Gosto do papa
Francisco e “torço” muito por ele. Pensando nisso, trago hoje para o blog
Indagações-Zapytania o artigo Papa Francisco: Profeta contra a irrelevância, do professor Kurt
Appel, que fala sobre o papa. A matéria foi publicada em dezembro de 2016 em Settimana
News, e
postriormente também no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Faço
convite aos interessados e a quem ainda não
leu esse texto para uma proveitosa leitura. Vale a pena!
WCejnóg
IHU - Adital
04 janeiro 2017
Papa Francisco: Profeta contra a irrelevância
"O aniversário de 80 anos na Igreja Católica normalmente designa a data
em que os cardeais perdem o direito de eleger o papa, e em que – do ponto
de vista de Roma – bispos meritórios renunciam definitivamente
ao seu ofício, tendo já ultrapassado de cinco anos a idade normal da
aposentadoria. Em Bergoglio, nada faz pensar nesses prazos. Está
cheio de energia e mentalmente age de modo mais jovial e aberto do que a
maioria dos bispos, padres e políticos, incluindo até mesmo aqueles
biologicamente décadas mais jovens. Muitos esperam que este papa, tão inesperadamente
vindo de longe, permaneça ainda muitos anos à frente da Igreja Católica. Uma
pequena, mas influente minoria, pelo contrário, espera que o papa aproveite a
oportunidade de seus oitenta anos para demitir-se do cargo", escreve Kurt Appel, professor
da Universidade de Viena, em artigo publicado por Settimana
News, 17-12-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Papa Francisco é
amado por muitos crentes, e não poucos o veem quase como um salvador. Muitos
intelectuais, personalidades cristãs, líderes religiosos, bem como agnósticos e
ateus o admiram, e pode-se supor que ele seja a única autoridade moral
global do nosso tempo. No interior da igreja também ganhou muitos bispos e
padres conservadores, mas, não poucos deste grupo mostram-se bastante céticos e
alguns o consideram um herege.
O "Papa da
Misericórdia"
A Igreja Católica, que em sua história, é
especialista em marketing, há algum tempo começou a dar aos papas um atributo
atraente. O Papa João XXIII foi o "Papa bom",João
Paulo II, o "Papa da nova evangelização", Bento XVI "Papa
da verdade". Só com Paulo VI – aquele grande e tímido
intelectual, certamente não adequado às estratégias de marketing – este
esforço não conseguiu êxito nas relações públicas da Igreja, e tornou-se o
"Papa da pílula".
Ao Papa Francisco é dado o título
de "Papa da Misericórdia". Este atributo parece legítimo pelo seu
pontificado, pois seus escritos, homilias e catequese indicam que o próprio
papa se compreende como testemunha da misericórdia de Deus. A renovação, ligada
à Bíblia em sua consciente relação com este nome divino central (Ex 34,6s),
não se encontra somente em seu enorme potencial ecumênico – pense-se à
confissão muçulmana de Deus misericordioso –, mas também na renovação do ordenamento
simbólico da Igreja Católica. A ordem simbólica de uma comunidade é marcada
pela sua expressão linguística, cultural, estética, ética, afetiva e cognitiva.
A Igreja Católica é caracterizada, ao menos desde a Contrarreforma e o barroco
a ela associado, por um enorme programa estético. Em certo sentido, ela traz
para a terra o palácio celeste. Com isso, o mundo católico apresenta um belo
cosmos, finamente estruturado, organizado em cada detalhe, garantido por várias
hierarquias. Esta ordem, onde que cada pessoa tem seu próprio lugar específico,
vai desde as três classes de cardeais, aos paramentos litúrgicos dos
sacerdotes, até as regras da moral sexual católica fixadas no catecismo e à
hierarquia das verdades. O problema é que esta ordem, na modernidade,
descobre-se sempre mais frágil.
Autodeterminação e individualismo, emancipação das
estruturas políticas e familiares tradicionais, perda de legitimidade das assim
chamadas hierarquias "divinas", e uma grande consciência do potencial
de violência dos sistemas normativos e disciplinares totais, colocaram sempre
mais à dura prova a Igreja.
O Papa João Paulo II e Bento
XVI entendiam por "nova evangelização", sobretudo, um
retorno à Igreja, como um sistema de ordem universal e constitutivo de
identidade – com particular atenção à defesa da dignidade humana universal –
onde, sobretudo o clero, como mediador entre o homem e Deus, desemprenhava o
papel de guia. O problema era, no entanto, que nas novas megacidades e
realidades culturais, o ordo construído ao longo dos séculos possuía uma base
social sempre menor. Privada de sua tradicional base cultural, a Igreja
tornou-se sempre mais mediatizada e virtualizada. Suas tradições, constitutivas
de identidade, tornaram-se, no perfeito estilo pós-moderno "marcas" sem
conteúdo e sem história, enquanto o clero mais jovem é esmagado entre o papel
de guardião de uma ordem imaginária intocável e os mundos frágeis que se
encontram in loco. Paradoxalmente, então, a Igreja, que queria combater a
pós-moderna perda de identidade e o niilismo, tornou-se, ela mesma, cada vez
mais expressão da sociedade global pós-moderna: longe da história concreta e de
suas feridas, longe da esperança concreta e das suas fadigas.
