Considero muito interessante e educativa a
entrevista publicada em El País, em que Carla Jiménez conversa com Flávio de
Campos – um sociólogo e especialista em futebol.
Neste momento tão especial e marcante para a
sociedade brasileira por causa do ‘inesperado’ desfecho da Copa do Mundo Fifa -
Brasil 2014, bem negativo para os brasileiros, uma análise como esta é
mais que oportuna.
Por achar que quando encontramos coisas boas é bom compartilhá-las com os outros, trago esta matéria também para o blog Indagações-Zapytania.
Vale a pena fazer uma leitura atenciosa e tirar,
cada um para si, as suas conclusões.
WCejnog
El País
São Paulo,
10 jul 2014.
“A humilhante derrota abre a caixa preta da sociedade
brasileira”
Flávio de Campos, sociólogo estudioso de futebol
(foto: Bosco Martím)
Para o
especialista em futebol, os 7X1 tem um papel didático, pois o Brasil começa a
repensar a cruel necessidade de tratar a seleção brasileira como compensação
para as suas frustrações.
Flávio de Campos era um
dos 200 milhões de brasileiros que dormiram mal nesta quarta (9/07/2014),
tentando digerir a amarga derrota da seleção de Felipão para a Alemanha.
Mas sua tristeza ia além do 7x1. A
crueldade coletiva que se iniciou antes mesmo do final da partida no Mineirão
foi um dos motivos da sua insônia. A crucificação dos jogadores que, segundo
ele, são na verdade “uma bando de meninos”, quebra-quebra em algumas cidades
e xingamentos à presidenta Dilma,
enquanto o Brasil tomava a goleada, eram os sintomas do país órfão de outras
alegrias que não o futebol. “A expectativa é que a seleção represente a nossa
força, a virtude e a criatividade do país”, diz Campos, que coordena o Núcleo
Interdisciplinar de Estudos sobre o Futebol (Ludens). “É perverso e cruel jogar
a responsabilidade do nosso fracasso nas costas dos meninos”.
A
Entrevista
Pergunta. Como você está digerindo a derrota assustadora
contra a Alemanha?
Resposta. Tenho
duas tristezas, dois sentimentos. Uma com o próprio resultado da partida. É
evidente que a Alemanha era favorita, pelo jogo mais consistente e organizado.
Eu achava que o Brasil ia perder. Mas sempre tem o imponderável no futebol,
pois nem sempre o melhor vence. Sempre tem a trave, a zebra, o fio de
esperança. Enfim, mas o que houve foi um massacre, um apagão que já vimos no Palmeiras, outro time dirigido pelo Felipão. Estamos com a
sensação do nocaute. No box, o lutador vai à lona, e a luta termina. Aqui, não
víamos a hora do jogo terminar.
P. E a outra tristeza?
R. Além de
perceber a falta de competitividade com os alemães, foi o significado que o
futebol tem como elemento de cultura brasileira. A humilhante derrota abre a
caixa preta da sociedade. Vivemos no Brasil uma crise de representatividade, um
momento em que nosso olhar coletivo é muito frustrante. A percepção é que o
sistema político representativo não funciona. Alguns acham que tem de jogar
tudo fora. Não é à toa que no primeiro ou no segundo tempo, quando [a torcida]
xinga o Fred no campo, volta a xingar a Dilma [assim como na abertura da Copa,
no dia 12 de junho]. E essa seleção, de meninos, é de uma crueldade. Nossa
expectativa é que represente a força e as virtudes, a valentia, a habilidade, a
criatividade, a beleza que nós não temos em outros espaços sociais. É uma espécie
de compensação. E nós jogamos para a seleção uma espécie de expectativa de
remédio, de solução para coisas que não estamos conseguindo resolver
cotidianamente. Aí temos um elemento chave. É cruel. Os nossos jogadores têm a
idade dos meus filhos, Neymar tem 22. É perverso e covarde jogar a
responsabilidade do fracasso nas costas desses meninos, para que eles compensem
o que não entendemos na nossa sociedade.
