“O relatório é um bom começo,
porque evidencia que os índios precisam de uma Comissão da Verdade não
apenas para os 21 anos de ditadura militar, mas
para os 514 anos de História em que
crimes foram e continuam sendo cometidos contra eles. Assim, podem surgir
praças de maio dentro das malocas, cobrando mudanças radicais na política
indigenista do país.” (do
artigo abaixo)
Hoje
trago para o blog Indagações-Zapytania mais um artigo acerca da questão
indígena no Brasil, no período da ditadura militar.
Penso
que toda a sociedade brasileira precisa conhecer a verdade histórica em relação
às políticas de extermínio dos povos indígenas nesta terra, onde eles eram os
primeiros habitantes, promovidas pelos governos deste país. As tentativas de
minimizar esses crimes ou ignorá-los, hoje não têm mais cabimento. Nenhuma
desculpa é capaz de justificar esse extermínio dos indígenas no passado e
reparar os danos. Esta é a verdade!
Lamentavelmente,
ainda hoje existe muita violência contra eles, e pior, contando com o apoio ou
omissão do poder público. E isso não pode continuar. É preciso sensibilizar e
conscientizar a sociedade brasileira, para que o Brasil procure tratá-los daqui
para frente, com justiça e respeito. É preciso, hoje, ouvir a voz desses povos!
O
artigo, de autoria do professor José Ribamar Bessa Freire (UNI-Rio), foi publicado no mês de junho de 2014 no
blog Amazônia/ Terra Magazine e,
posteriormente, também no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Não
deixe de ler!
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Quarta, 04 de junho de
2014
Na Amazônia, ditadura matou
mais índios do que guerrilheiros
"No Brasil,
vários movimentos nos fizeram ouvir a voz de quem foi silenciado. No entanto,
como ninguém entende línguas indígenas, nem se interessa por aprendê-las, não
se escuta o clamor dos índios, seja de mães indígenas por seus filhos ou de
índios por seus pais desaparecidos. Desta forma, os índios, sempre invisíveis
na historia do Brasil, ficaram de fora das narrativas e não figuram
nas estatísticas dos desaparecidos políticos. Na floresta, não há praças de
maio", escreve José Ribamar Bessa Freire, professor
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio) e
coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indigenas, em artigo
publicado no blog Amazônia/Terra Magazine, 01-06-2014.
Eis o artigo.
Na Argentina,
elas foram reprimidas por baionetas quando indagaram, em 1977, pelos filhos
presos. Os generais golpistas debocharam: "son las locas de Plaza de
Mayo". Obstinadas, não desistiram, continuaram ocupando a Praça de Maio,
desfilando o seu protesto semanal diante da Casa Rosada e da catedral
até que, finamente, reconhecidas pela sociedade, contribuíram para o fim da
ditadura e a prisão dos torturadores.
No Brasil, vários
movimentos nos fizeram ouvir a voz de quem foi silenciado. No entanto, como
ninguém entende línguas indígenas, nem se interessa por aprendê-las, não se
escuta o clamor dos índios, seja de mães indígenas por seus filhos ou de índios
por seus pais desaparecidos. Desta forma, os índios, sempre invisíveis na
historia do Brasil, ficaram de fora das narrativas e não figuram nas
estatísticas dos desaparecidos políticos. Na floresta, não há praças de maio.
Mas agora isso começa a
mudar. Relatório do Comitê Estadual da
Verdade do Amazonas, que será em breve
publicado pela Editora Curt Nimuendajú, de Campinas (SP), começou
a mapear os estragos, comprovando que na Amazônia, mais do que
militantes de esquerda, a ditadura eliminou índios, entre outros, Cinta-Larga
e Surui (RO/MT), Krenhakarore na rodovia Cuiabá-Santarém, Kanê
ou Beiços-de-Pau do Rio Arinos (MT), Avá-Canoeiro (GO), Parakanã
e Arara (PA), Kaxinawa e Madiha (AC), Juma, Yanomami e
Waimiri-Atroari (AM/RR).
