Por considerar bem atual e muito
útil para o conhecimento das pessoas interessadas no assunto, trago hoje também
para o blog Indagações-Zapytania o artigo “Abuso sexual e a cultura do clericalismo”,
de Jason Blakely.
Penso que vale a pena ler todo
esse texto, que é uma crítica boa e construtiva, o que pode nos ajudar na
formação de uma opinião pessoal correta e justa. Nos tempos atuais isso é muito
importante sobretudo para os fiéis da
Igreja Católica.
A matéria foi publicada por America (23-08-2018)
e também, posteriormente, no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
WCejnog
IHU – ADITAL
24 Agosto 2018
"É importante reconhecer que o clericalismo cria uma cultura na qual os padres
não-abusivos não podem se desculpar abertamente ou ser vistos como moralmente
falhos. No esforço de parecerem tão impassivelmente perfeitos quanto um ícone
bizantino, os padres não têm mais uma maneira de discutir francamente suas
próprias limitações morais", escreve Jason Blakely, professor
assistente de ciência política na Pepperdine University, autor
do livro Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, and the Demise of
Naturalism: Reunifying Political Theory and Social Science('Alasdair
MacIntyre, Charles Taylor e o fim do naturalismo: reunificando teoria política
e ciências sociais', em tradução livre) de 2016, em artigo publicado por America,
23-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Segundo ele, "devemos passar por cima de
relatos simplistas e inúteis das fontes de abuso que revezam a masculinidade, o
celibato e a homossexualidade como bode expiatório. O papa Francisco está
oferecendo um lugar para uma investigação mais profunda sobre como reparar a
cultura católica".
Eis o artigo.
A recente revelação de um grande júri sobre décadas de níveis
sistematicamente entrincheirados e profundamente sádicos de abuso infantil em
seis dioceses da Pensilvânia causou uma raiva atordoante em
muitos católicos. É de se perguntar: por que a Igreja - e em particular a
Igreja dos EUA - continuamente se encontra não apenas aquém da
comunidade de amor e solidariedade de Jesus, mas fracassando catastroficamente
em satisfazer até mesmo os níveis mais rudimentares da decência humana? Qual é
o problema com o catolicismo de hoje?
Uma resposta ao problema destaca razoavelmente a
necessidade de melhores protocolos e grades de proteção legais quando se trata
de abuso sexual. Muitos bispos e representantes da Igreja
trataram vítimas de abuso como opositores legais a serem silenciados e
passíveis de serem manipulados. Com demasiada frequência, casos de abuso eram
tratados de maneira sinistra e egoísta, como solucionáveis internamente, sem a
necessidade de envolver autoridades civis e investigações. A “Charter for the Protection of Children and Young People”
(“Carta para a Proteção de Crianças e Jovens”, em tradução livre) é apenas o
começo de um processo necessário de reforma e de supervisão da justiça civil.
Embora essas exigências sejam fundamentais, elas
não abordam adequadamente as fontes mais profundas do problema na Igreja.
Afinal, a reforma legal, por todas as suas virtudes, é naturalmente externa à
vida cotidiana da Igreja e é, em grande parte, reativa a crimes e abusos já
existentes. Nesse sentido, as reformas legais são insuficientes para abordar as
condições que geraram inicialmente um sistema de abuso. De fato, os católicos
ainda não têm uma história consistente sobre o que deu errado. E, sem uma narrativa
vigorosa sobre o que levou a Igreja a um lugar tão sombrio, será difícil
encontrar um caminho que nos leve a um lugar onde as crianças, e não seus
abusadores, sejam protegidas.
Narrativas Falsas
Naturalmente, há muitas vozes na sociedade que
estão ansiosas para fornecer uma narrativa ao que há de errado com o
catolicismo. Alguns comentaristas argumentam que as causas de tal abuso
endêmico são simplesmente intrínsecas ao próprio catolicismo e
suas distintas práticas espirituais.
Muitas vezes essa crítica assume a forma de uma
explicação biologicamente redutiva do celibato. Nessa visão neofreudiana, o celibato é uma demanda
insuportável. Qualquer ser humano solicitado a fazer promessas de celibato é
levado à hipocrisia moral pela natureza irreprimível da libido sexual. Como um
ex-padre e sobrevivente de abuso destacou, violações relativamente pequenas da
castidade dão cobertura aos padres que cometem o pior tipo de abuso.
