grandeza, de admiração, de respeito, de veneração e de transcendência.
Há uma das festas da tradição cristãs, das mais
importantes, Pentecostes, na qual os cristãos celebram a irrupção do
Espírito sobre amedrontados seguidores de Jesus. Transformou-os em corajosos
mensageiros de sua mensagem libertadora, alcançando-nos a nós até os dias de
hoje. Nesse momento trágico de afogamento do espírito que é o mesmo que o
assassinato da vida, deixada por conta de um vírus, que o atual Presidente
negacionista desconsidera como um simples gripe, cabe uma reflexão sobre o
espírito em minúsculo e sobre o Espírito em maiúsculo.
O espírito: primeiro no universo depois em nós
Somos singularmente portadores de grande energia. É o espírito em nós. O
espírito, na perspectiva da nova cosmologia (a ciência que estuda o surgimento
do universo, sua expansão e evolução, para onde se dirige, qual é seu sentido e
nosso lugar dentro deste processo), é tão ancestral quanto o cosmos. Espírito é
aquela capacidade que os seres, mesmo os mais originários, como os hádrions, os
topquarks, os prótons e os átomos tem de se relacionarem, trocarem informações
e de criarem redes de inter-retroconexões, responsáveis pela unidade complexa
do todo. É próprio do espírito criar unidades cada vez mais altas e elegantes.
O espírito primeiramente está no mundo; somente
depois está em nós. Entre o espírito de uma árvore e nós a diferença não é de princípio. Ambos são portadores de
espírito. A diferença reside no modo de
sua realização. Em nós seres humanos, o espírito aparece como autoconsciência e
liberdade. Na árvore por sua vitalidade e relações com o solo, com os raios
solares, as energias da Terra e do cosmos; ela sente, se relaciona, se nutre e
nutre a própria natureza sequestrando CO2 e dando-nos oxigênio sem o qual não
vivemos.
Espírito humano é aquele momento da consciência em
que ela se sente parte de um todo maior, capta a totalidade e a unidade e se dá
conta de que um fio liga e religa todas as coisas, fazendo com que sejam um
cosmos, e não um caos. Como se relaciona com o Todo, o espírito em nós nos faz
sermos um projeto infinito, uma abertura total ao outro, ao mundo e a Deus.
Portanto, a vida, a consciência e o espírito
pertencem ao quadro geral das coisas, ao universo, mais concretamente: à nossa
galáxia, à Via-Láctea, ao
sistema solar e ao planeta Terra, ao local onde vivemos. Para que tivessem
surgido, foi preciso uma calibragem refinadíssima de todos os elementos,
especialmente das assim chamadas constantes da natureza (velocidade da luz, as
quatro energias fundamentais, a carga dos elétrons, as radiações atômicas, a
curvatura do espaço-tempo entre outras). Se assim não fosse não estaríamos aqui
escrevendo sobre isso.
Refiro apenas um dado do livro do astrofísico
e matemático Stephen Hawking
intitulado “Uma breve história do tempo”
(2005): ”Se a carga elétrica do elétron tivesse sido ligeiramente diferente,
teria rompido o equilíbrio da força eletromagnética e gravitacional nas
estrelas e ou elas teriam sido incapazes de queimar o hidrogênio e o hélio, ou
então não teriam explodido. De uma maneira ou de outra a vida não poderia
existir” (p. 120). A vida pertence, pois, ao quadro geral das coisas e a vida
possuída pelo espírito.
O princípio andrópico fraco e forte
Para conferir alguma compreensão a essa refinada
combinação de fatores, criou-se a expressão “princípio andrópico” (que tem a ver com o homem). Por ele se
procura responder a esta pergunta que naturalmente colocamos: por que as coisas
são como são? A resposta só pode ser: se fosse diferente nós não estaríamos
aqui. Respondendo assim não cairíamos no famoso antropocentrismo que afirma: as
coisas só têm sentido quando ordenadas ao ser humano, feito centro de tudo, rei
e rainha do universo?
