Trago hoje para o blog Indagações-Zapytania a matéria que foi publicada
dia 15 de junho de 2016 pelo Leonardo Boff no seu blog. Faço isto na esperança de poder contribuir um
pouquinho na divulgação do texto muito contundente e esclarecedor de Jessé
Souza*. Aproveito para parabenizar o Prof. Jessé por essa excelente análise. Penso
que é muito importante a sociedade brasileira tomar conhecimento do que está
acontecendo atualmente no Brasil e saber formar uma opinião verdadeira e justa,
livre de manipulações.
É importante ler esse texto sem preconceito e/ou paradigmas já formados
em relação à esquerda brasileira dos últimos anos (obviamente, quem os tenha),
e ler até o final. É importante!
WCejnóg
Blog leonardoboff.wordpress.com
15/06/2016
Quem deu o golpe, e
contra quem
JESSÉ SOUZA: considero Jessé Souza do IPEA (se é que
não foi demitido pelo governo interino) um dos analistas da sociedade
brasileira dos mais lúcidos. Identifico-me com ele, a partir de tudo o que
estudei da formação de nosso país, desde o seu primeiro historiador do século
XVI Frei Vicente Salvador. Aqui expõe, suscintamente, o que se encontra em sua
vasta obra, especialmente a última, A estultície da inteligência
brasileira (Leya 2015). Estas reflexões nos desvelam o que se esconde
atrás do impeachment contra Dilma. Temos um dos capitalismos mais arraigados e
retrógrados do mundo. Ele nunca aceitou a democracia pois lhe prejudica os
negócios e os privilégios. Por isso de tempos em tempos precisa dar golpes, por
formas diferentes. A sede golpista se encontra na Avenida Paulista,
particularmente na Fiesp em São Paulo onde o capitalismo selvagem vigora à
vontade: Lboff
RESUMO
Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo
de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma
ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como
outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela
“elite de dinheiro”.
O golpe foi contra a democracia como princípio de
organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do
dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso passado
escravocrata.
O ponto de
inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a
revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.
A visão
pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito
interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.
O sonho era
a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e
classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do
dinheiro jamais sequer “compreendeu” esse sonho, posto que “afetivamente” nunca
sentiu compromisso com os destinos do país.
Desde então
o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país
grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer
drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia
dúzia.
A elite do
dinheiro manda pelo simples fato de poder “comprar” todas as outras elites.
É essa
elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite
intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da
corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do
mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de
eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem
parte da mesma elite da rapina.
De acordo
com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo,
imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento
que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o
complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.
A história
do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio
caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre
Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam
pairar acima dos conflitos sociais.
O suicídio
do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma
articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças
Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.
INFRAESTRUTURA
O
nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano
Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do
sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da
vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa
em todo o país.
Ainda que o
capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era
do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha
ideológica contra a “república socialista do Brasil” e os empresários
descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável “vocação democrática”.
O processo
de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As
Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova
derrota do sonho de um “Brasil grande”.
Aqui já
poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio
condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera
conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem
saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido
criticado. Criou-se uma anistia do “esquecimento” no mesmo sentido da queima
dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e
a quem obedecemos.
Com o
governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas
no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.
A festa da
privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela
sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos
serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e
sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.
Como uma
imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo
durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode
comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.
O novo
governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à
indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos
setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.
Os mais
pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.
Parte da
classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping
centers e aeroportos, mas “pegava mal” expressar o descontentamento em público.
Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os
seus privilégios e os seus empregos.
O discurso
da “corrupção seletiva” manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o
medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso
“campeão da moralidade”. O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora
pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está
criada a “base popular”, produto da mídia servil à elite da rapina.
A luta
contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna
crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma “boa
burguesia”, ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto
de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.
Mas todas
as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite
transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo
invisível, funcionando como uma “taxa” que encarece todos os preços e transfere
parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média
feita de tola pela imprensa comprada.
Quando em
abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida
contra a presidente. As “jornadas de junho” daquele ano vêm bem a calhar e, por
força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em
uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média “campeã
da moralidade e da decência” contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da
esquerda.
Como os
votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a
campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se
mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do
Estado.
Construído
pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades
investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças
expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de
todo tipo associados ao “sentimento de casta” que os concursos dirigidos aos
filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo
controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros “partidos
corporativos” lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.
A
manipulação da “corrupção seletiva” pela imprensa é o discurso ideal para
travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto
“bem comum”. O troféu de “campeão da moralidade pública” passa a ser disputado
por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa,
que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.
Esse é o
elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado
no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa
internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da “justiça seletiva” ele
não teria acontecido.
O Estado
policial a cargo da “casta jurídica” já está sendo testado há meses e deve
assumir o papel de perseguir, com base na mesma “seletividade midiática”, o
princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a “grande pizza”.
A “pizza”
para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O
acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior
perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.
Mas existe
também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que
transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de
“coragem cívica”.
Ainda que
nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se
imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático
com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a
criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça
de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade
condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser
compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.
Fonte: blog leonardoboff
_____________
* JESSÉ SOUZA, 56, autor de “A Tolice da Inteligência
Brasileira” (Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política
da UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen. In: Google
Nenhum comentário:
Postar um comentário