Acho excelente e muito oportuno para o momento
atual, que é o começo de Quaresma no calendário litúrgico, o artigo Carnaval & cinzas, de autoria do Frei
Betto, que foi publicado recentemente (07/02/2016) no jornal O Globo (Coluna Frei
Betto).
Vale a pena ler!
WCejnóg
O Globo
Coluna Frei Betto
religião
07/02/2016.
Carnaval & Cinzas
Proclamar que a
vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte, implica também empenhar-se
para que a nossa juventude não se transforme numa geração perdida.
Carnaval significa "festa da carne" e
era, em seus primórdios, uma festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante
da perspectiva de passar quarenta dias em abstinência de carne, os cristãos
fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a "terça-feira
gorda". Na quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do pó viemos, para
o pó retornaremos, e ingressavam no período em que a Igreja celebra a paixão,
morte e ressurreição de Jesus Cristo.
‘’
A modernidade secularizou a cultura e, de certo
modo, esvaziou o significado das festas religiosas.
Com certeza ganhou a autonomia da razão e perdeu a
consistência da subjetividade. Trocou-se São Nicolau, que no século V
distribuiu sua herança aos pobres, pela figura consumista de Papai Noel;
transformou-se o carnaval em festa da carne em outro sentido; e fez-se da
Semana Santa um período extra de férias.
Essa reificação dos ritos de passagem torna-se mais
evidente nesse momento em que a humanidade enfrenta a crise de paradigmas.
Destituído o marxismo da condição de ciência da História, e constatado o
fracasso crônico do liberalismo nos países da América Latina e da África,
ocorre uma emergência espiritual em todo o mundo.
Parafraseando Rimbaud, há uma grande "gula de
Deus", que favorece o encontro, afinal, da mística oriental com a doutrina
cristã ocidental, introduz a new age e a meditação, mas também
abre campo aos mercenários da salvação que pregam de olho na cobiça,
convencidos de que "no princípio era a verba..."
A Quarta-Feira de Cinzas instiga-nos a refletir
sobre esta experiência inelutável: a morte. O processo reificador da
modernidade tende a tornar descartáveis também os ritos de passagem que se
sobrepõem às esferas religiosas, como nascimento, casamento e morte.
Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do
poeta, havia choro, vela e fita amarela. Criança em Minas, acorri a enterros
que eram uma festa, com toda a força paradoxal da expressão. Havia velório e
carpideiras, cachaças e empadas, coroas de flores e procissão fúnebre, missa de
corpo presente e encomendação no cemitério.
Hoje, morre-se quase clandestinamente, e o enterro
se faz antes que os amigos possam ser avisados, como se resistíssemos à ideia
de que esta vida escapa ao nosso absoluto controle.
A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido
da vida. Só assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, que
transcende a existência individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da
vida.
Porém, já não se enfatiza o tema do sentido da
vida. Na escola, aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a ciência, a
técnica e o patrimônio cultural de que somos herdeiros, mas não há nenhuma
disciplina que prepare os alunos para as crises quase inevitáveis da
existência: o fracasso profissional, a ruptura afetiva, a doença, a falência, a
morte. Socializada a ambição, toda as vezes que o desejo esbarra na frustração
ele privatiza o consolo: o alcoolismo, as drogas, o essentimento, o lobo que
nos devora o coração.
A fé cristã não faz o panegírico da morte, mas
proclama o seu fracasso ao centrar seu eixo na “ressurreição da carne”. Isso
significa a recusa de todas as situações de morte, do pecado individual às
estruturas sociais incapazes de assegurar a todos um futuro melhor.
Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive
sobre a morte, implica também empenhar-se para que a nossa juventude não se
transforme numa geração perdida.
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* Frei Betto é escritor, autor do romance policial
“Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
Fonte: O Globo
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