“Porque
eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me
enviou. E a vontade do Pai que me enviou é esta: Que nenhum de todos aqueles
que me deu se perca, mas que o ressuscite no último dia.” (Jo 6, 37-38)
Hoje trago
para o blog Indagações-Zapytania uma interessante reflexão, bem apropriada ao
Dia dos Finados, que tem como base o texto bíblico Jo, 37-40 (Todos os que o Pai me confia, virão a mim).
É de autoria do padre e teólogo jesuíta Adroaldo Palaoro. O texto foi publicado
no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Vale a
pena ler e refletir.
WCejnóg
IHU – ADITAL
01 Novembo 2019
Finados:
todos vivem n’Aquele que vive
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando as leituras da Solenidade
de todos os Fiéis Defuntos, correspondente ao texto bíblico
de João 6,37-40.
Reflexão
“...que eu não perca nenhum daqueles que Ele me
deu, mas os ressuscite no último dia” (Jo 6,39)
Ao celebrar o “Dia dos mortos”, todas as culturas e
religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se pode dizer, ou o que
só pode ser dito com muito recato: que a morte é passagem, eclosão, nascimento;
que nela entramos nesse processo definitivo de libertação, de transformação, de
acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos santos, à Santidade de Deus...
Este dia, em que fazemos “memória daqueles(as) que
já vivem a Páscoa definitiva”, é uma ocasião privilegiada para considerar a
morte como evento humano e cristão; sabemos do seu aspecto doloroso, mas, a
experiência cristã insiste que ela deve ser entendida também como um gesto de
generosidade: “morrer é deixar um lugar para os outros”.
Participando da morte de Jesus, podemos também
fazer de nossa morte um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de
nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os
medos, os impulsos egoístas de busca de segurança, a ilusão de sermos imortais,
e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda
gratuita para a vida de outros.
O Evangelho nos ajuda a descobrir que o cuidado
doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma
vida. Aqui descobrimos outra lei profunda da realidade: alcança-se a maturidade
da vida à medida em que ela é entregue para dar vida a outros.
O ser humano não deve admitir sua morte como uma
derrota humilhante, mas, do mesmo modo que pode dar direção à sua própria vida,
deve também incluir o ato de morrer, o último ato de sua vida, o ápice de sua
existência temporal.
A morte somente pode ter um sentido e significação
se a vida também os tiver; quando alguém sabe “para quê e para quem vive”,
realizando sua original missão, pode morrer em paz.
Aqueles que vivem intensamente enfrentam com grande
serenidade seu envelhecimento e a proximidade da morte, vendo nela mais uma
etapa no processo normal de seu amadurecimento e de sua realização.
Conscientes de ter vivido por alguma causa, de ter
levado uma vida plena, podem dar sentido e significado espontâneos ao último
ato de sua existência, a morte. É o modo como alguém vive que qualifica a
morte. Há mortes que, para além da inevitável dor que causam aos familiares e
amigos, provocam paz, agradecimento, vontade de viver seriamente, despertam
impulsos para se levantar e sair da superficialidade e da mediocridade.
Sabemos que toda expressão de vida flui para a
morte. No entanto, porque sabemos que somos mortais e dotados de liberdade,
nós, seres humanos, nos interrogamos sobre o sentido da vida; somos capazes de
vivê-la como um projeto, fruto de nossa decisão e podemos transformar a morte
no último e supremo ato de nosso viver.
A consciência de que se morre por alguma grande e
nobre causa despoja a morte de seu caráter de catástrofe absurda, não somente
aos olhos de quem vai morrer, mas também aos olhos dos que o amam.
A morte se transforma em “fator de criação de
vida”, em “boa notícia” para aqueles que se atreveram a viver como Jesus viveu.
