O artigo “A teologia da morte assola o Brasil”, do teólogo Roberto Zwetsche*, é excelente.
É uma boa oportunidade para todas as pessoas que hoje procuram entender
melhor os acontecimentos da vida social e política no Brasil elaborarem uma opinião própria mais justa e coerente com a verdade.
O texto foi publicado em dezembro do ano passado
(2019) por OutrasPalavras e permanece muito relevante atualmente.
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um pouco na sua divulgação.
Vale a pena ler!
WCejnóg
A teologia da morte assola o Brasil
Incensado pelas igrejas neopentecostais, Bolsonaro
mescla o nome de Deus a um nacionalismo torto e ultraliberal, enquanto destila
ódio contra os marginalizados. Combater essas iniquidades é grande ato de amor
ao próximo…
Publicado 30/07/2019 - Atualizado 24/12/2019
(Texto apresentado na Conferência Internacional de
Teologia Prática
realizada na Faculdades EST – São Leopoldo, RS, de 04-08 de
abril de 2019)
Introdução
Começo com um caso exemplar: a derrota de Fernando
Henrique Cardoso para Jânio Quadros a prefeito da cidade de São Paulo em 1985.
Houve várias razões para este “imprevisto”, mas duas delas são significativas.
A primeira se deu após uma reportagem publicada num dos jornais de SP de maior
circulação. A reportagem levou FHC até a sala do prefeito da cidade e pediu que
ele se sentasse na cadeira do chefe do executivo. Fizeram destaque para a foto
e ela saiu estampada nos jornais. Foi um verdadeiro gol contra. A segunda se
deu num debate de TV em que perguntam ao candidato se acreditava em Deus. FHC
disse que não. Segundo gol contra. Político que se preza não pode afirmar seu
ateísmo no Brasil, seja ideológico ou prático. Nas eleições seguintes FHC
aprendeu e nunca mais disse isso explicitamente. Sempre desconversou ao ser
questionado sobre sua fé.
Mas esta questão do uso do nome de Deus na política
institucional não é nada de novo sob o céu na política brasileira[1]. Há um caso exemplar que vale recordar. Trata-se
do apoio do presidente Getúlio Vargas (agnóstico, positivista) à Igreja
Católica quando da instalação da estátua do Cristo Redentor na cidade do Rio de
Janeiro em outubro de 1931, bem no início da Ditadura Vargas do Estado Novo que
durou 15 anos. Para a igreja oficial não importava que o regime fosse uma
ditadura. Importava sim garantir a ascendência da Igreja Romana na sociedade e
na política do governo do país.
Nas últimas décadas constatamos no Brasil a
ascensão do neopentecostalismo e seu projeto de poder. Desde pelo menos 2010,
líderes de igrejas neopentecostais (e em parte também da Assembleia de Deus)
vem elegendo um número crescente de candidatos ao Congresso Nacional (deputados
e senadores), também nas Assembleias dos estados e nos municípios, com destaque
para nomes vinculados à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), mas não só
ela. Nas eleições de 2018, este campo religioso elegeu vários governadores e
muitos parlamentares. Demonstram assim força política considerável e agora no
início das disputas políticas cobram seu espaço nas instâncias do poder
federal, para algum desconforto do presidente eleito. Seu discurso está baseado
inequivocamente numa leitura conservadora do testemunho bíblico e sua pauta de
reivindicações normalmente está ligada a questões de ordem moral com amplo
apoio nas camadas mais populares e classes médias. Magali do Nascimento Cunha
tem escrito textos esclarecedores sobre este tema[2].
Um dos argumentos que mais pesou nas últimas
eleições foi o da corrupção da classe política, com foco na corrupção promovida
durante os quatro últimos mandatos dos governos do PT (Partido dos
Trabalhadores), sem distinção de responsabilidades dos outros partidos da base
de apoio do governo. O que ocorreu na mídia foi a “demonização” do PT e de
alguns de seus dirigentes, em especial, do ex-presidente Lula, depois condenado
pelo juiz Sérgio Moro a mais de nove anos de prisão, pena elevada para 12 anos
por juízes do TFR 4 de Porto Alegre. O que tivemos no Brasil, durante os
últimos cinco anos, foi um verdadeiro massacre midiático instigando a população
brasileira contra o PT, fenômeno que ficou conhecido como antipetismo,
um dos elementos sociológicos que explica a vitória do candidato
ultradireitista Jair Bolsonaro.
