Hoje quero fazer aqui, no meu blog
Indagações-Zapytania, uma singela propaganda do livro “Cuidado necessário. Na vida, na
saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade”, do Leonardo
Boff.
É um livro muito bom, de fácil leitura, que poderia
(e deveria) ser um livro de cabeceira para cada homem e mulher neste mundo, nos
dias de hoje. Diante do quadro cada vez mais complexo e confuso pintado pela
nossa própria vida, junto a vários problemas graves e complicados existentes
nas sociedades e no mundo de hoje, ficamos cada vez mais desorientados e
“perdidos”. Muitas vezes não sabemos mais o que pensar...
O livro “Cuidado necessário” oferece-nos, nesse
sentido, uma preciosa ajuda, irradiando a esperança de um possível futuro
melhor. Com certeza quem ler, ficará grato ao autor do livro por esta
oportunidade, recomendando-o a outras pessoas.
Quero aqui sugerir que as pessoas interessadas
adquiram este livro e leiam-no. Pode ser encontrado principalmente nas
livrarias “Vozes”, mas também em outras.
Como incentivo para sua leitura, abaixo publico um
pequeno trecho. Porém, reforço mais uma
vez a ideia de ler o livro inteiro. Vale
a pena!
WCejnog
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Cuidar de si mesmo,
dos outros, da Terra
Autor: Leonardo Boff
Seguramente
um dos grandes desafios existenciais consiste em cuidar de si mesmo. Somos o
mais próximo dos próximos e, ao mesmo tempo, o mais complexo e mais
indecifrável dos seres.
6.1 O que somos enquanto humanos?
O
que somos? Sabemos quem somos? Qual é o
nosso lugar no universo? Para que existimos? Por que temos de morrer? Para onde
vamos? Refletindo nestas perguntas inadiáveis vale lembrar a ponderação de
Blaise Pascal (†1662). Ninguém melhor do que ele, matemático, filósofo e
místico para expressar o ser complexo que somos: “O que é o ser humano na
natureza? Um nada diante do infinito e um tudo diante do nada, um elo entre o
nada e o todo, mas incapaz de ver o nada de onde veio e o infinito para onde
vai” (Pascal, Pensées, §72).
Nele
se cruzam os quatro infinitos: o infinitamente pequeno, o infinitamente grande,
o infinitamente complexo (Theilard de Chardin) o infinitamente profundo.
Na
verdade, não sabemos quem somos. Ou melhor, na esteira do grande romancista
brasileiro Guimarães Rosa eu diria: desconfiamos de alguma coisa na medida em
que vivemos e pelas emergências – os fatos que nos vão acontecendo
diuturnamente – que irrompem em nossa vida, vindas de todos os lados, e, em
último termo, daquela Energia do fundo que tudo sustenta e tudo dirige. Em um
somos muitos.
Além
daquilo que somos vigora em nós aquilo que podemos ser: o inesgotável cabedal
de virtualidades escondidas dentro do nosso ser. Nosso potencial representa
aquilo que é o mais verdadeiro e real em nós. Daí a nossa dificuldade em
construirmos uma representação satisfatória do que somos. Mas isso não nos dispensa
elaborar algumas chaves de leitura que de alguma maneira nos orientam na busca
daquilo que queremos e podemos ser.
É
nesta busca que o cuidado de si mesmo desempenha uma função decisiva. Não se
trata, primeiramente, de um olhar narcisista sobre o próprio eu, o que leva,
geralmente, a não conhecer a si mesmo, mas identificar-se com uma imagem
projetada de si e, por isso, falsa e alienante.
Foi
Michel Foucauld com sua minuciosa investigação Hermenêutica do sujeito (2004) que tentou resgatar a tradição ocidental do cuidado do sujeito, especialmente
nos sábios do século II/III como Sêneca, Marco Aurélio, Epíteto e outros. O
grande moto era o famoso ghôti seautón:
conheça-te a ti mesmo. Esse conhecimento não era entendido de forma abstrata,
mas concreta como: reconheça-se naquilo que és, procure aprofundar-te em ti
mesmo para descobrires tuas potencialidades; tente realizar aquilo que de fato
és.
Neste
contexto se abordavam as várias
virtudes, tão bem discutidas por Sócrates, como a prudência, a justa medida (méden ágan), a justiça, a bondade, a
coragem e o amor. Faziam-se duras críticas aos vícios, especialmente o mais
desprezível pelos gregos e tão central em nossa cultura dominante e imperial: a
hybris, que é passar dos limites,
orgulhar-se vaidosamente, dar-se por aquilo que não é e, especialmente,
pretender acumular poder para estar sobre os outros, colocando-se como um deus.
Talvez o maior vício da cultura ocidental, da cultura cristã e especialmente da
cultura estado-unidense com o seu imaginado destino
manifesto (o sentir-se o novo povo eleito por Deus) é a hybris do sentimento de superioridade e de excepcionalidade, de
missão e de conquista dos outros em nome
dos seus valores tidos como os únicos válidos, melhores e sancionados por Deus.
A
primeira coisa que importa afirmar é que o ser humano é um sujeito, e não uma
coisa. Não é uma substância constituída uma vez por todas (Foucault. Hermenêutica do sujeito, 2004), mas um
nó de relações sempre ativo que mediante o jogo das relações está continuamente
se construindo. Ou, usando uma outra analogia, comparece como um rizoma (um bulbo de planta da
qual saem rebentos em todas as direções).