Há esse risco. Por isso os cosmólogos distinguem o
princípio andrópico forte e fraco. O forte diz: as condições iniciais e as
constantes cosmológicas se organizaram de tal forma que, num dado momento da
evolução, a vida e a inteligência deveriam necessariamente surgir. Essa
compreensão favoreceria a centralidade do ser humano. O princípio andrópico
fraco é mais cauteloso e afirma: as prá-condições iniciais e cosmológicas se
articularam de tal forma que a vida e a inteligência poderiam surgir. Essa
formulação deixa aberto o caminho da evolução que demais a mais é regida pelo
princípio da indeterminação de Heisenberg
e pela autopoiesis dos biólogos chilenos Maturana–Varela.
Mas olhando para trás, nos bilhões de anos,
constatamos que de fato assim ocorreu: há 3,8 bilhões de anos surgiu a vida e
há uns quatro milhões de anos, a inteligência. Nisso não vai uma defesa do
“desenho inteligente” ou da mão da Providência divina. Apenas que o
universo não é absurdo. Ele vem carregado de propósito. Há uma seta do tempo
apontando para frente. Como afirmou o astrofísico e cosmólogo Feeman Dyson: ”parece que o universo,
de alguma maneira, sabia que um dia nós iríamos chegar” e preparou tudo para
que pudéssemos ser acolhidos e fazer o nosso caminho de ascensão no processo
evolucionário. Curiosamente, quando no processo da evolução apareceram as
flores (antes era tudo verde), nesse momento surgiu nosso ancestral. Parece que
o universo e Deus lhe prapararam um berço de flores para enfatizar a alta
qualidade deste ser que estava iniciando sua jornada pelos séculos até chegar a
nós.
O universo autoconsciente e portador e espírito
O grande matemático e físico quântico Amit Goswami, que muito vem ao Brasil,
sustenta a tese de que o universo é autoconsciente (O universo autoconsciente, Record 2002). No ser humano ele conhece
uma emergência singular pela qual o próprio universo através de nós se vê a si
mesmo, contempla sua majestática grandeza e chega a uma certa culminância.
Cabe ainda considerar que o cosmos está em gênese,
não está pronto, está ainda se autoconstruindo e em expansão contínua. Cada ser
mostra uma propensão inata a irromper, crescer e irradiar. O ser humano também.
Apareceu no cenário quando 99,96% de tudo já estava pronto. Ele é expressão do
impulso cósmico para formas mais complexas e altas de existência.
Alguns aventam a ideia: mas não seria tudo puro
acaso? O acaso não pode ser excluído, como mostrou Jacques Monod no seu livro O
acaso e a necessidade, o que lhe valeu o prêmio Nobel em biologia. Mas
ele não explica tudo. Bioquímicos comprovaram que para os aminoácidos e as duas
mil enzimas subjacentes à vida pudessem se aproximar, constituir uma cadeia
ordenada e formar uma célula viva seriam necessários trilhões e trilhões de
anos. Portanto, mais tempo do que o universo e a Terra possuem de fato, que é
de 13,7 bilhões de anos. O recurso ao acaso é dar honra à ignorância. Melhor é
dizer que não sabemos.
Dizendo de forma mais exata: o recurso ao acaso
mostre apenas nossa incapacidade de entender ordens superiores e extremamente
complexas como a consciência, a inteligência, o afeto e o amor. Nesse sentido,
talvez a visão de Pierre Teilhard de
Chardin do universo, segundo a qual este mais e mais se complexifica e,
assim, permite a emergência da consciência e da percepção de um ponto Ômega da
evolução na direção do qual estamos viajando, seja mais adequada para expressar
a dinâmica mesma do universo.
Não seria melhor calarmos reverentes e respeitosos
diante do mistério da existência e do sentido do universo?
