Excelente o texto Quem quebrou o Estado brasileiro, de Ladislau Dowbor. Penso que a
sua leitura é indispensável para quem realmente procura com sinceridade
entender os fatos, a situação econômica, política e social do nosso Brasil,
para poder elaborar a sua opinião mais objetiva e justa possível. É fundamental
saber separar o que é a verdade das mentiras e manipulações que hoje tenta-se
impor à sociedade brasileira. Isso é a condição primária para ter as condições
de situar-se do lado certo dos acontecimentos atuais no Brasil.
Não deixe de ler!
WCejnóg
IHU - Adital
23 Novembro 2016
Quem quebrou
o Estado brasileiro
Examine os números: gasto social é
moderado, enquanto pagamento de juros explode. País entre em crise — e
governo mantém justamente as despesas mais devastadoras.
O artigo é de Ladislau Dowbor,
professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias
agências das Nações Unidas, publicado por Outras Palavras,
22-11-2016.
Eis o artigo.
Você provavelmente se sente perplexo
frente à situação econômica do país. Está em boa companhia.
Quem é que entende de resultado primário, de ajuste fiscal e
outros termos que povoaram os nossos noticiários? A imensa maioria balança a
cabeça de maneira entendida, e faz de conta. Pois vejam que realmente não é
complicado entender, é só trocar em miúdos. E com isso o rombo fica claro. Aqui
vai a conta explicitada, não precisa ser economista ou banqueiro. E usaremos os
dados do Banco Central, a partir da tabela original, pois
confiabilidade, nesta era melindrada, é fundamental. Para ver os dados no
próprio BC, é só clicar no link embaixo da tabela.
A política econômica do
governo atual está baseada numa imensa farsa: a de que as políticas
redistributivas da era progressista quebraram o país enquanto o novo poder, com banqueiros no
controle do dinheiro, iriam reconstruí-lo. Segundo o conto, como uma boa dona
de casa, vão ensinar responsabilidade, gastar apenas o que se ganha. A grande
realidade é que são os juros extorquidos pelos
banqueiros que geraram o rombo. A boa dona de casa que nos governa se juntou
aos banqueiros e está aumentando o déficit.
Os dados publicados pelo Banco
Central mostram a imagem real do que está acontecendo:
A tabela, tal como aparece no site do Banco
Central, parece complexa, mas é de leitura simples. Na linha IX, “Resultado
primário do governo central” é possível acompanhar a evolução dos
números. O resultado primário é a conta básica de quanto o governo recolheu com
os impostos e acabou gastando nas suas atividades, propriamente de governo,
investindo em educação, saúde, segurança etc — ou seja, em políticas
públicas.
Quando se diz que o governo deve ser
responsável, não gastar mais do que ganha, é disto que estamos falando. Confira
a tabela abaixo, extraída da tabela principal: trata-se apenas de melhorar a
legibilidade.
No caso, houve um superávit nos anos 2010 até 2013
(gastou menos do que arrecadou) e um déficit insignificante de
20 bilhões em 2014, e moderado em 2015, 116 bilhões de reais, 2% do PIB,
perfeitamente normal.
Na União Europeia, por
exemplo, um déficit de até 3% do PIB é considerado normal, com
variações entre um ano e outro. Ou seja, fica claro, note-se que ao contrário
do que dizem os gastos com as políticas públicas não
causaram nenhum “rombo” como tem sido qualificado.
A linha seguinte da tabela, X – “Juros
Nominais”, dá a chave da quebra e da recessão. Os juros nominais
representam o volume de recursos que o governo gastou com os juros sobre a dívida pública.
Esta é a caixa preta que trava a economia na dimensão pública.
Trata-se da parte dos nossos impostos
que em vez de servirem para infraestruturas e políticas sociais, são
transferidos para os bancos e outros intermediários financeiros, além de um
volume pequeno de aplicadores individuais no tesouro direto. Estes em boa parte
reaplicam os resultados, aumentando o volume de recursos apropriados.
A dívida pública é
normal em inúmeros países, assegurando aplicações financeiras com risco zero e
liquidez total, e por isto pagando em geral na faixa de 0,5% ao ano, nos mais
variados países, inclusive evidentemente nos EUA e União
Europeia. Não é para aplicar e ficar rico, é para ter o dinheiro seguro
enquanto se busca em que investir.
