Acho muito oportuno e bem expressivo o artigo: “A incômoda presença dos indígenas no Brasil”, de José Ribamar Bessa
Freire, que foi publicado no Correio do Brasil (19/01/2017). É mais um artigo sobre a questão indígena no
Brasil. Trago-o também para o blog Indagações-Zapytania a fim de contribuir
pelo menos um pouco na sua divulgação.
Penso
que é muito importante a sociedade brasileira despertar em si uma consciência
coletiva baseada nos princípios da verdade histórica, da justiça e do direito
em relação aos povos indígenas, que hoje, em pleno século XXI, ainda precisam
lutar pela sua sobrevivência. O Brasil urgentemente precisa reconhecer e
confirmar legalmente a necessidade de proteger e reparar os danos onde isso for
possível (por exemplo, na forma de demarcação e homologação de terras
indígenas), e de devolver o merecido respeito a todos esses povos que foram e são
os primeiros e legítimos habitantes deste país.
Não deixe de ler!
WCejnóg
Correio do Brasil
Publicado em 19/01/2016
Embora os indígenas sejam os habitantes nativos do
território descoberto pelos portugueses e denominado Brasil, seu povo e suas
aldeias foram dizimados e ainda hoje a minoria restante tem suas terras
roubadas, é rejeitada e sofre violências.
Por José Ribamar Bessa Freire, de
Niterói:
O assassinato do bebê Kaingang é um entre os muitos
cometidos contra os indígenas
Embora estarrecidos, temos de admitir que
pertencemos à mesma família humana do jovem que degolou o bebé Kaingang de dois
anos na rodoviária de Imbituba (SC).
Compartilhamos, envergonhados, a mesma identidade
nacional do suspeito do crime, Matheus Silveira, o Teto, 23 anos, que está
preso. Já para a Polícia, esse é apenas o caso de um“usuário de drogas, que
sofre de distúrbios mentais“. Será? O delegado ouviu familiares e
ex-colegas do Colégio Caic. Não concluiu o inquérito, mas já adiantou não ter
visto conotação racista no crime, embora admita que o assassino estava “incomodado
com a presença dos indígenas no local“.
Parece legítimo ir além do fato policial ou do
diagnóstico médico e indagar a origem de tal incômodo. Para isso, convém
identificar o lugar do índio na sociedade nacional, na visão do brasileiro
médio, o que é definido na fala e no silêncio, nas ações e omissões de
entidades como escola, mídia, museu, família, igreja, partidos políticos,
associações de classe, tribunais, polícia, monumentos e até nas comemorações
que definem o que deve ser lembrado ou esquecido.
A presença incômoda do índio não é só na
rodoviária, mas no âmbito nacional. Isso foi explicitado, em 1900, pelo
presidente da Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, o
engenheiro Paulo de Frontin. No discurso oficial de abertura, ele falou como
representante da nação:
“O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos,
ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus
ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte
integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o
conseguindo, eliminá-los”.
Não houve qualquer contestação à proposta anunciada
diante do cardeal que celebrou missa campal na Praia do Russell, depois da
inauguração do Monumento ao Descobrimento, na Praça da Glória, integrado pelas
estátuas de Cabral, Caminha e Frei Henrique. Afinal, sem índios, suas terras
ficam disponíveis no mercado.
O Estado neobrasileiro assumia, desta forma, a
política colonial que originou no continente americano a “maior catástrofe
demográfica da história da humanidade”, segundo os demógrafos da
Escola de Berkeley, que calculam em 10 milhões a população indígena, em 1500,
no território que é hoje o Brasil. No primeiro século de colonização houve 90%
de despovoamento, segundo W. Borah, com refinados métodos de análise.
Os dados são confirmados na documentação do Guia de
Fontes para a História Indígena, da USP, organizado por Manuela C. da Cunha e
John Monteiro que trabalharam com 120 pesquisadores em arquivos das capitais
brasileiras(1994). Uma carta, de 5 de janeiro de 1654, do vigário do Pará,
cônego Manoel Teixeira, de 70 anos, escrita no leito de morte, calcula que “mais
de dois milhões de índios de mais de quatrocentas aldeias” foram
extintos “a trabalho e a ferro”. Seu autor confessa “grandes
injustiças e crueldades contra os índios“, povoações incendiadas, “tirando-os
de suas terras com enganos”.
Como qualquer documento histórico, este deve ser
submetido à crítica, mas não pode ser ignorado, como querem os que o acusam de
“vitimismo” ou de “fantasioso”. A cifra de 2 milhões não é para ser tomada como
um dado estatístico, mas como revelador de um embate de grande magnitude que
permanece ignorado ou minimizado pela sociedade nacional, que não se posiciona
diante dele.
Pesquisa do Programa de Estudos dos Povos Indígenas
(UERJ) avaliou o papel da escola, da mídia e de outras instituições na imagem
que os brasileiros têm dos índios. Foram mais de 200 entrevistas com pessoas
que nunca visitaram uma aldeia, mas têm opinião firme sobre o lugar dos índios
no Brasil. Para um deles, com curso universitário concluído, os índios são
“preguiçosos”, “bêbados”, “entrave para o progresso”, “um câncer que deve ser
extirpado do Brasil”.
O curioso é que essa imagem não coincide com a da
própria mãe do entrevistado, dona de casa com apenas o ensino fundamental.
Algumas respostas nos permitiram verificar que o preconceito se manifesta,
talvez com mais força, naquelas pessoas com escolaridade avançada, que tem mais
acesso à mídia. Se isso se confirma, quanto mais escola e mais mídia, maior é o
preconceito.
Esse é um dado a ser pensado no momento em que se
discute a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e se pretende abrir uma brecha
para a história indígena, tradicionalmente ausente da escola. Uma oposição
histérica berra na mídia: – E a Mesopotâmia? E o Egito? – como se fossem temas
incompatíveis. Esse discurso recebe o apoio do Clube Militar do Rio de Janeiro,
para quem o BNCC quer “esculpir um Brasil descontaminado de heranças
europeias“, invertendo assim a questão. O silêncio cúmplice da escola e de
parte da mídia evidencia que o discurso de Paulo de Frontin continua
sustentando ideologicamente a virulência. No confronto entre os que não podem
esquecer e os que não querem lembrar, é preciso construir “outro tipo de
memória”, como quer Boaventura Santos.
__________
José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de
doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de
Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em
Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris
e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.
Direto da Redação é
um fórum de debates editado pelo jornalista Rui Martins.
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