Depois dessas reflexões, já estamos habilitados a
abordar a dimensão teológica do espírito como Espírito Criador.
O Espírito Criador e a cosmogênese
Como não podia deixar de ser, Deus também é
incluído na dimensão do espírito. E por excelência. Está presente na primeira
página da Bíblia quando se narra a criação do céu e da terra. Diz-se que sobre
o touwabohu, isto é, sobre o caos, melhor, sobre as águas primitivas
“soprava um ruah (um vento, uma energia) impetuoso” (Gn 1,2). Daquele
caos tirou todas as ordens: os seres inanimados, os animados e o ser humano. A
este, tirado do pó como todos os demais, Deus “soprou-lhe nas narinas o ruah
de vida, o espírito, e ele tornou-se um ser vivo” (Gn 2,7). É no
capítulo 37 de Ezequiel que
irrompe, de forma insuperavelmente plástica, a força vital do espírito. Quando
este vem, os ossos ressequidos ganham carne e se transformam em vida.
Também as expressões mais altas do ser humano são atribuídas
à presença do espírito nele, como a sabedoria e a fortaleza (Is 11,2), a
riqueza de ideias (Jo 32,28), o senso artístico (Ex 28,3), o desejo ardente de
ver Deus e o sentimento de culpa e a consequente penitência (Ex 35,21; Jr 51,1;
Esd 1,1; Es 26,9; Sl 34,19; Ez 11,19; 18,31).
Deus “tem” espírito
Essa força criadora e vivificadora é eminentemente
possuída por Deus. As Escrituras falam com frequência do espírito de Deus (ruah
Elohim). Ele é dado a Sansão para
ter força portentosa (Jz 14,6; 19,15), aos profetas para terem coragem de
denunciar em nome dos pobres da Terra as injustiças que padecem, para enfrentar
o rei, os poderosos e anunciar-lhes o juízo de Deus.
Especialmente no judaísmo inter-testamentário,
esperava-se para os fins dos tempos a efusão do espírito sobre toda a criatura
(Jl 2,28-32; At 2, 17-21). O Messias será “forte no espírito” e virá dotado de
todos os dons do espírito (Is 11,1ss).
É nesse contexto do judaísmo tardio que surge a
tendência de personificar o espírito. Ele continua sendo uma qualidade da
natureza, do ser humano e de Deus. Mas sua ação na história é tão densa que
começa a ganhar autonomia. Assim se diz, por exemplo, que “o espírito exorta,
se aflige, grita, se alegra, consola, repousa sobre alguém, purifica, santifica
e enche o universo”. Jamais se pensa nele como criatura, mas como algo do mundo
de Deus que, quando se manifesta na vida e na história, tudo transforma.
A
compreensão começou a mudar quando se cunhou uma expressão decisiva: ”espírito
de santidade” ou “espírito santo”. Essa formulação guarda certa
ambiguidade, pois pode-se dizer espírito santo para se evitar dizer o nome de
Deus (coisa que os judeus até hoje, por respeito, evitam) como pode-se
significar o próprio Deus. Para a mentalidade hebraica, “santo” é o nome por
excelência de Deus, o que equivale dizer na compreensão grega: Deus como
transcendente, distinto de todo e qualquer ser da criação.
Em
resumo, podemos afirmar: pela palavra espírito (ruah) aplicado a Deus
(Deus “tem” espírito, Deus envia o seu espírito, o espírito de Deus) os judeus
expressavam a seguinte experiência: Deus não está atado a nada; irrompe onde
quer; confunde planos humanos; mostra uma força à qual ninguém pode resistir;
revela uma sabedoria que torna estultície todo o nosso saber. Assim, Deus se
mostrou aos líderes políticos, aos profetas, aos sábios, ao povo,
especialmente, em momentos de crise nacional (Jz 6,33; 11, 29; 1 Sam 11,6).