No Brasil, o sistema foi
criado em julho de 1996, pagando uma taxa Selic fantástica
de mais de 15% já descontada a inflação. Instituiu-se assim por lei um sistema
de transferência de recursos públicos para os bancos e outros aplicadores
financeiros. Com juros deste porte, rapidamente o governo ficou apenas rolando
a dívida, pagando o que conseguia de juros, enquanto o que não conseguia pagar
aumentava o estoque da dívida. Nada que qualquer família brasileira não tenha
conhecido quando pega dívida para saldar outra dívida. O processo vira,
obviamente, uma bola de neve.
Em 2003 Lula assume
com uma taxa Selic pagando 24,5%, quando a inflação estava em
6%. Importante notar que são lucros gigantescos para os bancos e os rentistas em
geral, sem nenhuma atividade produtiva correspondente. E nenhum benefício para
o governo ou a população, pois o governo, com este nível de juros, apenas rola
a dívida.
O sistema é absolutamente inviável a
prazo. E ilegítimo, pois se trata de ganhos sem contrapartida produtiva,
gerando uma contração econômica. Na passagem de 2012 para 2013, o governo Dilma passa
a reduzir progressivamente a taxa de juros sobre adívida
pública, chegando ao nível de 7,25% ao ano, para uma inflação de 5,9%,
aproximando-se das taxas praticadas na quase totalidade dos países. Isto gerou
uma revolta por parte dos bancos e por parte dos rentistas em geral.
Por que tantos países mantêm uma taxa
de juros sobre a dívida pública da ordem de 0,5% ou menos? Porque um
juro baixo sobre a dívida pública estimula os donos dos recursos financeiros a
buscar outras aplicações mais rentáveis, em particular investimentos produtivos,
que geram ganhos mas fomentando a economia. Aqui, estimulou-se o contrário:
para que um empresário se arriscar em investimentos produtivos se aplicar na
dívida pública rende mais?
A revolta dos banqueiros e
outros rentistas levou a uma convergência com outras
insatisfações, inclusive oportunismos políticos, provocando os grandes movimentos de 2013. E
com um legislativo eleito pelo dinheiro das corporações, atacou-se na mídia
qualquer tentativa de reduzir os juros e resgatar a política econômica do
governo. Futuros candidatos também viram aí brechas oportunas. O governo
recuou, iniciando um novo ciclo de elevação da taxa Selic,
reconstituindo a bonança de lucros sem produção, essencialmente para bancos e
outros rentistas.
Difícil dizer o que causou o recuo do
governo. O fato é que desde meados de 2013 instalou-se a guerra política e o
boicote, e não houve praticamente um dia de governo, seguindo-se a eleição e a
desarticulação geral da capacidade de ação do Palácio do Planalto. O essencial
para nós, é que não houve uma quebra de governo, e muito menos do Brasil, como
dizem, pois as políticas públicas mantiveram o seu equilíbrio financeiro. O que
quebrou o sistema, e é fato essencial, está aprofundando a crise, é o volume de
transferências de recursos públicos para bancos e outros intermediários
financeiros que são essencialmente improdutivos.
Confira a tabela dos juros nominais:
Com a Selic elevada, o governo
transferiu em 2010, nas contas do Banco Central, 125 bilhões de reais
sobre a dívida pública. Em 2011, este montante se elevou para 181
bilhões, caindo para 147 bilhões em 2012 com a redução dos juros Selic (a 7,5%)
por parte do governo Dilma. Em 2013 começa o drama: sob pressão dos
bancos, voltam a subir os juros sobre a dívida pública, e o dinheiro
transferido ou reaplicado pelos rentistas sobe para 186 bilhões em 2013. Na
fase do ministro Nelson Levy, portanto, com um banqueiro tomando
conta do caixa, esse valor explode para 251 bilhões em 2014, e para 397 bilhões
em 2015. Veja que o rombo criado pelos altos juros da dívida é
incomparavelmente superior ao déficit das políticas públicas propriamente
ditas, na linha IX “Resultado primário do governo central” visto acima.