P. É muita pressão para tão pouca idade, ainda mais
jogando em Copa, ou seja, com a obrigação de ganhar?
R. O Gilberto
Maringoni (candidato
a governador de São Paulo pelo PSOL) tem uma definição para os black
blocsinteressante, ao dizer que eles são meninos que
tentam ser super heróis com suas máscaras e suas armas de destruição. É um
sentimento infantil dessa geração. O discurso de David Luiz, de chorar dizendo
que queria dar essa alegria para o Brasil, é quase uma missão nessa linha
descrita por Marangoni para os black blocs. Querer salvar o país, armar um
time, esse voluntarismo excessivo, quase messiânico, que ele encarnou. É muito
ruim. Seja para o futebol, seja para a sociedade. A gente não precisa de
Messias, desse voluntarismo desenfreado. Esse é o grande equívoco. Precisamos
de atitudes coletivas. Menos covardia e menos hipocrisia. A nossa atitude como
cidadãos nos representa.
P. Essa
tentativa de encontrar heróis é buscar constantemente reconstruir um mito como Pelé?
R. Veja
como como foi construída a história do Pelé e desses meninos. A Copa de 1958. O
melhor jogador naquele ano não foi Pelé e nem Garrincha. Mas a história
posterior vai construir essa ideia. A imprensa que acompanhou 58 elegeu Didi
como o melhor jogador da época. Na maior parte das partidas, ele não é um
fenômeno. Ele é um excelente jogador, que tem um excelente desempenho. Quando a
Suécia faz o primeiro gol, e o Brasil sai perdendo, o Didi é o cara que vai até
o fundo da rede, vem andando calmamente e diz – vamos jogar. Ele é o líder, o
que organiza. É o Didi junto com o Gilmar e colocam o Pelé no ombro, depois da
partida. O que quero dizer é que o Pelé, sim, foi um dos maiores jogadores de
todos os tempos. O Garrincha idem. Mas essas seleções brasileiras sempre
tiveram outros atletas extremamente importantes. Nós precisamos de reis, de
salvadores da pátria, de fenômenos, de príncipes. O Pelé foi rei do futebol.
Rivelino, do parque, da seleção em 75. Ronaldo, o fenômeno. E estamos em vias
de construir no Neymar, algo semelhante.
P. Por que esse apoio no futebol como esteio do país?
R. Acredita-se
que basta força de vontade no campo de futebol ou no campo da sociedade, de que
temos soluções mágicas. Isso é grave, porque a gente tem de aprender com isso.
Aprender com o que aconteceu. Não é fazer caça às bruxas. Não é abrir
inquisição. Não é procurar exterminar ninguém, como leio nas redes sociais. O
ódio e ferocidade, seja em relação à seleção ou a algumas figuras públicas.
Esse ódio e crueldade é pernicioso a qualquer reflexão mais sensata. Se há algo
a fazer, é não demonizar pessoas ou procurar jogar responsabilidades em um ou
outro para aliviar.
P. Em 1950, houve o Maracanazo que condenou o
goleiro Barbosa. Mas somos diferentes daquela época, uma vez que
existem até profissionais como você para estudar o futebol e a sociedade. O que
muda?
R. Nós somos diferentes. O Brasil é diferente dos anos
50. Você vai encontrar um monte de gente debatendo sobre isso, e não só
especialistas de futebol. Não só estudiosos. No mesmo dia do jogo, já
aconteceram brigas e depredações em função do resultado da Copa. É tudo muito
complexo. A quantidade de informações de rádio e internet e jornais, isso até
gera uma avalanche de informações e precisa circular. Somos também muito
diferentes de década de 50, quando o futebol era outra coisa. O que se joga no
passado é muito diferente de hoje. O futebol-arte parecia que era um patrimônio
exclusivo do Brasil. Mas em 1954, a Hungria tinha um futebol extraordinário.