Nova visão de Igreja
A
peculiaridade do Papa Francisco é que ele conseguiu –
referindo-se de modo consciente ao Papa do Concílio, Paulo
VI – dar novo significado aos ordenamentos simbólicos da Igreja. Sob
o tema norteador da misericórdia,
coloca o inteiro mundo simbólico do catolicismo a serviço da percepção da
vulnerabilidade e das consequentes potências de cura. O homem pós-moderno é
frágil, porque muitos dos mecanismos de proteção tradicionais (família,
metafísica, Igreja etc.) foram abolidos, e responde a esta fragilidade ou com
uma constante virtualização do mundo ferido, ou – e este é o caminho de Bergoglio –,
com o reconhecimento da vulnerabilidade, como primeiro e decisivo passo de um
ser-com solidário e misericordioso. Recentemente cardeais e bispos, em face às
críticas da parte de quatro cardeais (Meisner, Burke e Caffarra e
Brandmüller), apontaram a continuidade entre os ensinamentos de João
Paulo II e Francisco, o
que é provavelmente verdade. Mas não o é inteiramente. Porque Bergoglio,
mesmo que nada tenha mudado do ensino tradicional, no entanto, coloca-o
radicalmente a serviço de uma visão "compassiva" (aisthesis),
quer dizer, convida a experimentar e assumir solidariamente a vulnerabilidade,
de modo que o ordenamento clássico da igreja barroca seja, em certo sentido,
"superado" (no sentido hegeliano de preservar, suspender, elevar a um
nível superior).
O “valor acrescentado”
da teologia
Exatamente, na luta contínua pela concretização do
olhar sobre a miséria dos outros,
Bergoglio quebra, ao menos momentaneamente, a medialização do
papado. De vez em quando, pelo menos, pode-se alimentar a ideia de que este
papa existe realmente. O olhar sobre o concreto induz também a uma mudança
teológica radical, vinda à luz já nos principais escritos de Paulo VI [Populorum
Progressio (1967), Evangelii Nuntiandi (1975)].
Caracteriza-se pelo fato de que a teologia, como nos primeiros séculos, põe-se
a serviço de um modo específico de análise social.
Nos seus três documentos principais (Evangelii Gaudium, Laudato si’, 'Amoris Laetitia), o papa
Francisco foi capaz de comunicar também ao mundo laico (e não cristão)
o “valor acrescentado” da análise teológica e, então, testemunhar Deus como
momento de abertura ao mundo real de hoje. A teologia, desta forma, não gira
obsessivamente sobre si mesma, mas tenta penetrar nas questões concretas de seu
tempo, onde - do ponto de vista cristão – ela encarna o próprio Kyrios.
Neste sentido, não em último lugar, Bergoglio é o papa que devolve
um espaço significativo para as perguntas dentro da Igreja.
A renovação que Francisco encarna,
e que para muitos aparece como um milagre, não pode, no entanto, negligenciar
os perigos aos quais seu pontificado está exposto. Seu lema
"misericórdia" refere-se ao centro da mensagem bíblica, mas poderia
muito bem ser vítima de uma ideia de um amor de arbitrariedade, como quando
"misericórdia" significa tudo e nada, e até mesmo o bispo ou o
cristão mais cruel começam a embelezar-se com ela. Neste sentido, já se começam
a ver as primeiras tendências. O termo "misericórdia" não é,
portanto, privado de ambiguidades. De fato, se por um lado designa o mistério
do ser – com divino, por outro lado, na esfera da sociabilidade humana, pode
ser facilmente abusado em sentido paternalístico. Sobretudo no campo das
instituições públicas, não se poderá confiar na misericórdia das autoridades,
mas se farão valer os direitos jurídicos.
Novas formas de
institucionalização
Para uma encarnação crível do Evangelho do amor
misericordioso, a Igreja precisa de novas formas de institucionalização. Ela se
encontra diante do fato de que na Europa, mas também, cada vez
mais, nos Estados Unidos, cresce uma geração de jovens completamente alheios às tradicionais formas de expressão religiosa, o
que pode ser uma das razões para que o próximo Sínodo dos Bispos seja
dedicado à juventude. Além disso, há cada vez menos lugares reais onde se possa
fazer experiência de Igreja. Na verdade, o suporte da rede eclesial, o clero,
para cuja promoção os dois últimos papas gastaram tanta energia, não é nem
quantitativa, nem qualitativamente capaz de conduzir (por si só), a Igreja do
futuro. Os leigos, no entanto, geralmente, ainda não contam nada e permanecem
estruturalmente dependentes da boa vontade do respectivo bispo ou padre.
A Igreja precisa, portanto, olhando para a
misericórdia divina, de uma renovação espiritual que se mede pelo fato de que
os pobres, os marginalizados, os feridos encontram hospedagem nela. Olhando
para esta tarefa, deve também reformar radicalmente suas estruturas. Caso
contrário, irá cair, em décadas, numa completa irrelevância. Talvez o
pontificado de Bergoglio seja a última chance para uma tal
reorientação.