Um pastor, por exemplo, tem um relacionamento
[consentido com um adulto] enquanto declara ser celibatário, mas ele tem um
assistente que é um abusador de crianças, ou tem um amigo que é um abusador de
crianças, e ele não vai soar o alarme sobre esse comportamento criminoso,
porque seu próprio comportamento vai ser descoberto.
A partir de tal visão do celibato e sua relação com o
abuso, é fácil chegar à conclusão de que a reforma deve
incluir a abolição desse tipo de vocação. Por esse raciocínio, o próprio catolicismo e
a vida de celibato vivida por Jesus são incompatíveis
com uma humanidade saudável.
Outros comentaristas argumentam que a liderança
apenas masculina é intrinsecamente disfuncional. Diz-se que a masculinidade
como um fenômeno biológico está, de alguma forma, dirigindo e gerando um
problema social particular - como se os homens, simplesmente por estarem em
papéis de liderança, tivessem maior tendência a negligenciar e cometer atos
sádicos de abuso.
Ainda outra versão dessa busca pelas fontes do
problema na psique masculina é a afirmação de que o desejo homossexual
masculino é o culpado e qualquer um que já tenha tido tais desejos deve ser
excluído do sacerdócio. Este último argumento permite convenientemente que
certos católicos evitem um esforço sério de autocrítica em favor de se
concentrarem num bode expiatório (homens gays) como objeto de culpa.
Por mais diferentes que sejam esses diagnósticos,
todos eles compartilham um problema comum: a saber, eles supõem erroneamente
que o comportamento abusivo está de algum modo essencialmente ligado à
sexualidade masculina reprimida ou à psique masculina como tal.
Ao invés de uma análise histórica e culturalmente sensível do que deu errado
com a Igreja, esses diagnósticos exigem uma ampla rejeição de expressões da
sexualidade masculina (por exemplo, celibato ou homossexualidade) que não foram
propriamente domadas em uniões heterossexuais.
Mas as estatísticas sobre a demografia dos autores
de abusos revelam que os homens casados não-celibatários são uma fonte significativa de abuso infantil nos Estados Unidos. O celibato,
a homossexualidade, a heterossexualidade ou
a liderança masculina simplesmente não caracterizam
adequadamente o problema de uma cultura de abuso. Eles buscam marcadores formais, demográficos
e biológicos onde o que é necessário é uma visão aprofundada de uma cultura
particular.
Em uma guinada para explicações mais historicamente
sensíveis, os católicos poderiam começar fazendo perguntas como esta: O que, em
particular, deu errado com a cultura católica nos Estados Unidos durante
o século XX? Não pretendo ter uma resposta adequada a essa pergunta. Mas a
Igreja precisa responder a esse enigma crucial a fim de eliminar futuros abusos.
Isso exigirá que se escute atentamente a história da Igreja Católica - que se
escute repórteres, etnógrafos, historiadores e o testemunho dos próprios
maltratados.
Privilégio Clerical
Um (embora ainda inadequado) ponto de partida para
responder a essa pergunta foi oferecido pelo papa Francisco quando ele recentemente repetiu suas advertências contra o
que chama de cultura do “clericalismo”, na qual a plenitude da
realização espiritual é vista como amplamente reservada aos líderes religiosos
ordenados. Nesta concepção da Igreja, os padres são vistos como os únicos
exemplos reais e plenos da vida religiosa, enquanto os leigos ocupam, em sua
maioria, um status secundário de ajudantes.
O clericalismo na Igreja Católica, diz Francisco,
“anula a personalidade dos cristãos” e “leva à funcionalização dos leigos,
tratando-os como 'meninos [ou meninas] de recados'”. O clericalismo faz
isso tratando os padres como ministros beatificados apenas por força do papel
formal que eles ocupam na Igreja. Do ponto de vista do clericalismo,
os sacerdotes parecem seres quase mágicos, mais sagrados do que o resto de nós,
capazes de maior perfeição moral, discernimento, sabedoria e fortaleza.
Francisco observa
que o clericalismo não é apenas perpetuado pelos padres, mas
também reforçado por muitos leigos. Numa Igreja excessivamente clericalizada,
os padres não estão em relações humanas abertas, iguais e vulneráveis com o seu
rebanho. Em vez disso, eles estão isolados
por seu próprio status moral e espiritual.