Como vivemos um momento surrealista no país, será
preciso explicar como um político que durante 27 anos participou ativamente
como político profissional desde sua base no Rio de Janeiro e cuja passagem
pelo parlamento foi completamente inexpressiva (ele nunca apresentou um projeto
consistente em sua vida parlamentar), conseguiu empolgar uma expressiva maioria
da sociedade e acabou sendo eleito presidente do Brasil, sem participar de
debates nas televisões e sem apresentar um programa mínimo do que pretendia
fazer se fosse eleito. Além do PT, ele derrotou o MDB, o PSDB (que praticamente
foi colocado na lona) e outros partidos do chamado “centrão”, uma expressão
ambígua que procura reunir o que de mais fisiológico existe na política
institucional brasileira. Este fenômeno histórico demandará nos próximos tempos
estudos e análises as mais diversas para explicar como isto pode acontecer,
especialmente depois de mais de três mandatos de um governo com viés popular.
Neste artigo, porém, o foco será o discurso
religioso que alavancou esta vitória política do capitão reformado, expulso do
Exército brasileiro por desservir a instituição, mas que agora parece incensado
pelos atuais comandantes militares. Não por acaso ele escolheu um general da
reserva, Hamilton Mourão, como seu vice, depois de várias negativas de outras
pessoas da sociedade civil que rejeitaram o convite.
1-Brasil
acima de tudo – Deus acima de todos
Este foi o lema da campanha do capitão candidato
que ele repetiu à exaustão durante toda a campanha. Quem conhece a história
política do Ocidente, especialmente da Europa na primeira metade do século 20,
imediatamente associa este slogan ao de Adolf Hitler e ao nazismo.
Isto é bem claro, apesar de – no caso brasileiro –
aparecer o acréscimo flagrante do nome de Deus: Deus acima de todos. No
caso alemão a frase era Deutschland über alles, que quer dizer “Alemanha
acima de tudo”. O que chama a atenção é que o candidato estava tão seguro do
apoio que teria na população que em nenhum momento teve qualquer dúvida em
esconder sua posição ideológica. Mas contraditoriamente, depois de eleito,
chega ao ponto de afirmar que o nazismo foi um movimento de “esquerda”, algo
que na última visita a Israel deixou constrangidos até mesmo seus apoiadores
naquele país. A gente se pergunta se pode levar a sério uma pessoa como esta.
Mas ela acabou sendo eleita – numa conjuntura muito específica da história
política recente do Brasil – como presidente do país.
De 147.302.354 eleitores e eleitoras aptos a votar,
o capitão recebeu 57.796.986 votos, 55,13% dos votos válidos. Entretanto,
89.505.368 pessoas, pelas mais diversas razões, não o escolheram. Agora, ele
governa insinuando-se como se fosse um messias – palavra de que ele se vale,
pois a tem no nome – que vai salvar o país, incentivando o uso de armas,
afrouxando leis ambientais e de trânsito. Salvar de quê mesmo? O verbo tem um
forte apelo religioso.
2-Uso e
abuso do nome de Deus
Uma destacada jornalista brasileira – Eliane Brum –
que escreve regularmente para o jornal espanhol El País, publicou no dia
01 de janeiro deste ano, após ouvir o discurso de posse do novo presidente, um
artigo que descortina algo do viés extremista e abusivo do nome de Deus por
parte do capitão. Ela escreveu: Deus não só “está acima de todos”, mas
converteu-se numa muleta eleitoral de Bolsonaro. No discurso do candidato, Deus
escolheu um lado, determinou o resultado das eleições e agora se prepara para
governar o maior país da América do Sul e a devolver-lhe sua prosperidade
perdida, principalmente se considerarmos a campanha ininterrupta sobre a
corrupção presente nas mais altas instâncias do poder político no Brasil,
especialmente nas suas grandes empresas privadas e públicas. Aliás, a mídia
esconde no discurso midiático que a alta economia só funciona por causa
da corrupção das autoridades e de muitos integrantes da classe política,
independentemente de partido.
Um artigo recente sobre empresas que foram
beneficiadas pelo projeto das desonerações fiscais (que comprometeu a
arrecadação para o INSS) mostra claramente que o maior número de empresas está
situado no Sudeste e Sul do país, sem que a anunciada volta dos empregos,
segundo a necessidade de milhões de desempregados, tenha se realizado. Este é o
típico exemplo do uso do dinheiro público para fins privados, como se o
Estado fosse um banco particular das empresas, em detrimento da imensa
maioria da população (cf. Juliano Giassi Goulart: A trajetória da política
fiscal de desoneração tributária no Brasil, in Le Monde Diplomatique Brasil,
janeiro 2019, p. 16s). Tal narrativa político-religiosa em relação à corrupção
parece ser novidade na cena política brasileira, especialmente sobre sua
contundência, sua efetividade em grande parte do eleitorado crente, com o apoio
de um importante conjunto de igrejas pentecostais e neopentecostais e seus
líderes, campo religioso sabidamente em crescimento vertiginoso nas últimas
décadas. Tal crescimento se manifestou politicamente na eleição de muitos
candidatos em todos os níveis da organização política (municipal, estadual e
federal). O abuso do nome de Deus, entretanto, pode ser avaliado na seguinte
declaração do novo embaixador brasileiro Ernesto Araújo, em artigo publicado
nos EUA na revista The New Criterion: “Deus voltou e a nação voltou. Uma
nação com Deus. Deus através da nação”.