O foco do primeiro
relatório, de 92 páginas, já encaminhado à Comissão Nacional da Verdade (CNV),
incide sobre os Kiña, denominados também como Waimiri-Atroari, cujos
desaparecidos são conhecidos hoje por seus nomes, graças a um trabalho
cuidadoso que ouviu índios em suas línguas, consultou pesquisadores e
indigenistas, fuçou arquivos e examinou documentos, incluindo desenhos que
mostram índios metralhados por homens armados com revólver, fuzil, rifles,
granadas e cartucheira, jogando bombas sobre malocas incendiadas.
Os desaparecidos
De noite, nas malocas,
os sobreviventes narram a história da violência sofrida, que começou a ser
escrita e ilustrada por crianças alfabetizadas na língua Kiña pelos
professores Egydio e Doroti Schwade com o
método Paulo Freire. O casal morou com quatro filhos pequenos na aldeia Yawará,
sul de Roraima, em 1985 e 1986, antes de ser expulso pelo então presidente da
Funai, Romero Jucá, lacaio subserviente das empresas mineradoras.
Durante esse período, Egydio
registrou, com ajuda de Doroti, as narrativas contadas às crianças por adultos
que testemunharam os fatos.
Os primeiros textos
escritos por recém-alfabetizados, ilustrados por desenhos, revelaram "o
método e as armas usadas para dizimá-los: aviões, helicópteros, bombas,
metralhadoras, fios elétricos e estranhas doenças. Comunidades inteiras
desapareceram depois que helicópteros com soldados sobrevoaram ou pousaram em
suas aldeias" – diz o relatório.
Com a abertura da rodovia BR-174 e a
entrada das empresas mineradoras, muitas aldeias foram varridas do mapa.
"Pais, mães e filhos mortos, aldeias destruídas pelo fogo e por bombas.
Gente resistindo e correndo pelos varadouros à procura de refúgio em aldeia
amiga. A floresta rasgada e os rios ocupados por gente agressiva e inimiga.
Esta foi a geografia política e social vivenciada pelo povo Kiña desde o início
da construção da BR-174, em 1967, até sua inauguração em 1977" –
segundo o relatório.
Alguns sobreviventes
refugiados na aldeia Yawará conviveram durante dois anos com Egydio
e Doroti. Lá, todas as pessoas acima de dez anos eram órfãs, exceto duas
irmãs, cuja mãe ainda vivia. O relatório transcreve a descrição feita pelo
índio Panaxi:
"Civilizado matou
com bomba" – escreve Panaxi ao lado do desenho, identificando os
mortos com seus nomes: Sere, Podanî, Mani, Priwixi,
Akamamî, Txire, Tarpiya. A eles se somaram outros de uma
lista feita por Yaba: Mawé, Xiwya, Mayede – marido
de Wada, Eriwixi, Waiba, Samyamî – mãe de Xeree,
Pikibda, a pequena Pitxenme, Maderê, Wairá – mulher
de Amiko, Pautxi – marido de Woxkî, Arpaxi – marido
de Sidé, Wepînî – filho de Elsa, Kixii e seu marido
Maiká, Paruwá e sua filha Ida, Waheri, Suá –
pai de Warkaxi, sua esposa e um filho, Kwida – pai de Comprido,
Tarakña e tantos outros.
Quem matou
A lista é longa, os
mortos têm nomes, mas às vezes são identificados pelo laço de parentesco: “a
filha de Sabe que mora no Mrebsna Mudî, dois tios de Mário Paruwé, o pai
de Wome, uma filha de Antônio”, etc. O
relatório se refere ao "desaparecimento de mais de 2.000 Waimiri-Atroari
em apenas dez anos".
Na área onde se localiza
hoje a Mineradora Taboca (Paranapanema) desapareceram pelo menos nove aldeias
aerofotografadas pelo padre Calleri, em 1968, em sobrevoos a serviço da FUNAI. Os
alunos da aldeia Yawará desenharam casas e escreveram ao lado frases como:
- Apapa takweme apapeme
batkwapa kamña nohmepa [o meu pai foi atirado com espingarda por civilizado
e morreu] – escreveu Pikida, ao lado do desenho que ilustra o fato.
- Taboka ikame Tikiriya
yitohpa. Apiyamyake, apiyemiyekî? [Taboca chegou, Tikiria sumiu, por que?
Por que?]