Viveram para dar vida e morreram para defendê-la. Viveram a vida como entrega e
sua morte foi uma consequência lógica de seu modo de vida. Levaram a existência
até os limites de suas possibilidades e fizeram dela uma semente permanente de
vida. A lembrança da vida e da morte dessas pessoas continua semeando vontade
de viver com autenticidade. Elas derrotaram a morte.
De fato, o modo de viver de Jesus recebe o sim
definitivo de Deus e nos mostra que a vida entregue para dar vida é o caminho
para derrotar a morte e continuar vivendo. No acontecimento infinitamente
doloroso da morte de Jesus se revela e se promete o sentido último do viver e
do morrer humano. “Jesus morreu de tanto viver”.
Fazer “memória” desta morte é abrir-nos para a
vida, não somente para aquela vida plena do mundo futuro, mas também à mais
profunda qualidade desta vida presente: bondade e esperança lúcidas,
solidariedade alegre, compaixão ousada, liberdade arriscada, proximidade
santificadora...
Como seguidores(as) de Jesus, não nos limitamos a
assistir passivamente o fato da morte. Confiando n’Aquele que é Fonte de Vida,
acompanhamos nossos entes queridos com amor e com nossa oração, nesse
misterioso encontro com Deus. Na liturgia cristã pelos mortos não há desolação,
rebelião ou desesperança. Em seu centro, só uma oração de confiança: “Em vossas
mãos, Pai de bondade, confiamos a vida do nosso ser querido”.
E afirmar a ressurreição não é consolo ilusório,
nem evasão do compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de
continuar o projeto de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada,
de arriscar-se pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, curando
feridas, levantando corações, semeando esperanças, tirando da Cruz aqueles que
nela estão dependurados...
A ressurreição nos faz experimentar que esta vida
peregrina revela-se como tempo da gestação concedido a cada um de nós para que,
dentro desse imenso ventre cósmico, quer na vida ou quer na morte, nos sintamos
sempre envolvidos pelo Amor criativo d’Aquele que é sempre Vida. Nesse sentido,
“ninguém morre”, pois todos “vivem n’Aquele que vive”.
Portanto, “re-cordar” (visitar de novo com o
coração) os entes queridos que já fizeram a “grande travessia”, nos capacita a
uma nova visão da morte e a assumi-la como acontecimento que faz parte de nossa
vida.
Afinal, todos morrem, mas nem todos sabem viver.
- A primeira consequência positiva do “fazer
memória” é que a morte nos faz viver agradecidos: quando tomamos consciência da
morte, nós nos damos conta de que a vida é um verdadeiro milagre, que cada
instante aqui deve ser vivido como um presente e devemos saboreá-lo o máximo
possível, porque não sabemos quando se acabará.
- A segunda, é que a morte põe as coisas em seu
devido lugar: a morte desloca, sim, mas também realoca, porque nos faz tomar
consciência daquilo que é o mais importante em nossa vida e o que de verdade
merece a pena. Ela nos faz repensar como nos relacionamos, como usamos as
coisas, o dinheiro, onde investimos a vida, quais são os verdadeiros valores,
etc...
- E por último, a morte nos ajuda a tomar decisões
em favor da vida e a nos comprometer. S. Inácio de Loyola, nos Exercícios
Espirituais, aconselha, como critério para decidir, imaginar-nos à hora da
morte e pensar qual decisão gostaríamos de ter tomado. Essa decisão leva
irremediavelmente a um compromisso por toda a vida, pois ela nos torna
conscientes de que esta vida passa, e passa rápido, e não queremos ficar preso
às afeições desordenadas, mas desejamos investir toda nossa vida em um projeto
que nos dê sentido e nos implique totalmente.
A fé cristã não é masoquista ou sádica quando nos
ensina a bem morrer. Assim nos dá maior responsabilidade diante da nossa
própria vida.
Para meditar
na oração:
“Fazer memória agradecida” de tantos familiares,
amigos ou pessoas mais próximas que viveram intensamente e que, generosamente,
partiram e “deixaram um cantinho deste mundo” mais iluminado.
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