Ao invés de um laicato que pode conhecer seus sacerdotes como seres humanos (e,
portanto, ver sinais de alerta e intervir quando há suspeita de abuso), os
paroquianos veem o padre como um xamã ou um guru.
Mas Francisco observa que essa
tendência subverte o cristianismo tradicional, que sustenta
que os padres são servos dos leigos e não o contrário. O clericalismo está,
portanto, ligado a uma configuração vertical excessivamente autoritária da
Igreja. Por essa razão, Francisco vê uma ligação entre
uma cultura de clericalismo e a falta de transparência tão
característica do abuso na Pensilvânia. Como Francisco escreveu em sua recente carta em resposta ao relatório do
grande júri: "Dizer 'não' ao abuso é dizer um enfático 'não' a
todas as formas de clericalismo".
A crítica ao clericalismo é
difícil de aceitar para muitos católicos, porque vai além da acusação (embora
plenamente justificada) dos principais autores e das questões de
responsabilidade distribuída. O clericalismo coloca a questão: Como todos os
católicos são cúmplices de uma cultura em que o abuso é desenfreado? Talvez
todos os católicos possam fazer alguma coisa a respeito do clericalismo criando
comunidades eclesiais que são compostas de relacionamentos reais e densos e não
a distância criada pelo clericalismo.
Será importante, no esforço para combater uma
cultura do clericalismo, aprender com os erros do passado. Um desses
erros foi assumir que o clericalismo é superado por gestos simples e formais de
inclusão social. Como nos ensina a história de vida perturbadora de um sobrevivente
de abuso, é possível convidar o pároco para jantar várias vezes por mês e
ainda ter um conjunto de relações completamente clericalizado e quase
autoritário.
Superar o clericalismo significa
criar relações abertas, transparentes e iguais entre padres e leigos. Uma
comunidade assim está disposta a permitir a correção moral dos sacerdotes pelos
leigos e não simplesmente a correção dos leigos pelos sacerdotes. Essa
comunidade é aberta e está disposta a aprender com todos os seus membros.
Apenas uma comunidade de relações humanas e
transparência maiores poderá identificar e erradicar comportamentos abusivos.
Onde o clericalismo esconde a psicologia do padre por trás de
um véu de pseudobeatificação, Francisco nos pede para olhar
realisticamente os seres humanos à nossa frente e responder de acordo. Da mesma
forma, os padres apreendidos por uma mentalidade de clericalismo precisam
renunciar ao orgulho de uma divindade ou santidade especial e, em vez disso,
devem procurar se tornarem mais profundamente humanos (como Cristo).
Também é importante reconhecer que o clericalismo cria uma cultura na qual os padres
não-abusivos não podem se desculpar abertamente ou ser vistos como moralmente
falhos. No esforço de parecerem tão impassivelmente perfeitos quanto um ícone
bizantino, os padres não têm mais uma maneira de discutir francamente suas
próprias limitações morais. Eles se tornam cativos de sua própria beatificação
falsa. Este é o verdadeiro fundo de verdade por trás da importante percepção de
que os sacerdotes completamente degradados moralmente são capazes de chantagear
aqueles que quebraram suas promessas de celibato em relações consensuais com
adultos. Somente um padre cativo de uma noção inflada de superioridade moral é
incapaz de viver a humilhação da revelação de suas próprias falhas humanas - e
somente uma comunidade que se recusa a lutar com a humanidade de seus
sacerdotes é capaz de colocar uma venda em seus próprios olhos e viver em meio
aos abusos inaceitáveis e intoleráveis que estão escondidos da vista.
Não pretendo que isso seja uma análise completa ou
adequada do que deu errado com o catolicismo americano no
século XX. Mas devemos passar por cima de relatos simplistas e inúteis das
fontes de abuso que revezam a masculinidade, o celibato e a homossexualidade como bode expiatório.
O papa Francisco está oferecendo um lugar para uma
investigação mais profunda sobre como reparar a cultura católica. A falta de
atenção ao aviso levará à reprodução das exatas condições que inicialmente
tornaram essa violência possível.
Como Francisco exorta, os
católicos precisam trabalhar juntos para gerar uma nova cultura e renovar a
Igreja - para criar “a solidariedade e o compromisso com uma cultura de cuidado
que diga 'nunca mais' a toda forma de abuso”.
Fonte:
IHU – ADITAL
Nenhum comentário:
Postar um comentário