Assim
como é dado ao rei para que governe com sabedoria e prudência, no caso o rei
Davi (1 Sam 16,13), (oxalá o dê ao presidente anti-espírito que nos
(des)governa) será dado também ao servo sofredor, destituído de toda pompa e
grandiloquência (Is 42,1). Em Is 61,1 diz-se explicitamente: ”o espírito de Javé
está sobre mim porque Javé me ungiu… para anunciar a libertação dos cativos e a
boa-nova para os pobres”, texto que Jesus aplicará a si na sua primeira
aparição na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 17-21). Por fim, o espírito de Deus não
sinaliza apenas sua ação inovadora no mundo, mas aponta para o próprio ser de
Deus. O espírito é Deus. E Deus é Espírito. Como Deus é santo, o Espírito
será o Espírito Santo.
O Espírito Santo penetra tudo, abarca tudo, está
para além de qualquer limitação. “Para onde irei para estar longe de teu
Espírito? Para onde fugirei a fim de estar longe de tua face? Se eu escalar os
céus, aí estás, se me colocar no abismo, também aí estás” (Sl 139,7) Até o mal
não está fora de seu alcance. Tudo o que tem a ver com mutação, ruptura, vida e
novidade tem a ver com o espírito. O Espírito Santo está tão unido à história
que ela de profana se transforma em história santa e sagrada.
O Espírito num mundo sem espírito e em degradação
Hoje sentimos a urgência da irrupção do Espírito
Santo como na primeira manhã da criação. A Carta da Terra, face à crise mundial ecológica, com energias
negativas que nos podem arrastar ao abismo, afirma: “Como nunca antes da
história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isso requer uma
mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência
global e de responsabilidade universal… Temos ainda muito a aprender a partir
da busca conjunta por verdade e sabedoria (final)”]
O Papa Francisco diz igualmente em sua encíclica “sobre
o cuidado da Casa Comum:”Nunca maltratamos e ferimos a Casa Comum como nos
último dois séculos(n. 53). Se “não mudarmos nosso estilo de vida
insustentável- continua- só poderemos desembocar nas catástrofes”(n.161).
Cabe ao Espírito iluminar nossa mente e transformar nosso coração. Se fizermos essa conversão, dificilmente escaparemos das ameaças que pesam sobre o sistema-vida e sistema-Terra. Cabe ao Espírito a capacidade de transformar o caos destrutivo em caos criativo, como operou no primeiro momento do Big Bang. Ele pode transformar a tragédia como a atual do Covid-19 numa crise acrisoladora que nos permite dar um salto de qualidade rumo a uma nova ordem, mais alta, mais humana, mas cordial, mais amorosa e mais espiritual. O universo, a Terra e cada um de nós somos templos do Espírito. Ele não permitirá que seja desmantelado e destruído. Esse pedido é urgente para a atual situação quando a Terra como um todo é atacada por um vírus letal que está dizimando milhares de vidas.
Importa suplicar ao Espírito: Vem, Espírito Criador! Renove a face da Terra, aqueça nossos corações e rasgue um horizonte de sentido e de esperança para a nossa realidade humana desumanizada e agora posta sob o risco de milhares desaparecerem vítimas da intrusão do Covid-19. A ciência, a técnica, a vacina, são fundamentais. Mas apenas com elas não está garantido que evitemos voltar ao que era antes. Para isso precisamos de outro espírito que dê centralidade ao que conta: a vida, a cooperação, a interdependência, a generosidade e o cuidado para com a natureza e para uns para outros. Se não fizermos esta viragem paradigmática, podemos ser atacados novamente e de forma ainda mais letal.
Leonardo Boff é ecoteólogo, um dos redatores da Carta da Terra e escritor e escreveu:”O Covid-19: o contra-ataque da Terra contra a Humanidade” a sair em breve pela Editora Vozes, 2020.
Fonte: Site Leonardo Boff
Nenhum comentário:
Postar um comentário