Como escreveu Eliane Brum, a eleição de Bolsonaro
foi obra do próprio Deus em pessoa e divindade. O embaixador foi ainda mais
longe em sua retórica: “Os cidadãos se reconectam uns com os outros e descobrem
que formam uma nação. O próprio Deus, que era um prisioneiro triste […], volta
a circular livremente pela alma humana”.
Em sã consciência, quem é capaz de afirmar isto
sobre o Brasil? Estes senhores desconhecem a realidade brasileira? A imensa
desigualdade que impera na sociedade, impondo a miséria e a pobreza para a
maior parte de seu povo? Desconhecem eles a crescente violência que atinge
todas as pessoas, independentemente da classe social a que pertencem, mas com
danos cada dia mais graves contra jovens e negros em nosso país? Fecham eles os
olhos e ouvidos para os crimes ambientais que assolam a terra brasileira, desde
os rompimentos das barragens das empresas mineradoras (Mariana, Brumadinho –
MG; Barcarena – PA; Machadinho – RO) até o aumento exponencial do uso de
agrotóxicos nas lavouras do agronegócio e que estão matando a população
brasileira com a contaminação das terras, das águas, e destruindo a vida de
mulheres grávidas e de bebês ainda no ventre materno? Fecham eles os
olhos para o crescente feminicídio que assola a vida das mulheres brasileiras?
Ou a perseguição aos povos indígenas, a invasão de seus territórios por
madeireiras, mineradoras e garimpo ilegal, além do agronegócio?
3-Sobre a
perversão do nome de Deus
Ainda conforme Eliane Brum, há uma crescente
confusão – que me parece premeditada, planejada – entre o nome de Deus e o
nacionalismo, mas não qualquer nacionalismo, e sim um nacionalismo torto
feito à medida dos interesses neoliberais que prevalecem na orientação
econômica que já se mostra agressiva e regressiva como nunca antes e como se
tem visto nos primeiros seis meses deste governo. Quanto ao sentido desse uso,
Eliane Brum adianta uma interpretação importante para nós teólogas e teólogos.
Sintomaticamente, ela se pergunta: em que crê o
Deus de Bolsonaro? Então responde: Deus crê que os negros, que são os mais
pobres e os que mais morrem por violência e enfermidades, viviam felizes antes
que Lula e o PT “inventaram” as tensões raciais. Deus pensa que as escolas
brasileiras se converteram num bacanal infantil, estimulado por docentes
adeptos da “ideologia de gênero”. Deus odeia o mundo globalizado. Deus crê que
os migrantes podem ameaçar a soberania da nação. Deus está seguro que o Brasil
se aproximou demais da China. Deus é tão fã de Donald Trump que até pode
colocar na cabeça um chapéu com o nome do presidente dos EUA. O argumento
apenas amplia diferentes declarações do agora presidente, mas com a devida
ironia. Por isto, também coloca o outro lado desse Deus estranho.
Se o Deus de Bolsonaro crê, também descrê. Ele não acredita que a ditadura
brasileira – esse período trágico da vida brasileira que durou 21 anos
(1964-1985) e que contabiliza milhares de pessoas sequestradas, torturadas,
expulsas do país e assassinadas nos porões e casas de morte – foi mesmo uma
ditadura. Tampouco crê no aquecimento global. Para este Deus estranho tudo isto
é invenção da “esquerda”, do “comunismo’ ou do “marxismo cultural”, este último
exercendo uma verdadeira dominação cultural na educação brasileira e que
precisa urgentemente ser expurgado a qualquer custo, nem que para tanto seja
preciso reescrever todos os livros didáticos das escolas públicas brasileiras.
Se esta interpretação é verdadeira, e creio que é, estamos diante de um abuso
sem precedentes da velha cultura religiosa que impera no Brasil desde os tempos
coloniais: o uso ad absurdum do nome de Deus para justificar a opressão,
a miséria e o crime contra a população brasileira, sobretudo a mais
pobre. E o mais terrível, com o apoio eleitoral de parte dessa mesma
população.