A resposta pode ser
encontrada no ofício 042-E2-CONF. do Comando Militar da Amazônia, de
21/11/1974, assinado pelo General Gentil Nogueira, que recomendava o uso
da violência armada contra os índios, segundo o relatório encaminhado à Comissão
Nacional da Verdade.
Um mês e meio depois, o
sertanista Sebastião Amâncio da Costa, nomeado chefe de Frente de Atração
Waimiri-Atroari (FAWA), em entrevista ao jornal O Globo
(06/01/1975), assumiu de público as determinações do general Gentil, declarando
que faria “uma demonstração de força dos civilizados que incluiria a utilização
de dinamite, granadas, bombas de gás lacrimogêneo e rajadas de metralhadoras e
o confinamento dos chefes índios em outras regiões do País”.
O resultado de toda essa
lambança é descrito por Womé Atroari, em entrevista à TV Brasil,
relatando um ataque aéreo a uma aldeia e outros fatos que presenciou:
- Foi assim tipo bomba,
lá na aldeia. O índio que estava na aldeia não escapou ninguém. Ele veio no
avião e de repente esquentou tudinho, aí morreu muita gente. Foi muita maldade
na construção da BR-174. Aí veio muita gente e pessoal armado, assim,
pessoal do Exército, isso eu vi. Eu sei que me lembro bem assim, tinha um avião
assim um pouco de folha, assim, desenho de folha, assim, um pouco vermelho por
baixo, só isso. Passou isso aí, morria rapidinho pessoa. Desse aí que nós via.
Os tratores que abriam a
estrada eram vistos pelos índios como tanques de guerra. “Muitas vezes os
tratores amanheciam amarrados com cipós. Essa era uma maneira clara de dizer
que não queriam que as obras continuassem. Como essa resistência ficou muito
forte, o Departamento Estadual de Estradas de Rodagem do Amazonas-DER-AM,
inicialmente responsável pela construção, começou a usar armas de fogo contra
os indígenas”.
Sacopã e Parasar
O relatório informa que
“as festas que reuniam periodicamente os Waimiri-Atroari foram
aproveitadas pelo Parasar para o aniquilamento dos índios”. Conta detalhes.
Registra ainda o desaparecimento de índios que se aproximaram, em agosto de
1985, do canteiro de obras da hidrelétrica do Pitinga, então em
construção:
“É muito provável que
tenham sido mortos pela Sacopã, uma empresa de jagunços, comandada por dois
ex-oficiais do Exército e um da ativa, subordinado ao Comando Militar da
Amazônia, empresa muito bem equipada, que oferecia na época serviços de
“limpeza” na floresta à Paranapanema no entorno de seus projetos minerais. Os
responsáveis pela empresa foram autorizados pelo Comando Militar da Amazônia a
manter ao seu serviço 400 homens equipados com cartucheiras 20 milímetros,
rifle 38, revolveres de variado calibre e cães amestrados”.
Os autores do relatório
dão nomes aos bois, esclarecendo que quem comandava a Sacopã no trabalho de
segurança da Mineração Taboca/Paranapanema e no controle de todo
acesso à terra indígena eram dois militares da reserva: o tenente Tadeu Abraão Fernandes e o coronel
reformado Antônio Fernandes, além de
um coronel da ativa, João Batista de
Toledo Camargo, então chefe de polícia do Comando Militar da Amazônia.
É Rondon de
cabeça pra baixo: "Matar ainda que não seja preciso; morrer nunca",
num processo iniciado com o colonizador e ainda não concluído. Na Amazônia, o
cônego Manoel Teixeira, irmão do governador Pedro Teixeira, em
carta ao rei de Portugal, em 5 de janeiro de 1654, escrita no leito da morte,
declara que “no espaço de trinta e dois anos, são extintos a trabalho e a
ferro, segundo a conta dos que ouviram, mais de dois milhões de índios de mais de quatrocentas aldeias”.
O relatório é um bom
começo, porque evidencia que os índios precisam de uma Comissão da Verdade
não apenas para os 21 anos de ditadura militar, mas
para os 514 anos de História em que crimes foram e continuam sendo cometidos
contra eles. Assim, podem surgir praças de maio dentro das malocas, cobrando
mudanças radicais na política indigenista do país.
Fonte: IHU - Notícias