Todos
os seres do universo, consoante à nova cosmologia, são portadores de certa
subjetividade porque têm história, vivem em interação e interdependência com
todos, aprendem trocando e acumulando informações. Este é um princípio
cosmológico universal. Mas o ser humano realiza uma modalidade própria deste
princípio, que é o fato de ser um sujeito consciente e reflexivo. Ele “sabe o
que sabe” e ”sabe que não sabe” e, para sermos completos, “não sabe o que não
sabe”.
Este
nó de relações se articula a partir de um centro ao redor do qual organiza os
sentimentos, as ideias, os sonhos e as projeções. Por mais que se ponha em
questão a realidade do eu como algo socialmente construído e, por isso, não
originário, o eu como autoidentificação se sustenta de pé. Ele é um centro,
único e irrepetível. Representa, na linguagem do filósofo mais sutil de todos
os medievais, o franciscano Duns Scotus (†1203), a ultima solitudo entis, a última solidão do ser. Cunhou uma palavra
de difícil tradução: Haecceitas, que
traduzida seria: este ser aqui concreto e irrepetível que é o meu eu. Jamais
houve, não existe e jamais haverá alguém que seja em tudo igual a mim. O eu é
único e não replicável.
Este
eu insubstituível e irrenunciável deve ser entendido no contexto do nó de
relações dentro do processo global de interdependências, de sorte que a solidão
não é o desligamento dos outros. Ela significa a singularidade e a
especificidade inconfundível de cada um. Portanto, esta solidão é para a comunhão, é um estar só em
uma identidade para poder estar com o outro e no outro, também com sua
identidade, e poder ser um-para-o-outro e com-o-outro. O eu nunca está só, ele
reclama um tu. Melhor, segundo Martin Buber, é a partir do tu que o eu desperta
e se forma.
6.2 Cuidar de si: acolher-se jovialmente
O
cuidado de si implica, em primeiríssimo lugar, acolher-se a si mesmo, assim
como fazemos com as aptidões e os limites que sempre nos acompanham. Não com
amargura, como quem não consegue evitar ou modificar a sua situação
existencial, mas com jovialidade. Acolher o próprio rosto, cabelos, pernas,
dedos, seios, sua aparência e modo de
estar no mundo, enfim, seu corpo (Corbin
et al. O corpo, 3
vols.
2008). Quanto mais nos aceitarmos, menos clínicas de cirurgia plástica
existirão. Com nossas características físicas devemos elaborar nosso jeito de
ser e nosso mise-en-scène no mundo.
Nada
mais ridículo do que a construção artificial de uma beleza montada, que não
está em consonância com a beleza interior. Perde-se a irradiação e ganha lugar
a vaidade vazia de brilho. É a tentativa vã de fazer um photoshop de nossa própria imagem.
Mais
importante é acolher os dons, as habilidades, o poder, o quociente de
inteligência, a capacidade emocional, o tipo de vontade e determinação com que
se vem dotado. E, ao mesmo tempo, sem resignação negativa, os limites do corpo,
da inteligência, das habilidades, da classe social e da história familiar e
nacional na qual está inserido.
Tais
realidades configura, a condição humana concreta e se apresentam como desafios
a serem enfrentados com equilíbrio e com a determinação de explorar o mais que
pudermos as potencialidades positivas.
O
cuidado de si exige saber combinar as aptidões com as motivações. Não basta
termos aptidão para a música se não sentimos motivação para desenvolver esta
capacidade. Da mesma forma, não nos ajudam as motivações para sermos músicos se
não tivermos aptidão para isso, seja no ouvido, seja no domínio de algum
instrumento. Não adianta querer pintar como um Van Gogh se consegue apenas ser
um pintor de paisagens, de flores e passarinhos que mal chegam a ser expostos
na feira de domingo na praça (Lacroix. Se
réaliser, p. 17-23). Em tais casos desperdiçamos energias e colhemos frustrações, pois a mediocridade não
engrandece ninguém.
Outro
componente do cuidado para consigo mesmo é saber e aprender a conviver com o
paradoxo que atravessa nossa existência: temos impulsos para a bondade, a
solidariedade, a compaixão e o amor. E simultaneamente pulsam em nós apelos
para egoísmo, a exclusão, a antipatia e até o ódio. Somos feitos com estas
contradições, dadas com a existência. Antropologicamente se diz que somos ao
mesmo tempo sapiens e demens, gente de inteligência e lucidez,
e junto a isso gente de rudeza e de violência. Somos o encontro das oposições.
Cuidar
de si mesmo impõe saber renunciar e ir
contra certas tendências em nós e até
nos pôr à prova. Leva-nos a elaborar um projeto de vida que confira
centralidade a estas dimensões positivas e manter sob controle (sem
recalca-las, porque elas persistem e podem voltar sob forma incontrolável) as
dimensões sombrias que tornam agônica a nossa existência, quer dizer, sempre em
combate contra nós mesmos.
Cuidar
de si mesmo é amar-se, acolher-se, reconhecer nossa vulnerabilidade, saber
perdoar-se e desenvolver a resiliência, que
é a capacidade de “dar a volta por cima” e aprender dos erros e
contradições.
Fonte:
BOFF,
Leonardo. O cuidado necessário.
Petrópolis: Vozes 2013, 2ª Edição, p. 137-143.
[O
livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 –
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