Leonardo Boff, o conhecido teólogo da Teologia da
Libertação, com a sabedoria que seus 80 anos lhe conferem, escreveu um texto em
que afirma que tal uso político do nome de Deus se caracteriza como blasfêmia
(texto 29/03/2019, blog pessoal). Ele escreveu: “Vivemos atualmente num
país dilacerado por ódios viscerais, por acusações de uns contra os outros, com
palavras de baixíssimo calão e por notícias falsas (fake news)
produzidas até pela autoridade máxima do país, o atual presidente. Com isto ele
mostra a falta de compostura em seu alto cargo e das consequências de suas
intervenções, além dos despropósitos que profere aqui e no exterior”.
Depois de citar o famoso lema de Bolsonaro que
comentei acima, L. Boff escreve: “O segundo mandamento é claro [ao advertir]
‘não usar o nome de Deus em vão’. Só que aqui o uso do nome de Deus não é
apenas por abuso, mas representa uma verdadeira blasfêmia. Por quê? Porque não
há como combinar Deus com ódio, com elogio à tortura e a torturadores e com as
ameaças a seus opositores como fazem Bolsonaro e seus filhos”. Não se pode
esquecer que no dia da votação da abertura do processo de impeachment da
Presidenta Dilma Rousseff (17/04/2016), Bolsonaro dedicou seu voto a um dos
mais terríveis torturadores da época da ditadura, o capitão Carlos Alberto
Brilhante Ustra, já falecido. O atual presidente, por outro lado, não tem a
mínima ponta de arrependimento ao louvar o uso das armas para combater
adversários, como se pode ver em fotos empunhando armas durante a campanha de
2018, e ainda agora em sua recente visita a Israel, como se constatou numa foto
tornada pública em muitos meios de comunicação no mundo inteiro.
Depois de recordar que o Deus de Jesus é amor e misericórdia,
L. Boff continua: “O ‘bolsonarismo’ conduz uma política como confrontação com
os opositores, sem diálogo com o Congresso, política entendida como um
conflito, de viés fascista. Isto não tem nada a ver com o Deus-amor e o
Deus-misericórdia. Consequentemente, propaga e legitima, a partir de cima, uma
verdadeira cultura da violência, permitindo que cada cidadão possa possuir até
quatro armas. A arma não é um brinquedo para o jardim de infância, mas um
instrumento para matar ou se defender mutilando ou matando o outro”. E mais
adiante: “Que Deus é esse que o leva a tirar o direito dos pobres, a
privilegiar as classes abastadas, a humilhar os idosos, a rebaixar as mulheres
e a menosprezar os camponeses, sem perspectiva de uma aposentadoria digna ainda
em vida?”
Seria possível citar vários articulistas que
escrevem nos jornais do país, mulheres e homens sem vínculo com comunidades
religiosas, e que têm escrito críticas contundentes a estes discursos envoltos
numa teia religiosa e piedosa que até pode convencer pessoas crédulas e
ingênuas, mas não conseguirá se sustentar ao longo do tempo e diante de fatos
que desfazem a falsa retórica. O uso do nome de Deus é algo muito grave e que
na boca de quem o utiliza pode queimar.
Escrevi antes da eleição de 2018 uma crônica sobre
o uso pervertido de certas palavras. No texto lembrava que palavras ferem,
podem induzir ao ódio, à covardia e à destruição de outra pessoa. Fazendo
referência ao poeta pantaneiro Manoel de Barros, lembrava que há momentos em
que é preciso “escovar palavras” como os arqueólogos fazem com ossos para
descobrir histórias passadas. No caso do atual presidente, muitos dos seus
discursos incitam justamente ao ódio e à intolerância, à desfaçatez, ao delírio
coletivo mórbido. O psicanalista Contado Caligaris, em recente entrevista ao
jornal Zero Hora, suplemente Doc (30-31/03/2019, p. 12-14), afirma:
“vivemos uma onda de psicopatia no país”. Mais incisivo, disse ainda que se
tivesse que descrever qual é a doença do século 21, ela estaria entre a perversão
e a psicopatia. Se ele tem razão em sua análise, estamos vivendo um momento
verdadeiramente trágico no país. Pois, parece que nos encontramos diante de um
verdadeiro caso psicanalítico que estes profissionais deverão analisar para nos
ajudar a entender, para que como nação possamos recuperar – num futuro que
espero não seja tarde demais – , a lucidez e a paz social necessárias para
reconstruir o que está sendo destruído sistematicamente em diversos âmbitos da
vida nacional e num período desgraçadamente rápido: na educação, na saúde, nas
questões ambientais, nas relações de trabalho, na economia, na política e não
por último na desastrada política internacional, como se viu na última visita
que o presidente fez ao Estado de Israel, ignorando totalmente o povo e a causa
palestina.