Houve Di
Stefano, com a Argentina. Com esse mercado de circulação de atletas, e a
possibilidade de assistir a partidas de outros países a uma difusão de saberes
de apropriações de manejos táticos do futebol, de modo que ninguém pode se
surpreender, pois tudo é muito conhecido. Ontem[terça], quando a Alemanha joga
com um futebol bonito, de drible, e nós com chutões de ligação direta de defesa
para o ataque. O David Luiz, nosso maior armador? Como assim? Enquanto a
Alemanha joga toque de bola, se infiltra e faz muitos gols. Aí a nossa analise
é que nós estamos jogando futebol europeu, e eles, o brasileiro. Não, isso não
é patrimônio do Brasil.
P. Mas na década de 50 o Brasil era um país que tinha
apenas 60 anos de República e de abolição da escravatura, um país muito
diferente. Será que não seremos menos cruéis para julgar os atuais “Barbosas”?
R. Essa
comparação é muito complicada. São duas sociedades diferentes, a de 50 e a de
hoje. A história do Barbosa, aliás, é polêmica entre os estudiosos, pois na
época da Copa ele não teria sido crucificado. Construiu-se a perseguição anos
depois. Naquele tempo a sociedade cai em cima da organização da Copa, e no
trânsito livre dos políticos que ocupam os estádios. Hoje isso não acontece. Em
compensação, hoje há uma presença excessiva da mídia, em especial da Rede
Globo, e um papel forte dos patrocinadores, a começar com os comerciais do
Felipão, para o marketing de produtos. Há uma exposição excessiva dos
jogadores, que se tornam heróis num dia, e no dia seguinte se tornam vilões.
Difícil essa comparação.
P. O
resultado da Copa vai influenciar a eleição?
R. Já interferiu, desde junho de 2013. Já desidratou o
apoio à Dilma. Ela perdeu mais de 30% de apoio num ano. Ela veio articulando as
demandas sociais. O mais visível não é a Petrobras, por
exemplo. O mais visível é a Copa. E é em cima disso que vai ser desferida a
campanha. Mas veja, a previsão catastrófica não se realizou. Nenhum estádio
desmoronou. Caiu o viaduto da oposição [em Belo Horizonte]. Mas parece que é da conta da
Dilma. O prefeito é do PSB e o governo de Minas Gerais é do PSDB. Aqui está o
ponto. A percepção que fica para a sociedade brasileira. O mal intencionado vai
creditar o viaduto na conta da Dilma.
P. Ela perderá apoio com o 7x1?
R. Eu sou capaz de apostar que a Dilma cai. Essa
depressão precisa ser descarregada, e isso será explorado. Seja direta ou
indiretamente. Aí aqueles discursos mais malucos que a Copa já estava comprada.
Agora, se o resultado da partida contra a Alemanha fosse digerível, ficaria com
a derrota. Mas tomar de sete mexe com as entranhas da gente. E o hábito nosso é
procurar jogar isso para cima de alguém. A primeira vítima foi o Felipão. E a
próxima é a Dilma.
P. Mesmo com tudo contra, até os mais revoltados com a
Copa apoiaram o evento, se fantasiaram. Ninguém resistiu?
R. Quem estava nos estádios desta Copa era uma classe
media imbecil, ágrafa, rasteira, reacionária e que não sabia torcer. Tanto que
teve que ensaiar musiquinha [para apoiar a seleção]. Essa classe média branca,
incomodadíssima em compartilhar espaços em aeroportos, foi claramente
contagiada pela festa. Se fantasiou e se deixou levar pela ilusão. Isso não é
ruim. Quantas pessoas não aprenderam o que é futebol, a alfabetização sobre o
jogo. E gostaria que esse público aprendesse a assumir sua responsabilidade
social, para um sociedade sem ódio, sem privilégio. Esse comportamento precisa
ser corrigido. E então, agora, começa a eleição. É outra partida. Que não é
contra a Alemanha, mas que vamos jogar contra nós mesmo, essa é a partida mais
importante.
Fonte: IHU - Notícias
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