Aqui são praticamente 400 bilhões de
reais que poderiam se transformar em investimentos de infraestruturas e em
políticas sociais, apropriados não por produtores,
mas sim essencialmente por intermediários financeiros como bancos, fundos e
inclusive aplicadores estrangeiros, gerando o rombo que agora vivemos e que
aumenta ainda mais em 2016, pois continuamos com banqueiros no controle do
sistema.
Confira, agora, a linha XI – Resultado
Nominal do Governo Central, que vai apontar o rombo crescente. Trata-se do
déficit já incorporando o gasto com juros sobre a dívida pública, hoje os mais
altos do mundo. Veja o déficit gerado na tabela abaixo:
Ele passa de 46 bilhões em 2010,
explodindo para 272 bilhões em 2014 já com a política econômica controlada pelos banqueiros, e chegando
a astronômicos 514 bilhões em 2015, já com políticas confortavelmente
orientadas para desviar recursos públicos para intermediários financeiros.
Essas três linhas da tabela do Banco
Central mostram o equívoco do chamado “ajuste fiscal” do
governo. E permitem entender, de forma clara, que não se tratou, de maneira
alguma, de um governo que gastou demais com as políticas públicas, e sim de um
governo em que os recursos foram desviados das políticas públicas para
satisfazer o sistema financeiro.
Veja na tabela principal na linha “%
do PIB gasto em juros” que o volume de recursos
transferidos para os grupos financeiros passou de 3,2% do PIB em 2010 para 6,7%
do PIB em 2015. E a conta cresce.
Quem gerou a crise é quem está no
poder hoje, no Brasil, ditando o aumento da taxa Selic que
voltou ao patamar surrealista de 14%. Em nome da austeridade, e de
“gastar responsavelmente o que se ganhou”, aumentaram em 2016 o déficit
primáriopara R$ 170 bilhões, repassando dinheiro para deputados e senadores
(emendas parlamentares), aumentando os salários dos juízes e de segmentos de
funcionários públicos (em nome da redução dos gastos) e assistindo a uma
explosão dos juros pagos pela população.
Ponto chave: a PEC 241 trava os
gastos com políticas públicas. São gastos que resultam no resultado primário,
ou seja, onde o déficit é muito limitado e a utilidade é grande, tanto
econômica como social. Mas a PEC 241 (e 55 no
Senado) não limita os gastos com a dívida pública, que é onde
ocorre o verdadeiro e imenso rombo.
Não se trata aqui, com esta medida,
de reduzir os gastos do Estado, mas de aumentar os gastos com juros, que
alimentam aplicações financeiras, em detrimento do investimento público e dos
gastos sociais. Trata-se simplesmente de aprofundar ainda mais o próprio
mecanismo que nos levou à crise.
Seriedade? Gestão responsável? A
imagem da dona de casa que gasta apenas o que tem? Montou-se uma farsa. Os
números aí estão. Assim o país afunda ainda mais e eles querem que o custo da
lambança saia dos direitos sociais, das aposentadorias, da terceirização e
outros retrocessos. Isto reduz a demanda e o PIB, e consequentemente os
impostos, aumentando o rombo. Esta conta não fecha, nem em termos contábeis nem
em termos políticos. Aliás, dizer que os presentes trambiques se espelham no
modelo da boa dona de casa constitui uma impressionante falta de respeito.
_____________
Nota: aqui abordamos a questão central dos juros sobre a dívida pública,
visando mostrar o absurdo dos
argumentos do governo ter “quebrado” a economia. Importante também mencionar
que o próprio volume (estoque) da dívida, da ordem de 60% do PIB (e muito menos
para a dívida líquida) não é particularmente maior do que a de outros países, e
muito menor, por exemplo, do que a dos EUA ou do Japão. Para uma visão mais
ampla, há um excelente documento Austeridade
e Retrocesso, que traz a análise financeira completa. O documento é de
outubro de 2016, 50p, disponível aqui.
Quanto ao endividamento da população,
com juros absurdamente abusivos para pessoa física e pessoa jurídica, o
mecanismo gerado pode ser consultado no documento Resgatando o potencial
financeiro do país, inclusive com as propostas correspondentes. Veja aqui.
Para conferir a planilha do Banco
Central, clique aqui, Aba 4.1, Séries
históricas – Resultado Fiscal do Governo Central – Estrutura Nova (janeiro/1997
– agosto/2016).