O caso do Brasil atualmente serve para um vigoroso
alerta à teologia prática, às igrejas e especialmente aos governantes. Não se
usa impunemente o nome de Deus. A perversão do uso do nome de Deus tem preço. O
deus do ódio, como escreveu a jornalista Eliane Brum, não é definitivamente o
Deus de Jesus, dos profetas, da cruz e da ressurreição. O abuso desse nome pode
nos levar a uma tragédia maior do que aquela que já vivemos neste grande e
pobre país.
Meu colega pastor e mestre Hans Trein escreveu que,
mesmo quando se afirma com certa razão que Deus é Senhor sobre todos os
pretensos senhores da terra, podemos incorrer em uma falsa concepção de Deus se
interpretamos mal esta tradição. Porque o Deus bíblico não se apresentou assim,
mas antes como um Deus que ouve, escuta o clamor do seu povo e desce
para libertá-lo da escravidão (Êxodo 3), de todas as escravidões passadas e
presentes. É antes um Deus peregrino, que caminha com sua gente, sofre com ela,
chora com ela, se compadece até as entranhas como escreveu o profeta Oséias. É
um Deus que como Jesus não tinha onde reclinar a cabeça e sofreu a morte de
cruz, o suplício do Império contra seus opositores. Qualquer outra imagem
atualmente se torna ídolo,como afirma o filósofo Enrique Dussel em
vários de seus escritos. Por isto concluo estas reflexões com o seguinte.
Esta pseudo-teologia que se instalou junto
ao poder político no Brasil é extremamente perigosa. A recente participação do
Presidente Bolsonaro na Marcha para Jesus em São Paulo (junho de 2019) poderia
ser um exemplo dessa teologia equivocada. Ela é, na verdade, uma teologia
nefasta que precisa ser urgentemente denunciada e combatida com a mensagem
do evangelho. E nele ouvimos de Jesus que quem ama não incita ao ódio nem ao
uso das armas. Em João 15, Jesus afirma que já não chama mais seus seguidores e
seguidoras de servos, mas de amigos, amigas. E amigo é “quem dá vida por
seus amigos e amigas” (João 15.13), mas jamais incita ao ódio. Pelo contrário,
com Jesus aprendemos que o teste mais verdadeiro do amor ao próximo é o amor ao
inimigo (Mateus 5.44), por mais difícil que seja. Este Jesus não
aceita o uso em vão do nome de Deus. Ocorre que o amor ao inimigo, por vezes,
exige a luta contra ele, melhor, contra suas maldades ou iniquidades,
na justa linguagem dos Salmos, já que não se trata de eliminar o inimigo,
mas antes libertá-lo de sua maldade e ignorância fatal.
Referências
BOFF, Leonardo. A blasfêmia de Jair Bolsonaro: que
“Deus” acima de todos? (blog pessoal – 29/03/2019)
BRUM, Eliane. El Dios del odio de Bolsonaro. El
País, 01/01/2019.
BRUM, Eliane. O homem mediano assume o poder. El
País, 04/01/2019.
MARTINS, José de Souza. A política do
Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011.
WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso. O uso
e abuso da cruz. Trad. Geraldo Korndörfer. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2008.
ZWETSCH, Roberto E. Lutero, justiça social e poder
político. In. ZWETSCH, Roberto E. (Org.). Resgatando a radicalidade da
Reforma protestante. São Leopoldo: CEBI, 2019, p. 210-229.
[1] Cf. MARTINS, José de Souza. A política do
Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011.
*
Roberto Zwetsch é mestre e doutor em
Teologia e professor de Teologia Prática e Missiologia das Faculdades EST (da
Igreja Luterana no Brasil); também leciona no Programa de Pós-Graduação e no
Programa de Formação do Conselho de Missão entre Indígenas da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil - IECLB. Participa do Conselho Permanente do
Fórum Mundial de Teologia e Libertação representando a Comunidade de Educação
Teológica Ecumênica Latino-Americana e Caribenha – Cetela e Faculdades EST.
Entre suas obras, destaca-se Missão como com-paixão. Por uma teologia da missão
em perspectiva latino-americana (São Leopoldo: Sinodal; Quito: CLAI, 2008).
Fonte: ihu.unisinos.br