O artigo “Cidadãos de bem”, de Magali Cunha, foi
publicado no dia 4 de setembro de 2019 no site Carta Capital. Trago-o para este
blog, pois o acho muito relevante
e oportuno nos dias de hoje. É um texto que mostra a verdadeira face de muitos ‘cidadãos
de bem’ neste país, que na verdade são fariseus dos nossos tempos.
Compartilho-o neste espaço também para contribuir pelo
menos um pouco na sua divulgação.
Muito
bom. Vale a pena conferir.
WCejnóg
“Cidadãos de bem”: os modernos hipócritas fariseus
Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Ainda bem
que existe quem pague o preço de seguir os valores de Jesus até o fim, mesmo
que seja minoria classificada como ‘errante’
Cada vez mais as estatísticas oficiais revelam a
política de extermínio comandada pelos governadores Wilson Witzel, do PSC, e
João Doria, do PSDB. No Rio, as ações da polícia deixaram 881 mortos no
primeiro semestre de 2019, enquanto em São Paulo foram 426 assassinados pelos
agentes do Estado de São Paulo no mesmo período. As mesmas estatísticas indicam
uma queda nos índices de homicídios, roubos e policiais assassinados.
O fato de criminosos matarem menos e o Estado matar
mais dá o tom da política de extermínio estabelecida com força neste 2019, com
estímulo do governo de Jair Bolsonaro. Defensores desta política homicida falam
que tudo está sendo feito em nome dos direitos dos “cidadãos de bem”. Dizem
ainda lamentar os erros que vitimam inocentes mas o que importa é que algo está
sendo feito.
“Cidadão de bem” é um termo antigo, ideologicamente
consolidado para se estabelecer diferenças entre pessoas. É a parcela de
“cidadãos” que reivindica para si distinção e superioridade contra aqueles que
considera ter vida “impura”, por isso não merecem direitos.
Não é possível precisar quando e onde foi criado o
termo. Há registros que remontam ao início do século XX, nos Estados Unidos. “Good
Citizen” [Cidadão de Bem] era o título de um jornal publicado pela bispa da
Igreja (evangélica) Pilar de Fogo Alma Bridwell White, de 1913 a 1933. A
bispa era racista e apoiadora da supremacista Ku Klux Klan, para ela, um grupo
“divinamente ordenado” (segundo o livro “A Segunda Vinda da KKK: a Ku Klux Klan
de 1920 e a Tradição Política Americana”, de Linda Gordon).
A KKK uniu pessoas em torno da ênfase no
patriotismo, na filiação religiosa, no desprezo aos vícios e no controle da
sexualidade, tornando marca dos seus membros a “respeitabilidade”. Isto até
contribuiu para que pessoas da classe trabalhadora, “respeitáveis” que aderiam
ao movimento, passassem a ser consideradas de “classe média”, como os líderes
da KKK.
No Brasil, o termo passou a ser fartamente
utilizado no debate político desde 2014. O “cidadão de bem que paga seus
impostos” é invocado para fazer oposição a grupos de esquerda e a apoiar
políticos que são “puros”, “não corruptos” como todas as “pessoas de bem”.
Estes políticos defendem a ética, a ordem, a moral, em reação a movimentos
progressistas promotores de transformações sociais consideradas por eles
“impuras” e ameaçadoras como o feminismo, os movimentos de periferias, LGBTI+,
imigrantes e negros.
Nesse sentido, oferece-se a possibilidade que
pessoas de diferentes classes se unam em torno de uma ideologia. Na realidade,
os “cidadãos de bem” são pessoas brancas, de classes média e alta que querem
manter a estrutura desigual do Brasil que sustenta seus privilégios de classe,
de raça, de gênero (basta ver o perfil dos apoiadores de Bolsonaro
apontado na última pesquisa Datafolha).
Moradores da periferia, imigrantes e pessoas negras
são vistos como desordeiros e obstáculos à plena realização da sociedade
idealizada. E tornam-se inimigos aqueles que assumem as causas destes “cidadãos
do mal”: podem ser partidos políticos ou universidades que estudam estes
fenômenos sociais.
Nesta lógica de eliminação dos inimigos, a matança
em presídios e nas periferias das grandes cidades está autorizada para a
limpeza social necessária. Até a posse de armas deve ser liberada para que os
“cidadãos de bem” ajam em causa própria.
Sobre a falácia desta compreensão e o fato de todos
os seres humanos terem bem e mal dentro de si, não trataremos aqui, pois é tema
para outro artigo. Vale agora trazer à memória um clássico hino evangélico do
século XIX, popularmente conhecido como “Glória, glória, aleluia!”. Uma das
estrofes diz: “Fiéis servos da vaidade lutam por fazer-nos seus / Muitas vezes
nos assaltam os modernos fariseus …”.
Fariseus eram religiosos no tempo e no lugar em que
viveu Jesus, tal como relata a Bíblia cristã. Tinham grande influência pois
eram os defensores dos valores morais dos “cidadãos de bem” da época.
Arrogantes, os fariseus apontavam o dedo para os
“impuros” (os que não cumpriam as regras religiosas). Eles foram os que mais
criaram problemas para Jesus, pois criticavam-no como um errante. Jesus era mal
visto por ser originário de Nazaré, uma periferia da Palestina. Ele ainda
andava com pessoas não consideradas “cidadãos de bem”: pobres pescadores, pessoas
com deficiência, mulheres, contestadores da ordem vigente. Também estava mais
presente em espaços considerados não frequentáveis por “gente de bem”: a
beira-mar, lugar dos socialmente excluídos, casas de pessoas consideradas
impuras, as periferias e locais de outras culturas.
Jesus, por sua vez, não se omitiu frente a esse
grupo dos fariseus. Ele os chamou de “guias cegos, que coam o mosquito e
engolem o camelo”, de “serpentes, raça de víboras” e também de “sepulcros
caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de
ossos de mortos e de toda imundícia! Que exteriormente parecem justos aos
homens, mas, por dentro, “estão cheios de hipocrisia e de iniquidade”. Não foi
à toa que os fariseus estiveram entre os que tramaram para que Jesus fosse
preso, torturado e recebesse a pena de morte!
Estamos sob o assalto dos “modernos fariseus”! Como
não pensar neles? “Hipócritas e sepulcros caiados” que dizem defender valores
morais, enquanto a justiça e a misericórdia são negadas e vidas humanas e o
patrimônio natural do Brasil vão sendo cruelmente exterminados. Ainda bem que
existe quem pague o preço de seguir os valores de Jesus até o fim, mesmo que
seja minoria classificada como “errante”.
Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É
colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas.
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Fonte: CartaCapital
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