Hoje trago para o blog Indagações-Zapytania mais um artigo sobre a questão indígena no Brasil. É de autoria do Jacques Távola Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos. Faço isso na esperança de poder contribuir pelo menos um pouco na sua divulgação.
Acho que é muito importante a sociedade brasileira tomar conhecimento da situação dos Povos Indígenas que ainda restam no Brasil e das reais ameaças que eles sempre sofreram e sofrem ainda hoje. É importante ressaltar aqui, que atualmente esses ataques e ameaças contra os indígenas brasileiros estão aumentando mais ainda, devido às mudanças promovidas pelo atual governo e congresso brasileiro.
O texto foi publicado no site do Instituto Humanitas Unissinos (IHU).
Não deixe de ler!
WCejnóg
20 abril 2017.
19 de abril: o que resta da civilização indígena
"Se o povo indígena não for
extinto sob toda essa adversidade, como aconteceu com os seus ascendentes, não
vai faltar argumento à bancada ruralista e ao atual ministro
da justiça (da justiça é bom que se frise...) sustentando ser essa mesmo a
condição de vida reservada “normalmente” para as/os índios", escreve Jacques Távola Alfonsin, procurador
aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e
Direitos Humanos.
Eis o artigo
Dia 19 de abril é uma data lembrada no Brasil,
como “dia do índio”, desde 1943, quando, durante a ditadura Vargas,
um decreto presidencial acatou uma recomendação feita pelo Primeiro Congresso Indigenista
Interamericano, reunido no México em 1940,
objetivando outorgar aos governos americanos normas necessárias à orientação de
suas políticas indigenistas.
Em tempos como os de hoje, nem se consegue imaginar
qual o sentido ainda remanescente para celebrar-se a data. O que resta do povo
indígena brasileiro está para sofrer mais uma das graves agressões
brancas que lhe foram infligidas desde a chegada da colonização espanhola
e portuguesa na América.
A proposta de emenda constitucional 215, sob forte
apoio da bancada ruralista no Congresso Nacional, pretendendo retirar da
administração pública do Poder Executivo a competência para demarcar as terras
indígenas e até ratificar ou não as demarcações já homologadas,
ficando o Legislativo com tal poder, está recebendo pressão crescente, ainda
mais agora que o deputado Osmar Serraglio, ex-relator dessa matéria na Câmara
dos Deputados, é ministro da justiça.
Em estudo que o Instituto Apoio Jurídico Popular publicou em 1989 (“Negros e índios no cativeiro da terra”, Rio de Janeiro: Fase), abriu-se a oportunidade para juristas e advogadas/os publicar alguns estudos sobre essas duas verdadeiras “civilizações”, composta por negras/os (quilombos) e índias/os (aldeias), com atenção mais detalhada sobre a sua concepção de direito em relação à “mãe terra”.
O descaso do Estado, o peso dos preconceitos, as
perseguições, criminalizações a que ficaram sujeitas, a ponto de mal
sobreviverem hoje no que já foi o seu território, descritas naqueles estudos,
se forem comparadas com o que estão sofrendo hoje, aumentaram em vez de
diminuir.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, um dos mais credenciados juristas, conhecedor do povo e do direito
indígena, publicou a sua participação nessa coletânea sob o título “Índios e
direito: o jogo duro do Estado”. Tratou de ver o direito sob método
inculturado, aquele que busca entender qualquer aplicação de lei, não à luz do
poder de quem a promulga, no caso brasileiro, sabidamente, a civilização
branca, mas sim de quem dela é destinatário; no caso do povo indígena,
como ele sofre os efeitos dessa lei:
“Assim, a forma como cada nação indígena vê
o direito do Estado Brasileiro difere e deve ser objeto de análise separada.
Cada uma delas tem a sua própria concepção, experiência e nível de análise.
Porém, há uma coisa que é comum a todas: enquanto o direito de cada uma das
nações indígenas é o resultado de uma cultura aceita e professada por todos os
habitantes igualmente, inclusive na aceitação das diferenças, o Direito Estatal
Brasileiro é fruto de uma sociedade profundamente dividida, onde a dominação de
uns pelos outros é o primado principal e o individualismo, o marcante traço
característico. Desta forma, a distância entre o coletivismo e o individualismo
é que diferencia o Direito indígena do Direito Estatal.”
O autor mostra, não sem certo humor, como isso é
bem percebido pelo povo indígena, pela voz de um dos seus integrantes, o índio Paiarê-Parpakategê,
do sul do Pará, em 1985, “por ocasião das discussões sobre a
passagem da linha de ferro Carajás, em território do seu povo, numa
afirmação corajosa e simbólica:
“A lei é uma invenção. Se a lei não protege o
direito dos índios (sobre suas terras), o branco que invente outra lei.”
O trágico dessa história é que, mesmo com lei que
proteja o direito do povo indígena, inclusive em capítulo expresso na
Constituição Federal (artigos 231/232), além de ser reduzida a praticamente
letra morta, cada vez que esse direito, especialmente sobre terra, é posto em
causa, o branco está procurando “inventar” outra, não para beneficiar, mas sim
para sacrificar mais ainda esse mesmo povo, na forma como a PEC 215 quer impor.
É possível se repetir aqui no Brasil,
então, em pleno século XXI, o que aconteceu quatro séculos atrás, quando o massacre
das/os índias/os brasileiras/os eram o resultado das disputas de Portugal e Espanha sobre
o nosso território, somente unidos quando o “inimigo” assim considerado por
ambos, era justamente o povo indígena, como aconteceu com a dizimação
dos sete povos das missões, no sul do país, Sepé Tiaraju servindo de heróica lembrança.
Vai restar, para essa outra forma de civilização
humana, - se não houver poder suficiente para barrar a maré montante atualmente
em movimento contra ela - apenas o mesmo destino que sobrou para as/os
remanescentes de Sepé:
“Durante o século XVII e mais da metade do XVIII,
prevaleceu na região platina a propriedade coletiva dos municípios guaranis. Nos fins do século XVIII implantou-se ali a propriedade latifundiária
dos estancieiros brancos. O índio se viu relegado à condição
humilde de peão de estância ou proletário da terra.” (“O direito de propriedade
entre os índios missioneiros”, Ruschel, Ruy Ruben, in “Direito e justiça na
América Latina, Wolmer, Antonio Carlos, Porto Alegre: Livraria do advogado,
1998, p. 108)
Se o povo indígena não for extinto
sob toda essa adversidade, como aconteceu com os seus ascendentes, não vai
faltar argumento à bancada ruralista e ao atual ministro da justiça (da
justiça é bom que se frise...) sustentando ser essa mesmo a condição de vida
reservada “normalmente” para as/os índios. Que as ONGs de defesa desse povo e
as do meio-ambiente, portanto, os movimentos populares de defesa dos direitos
humanos, a Comissão Pastoral da terra e o Conselho Indigenista
Missionário, entre outras organizações, estejam atentas/os e, mesmo na
enorme desproporção dos seus poderes em relação à bancada ruralista e ao
ministro da Justiça, não desperdicem nenhuma oportunidade de opor-se aos seus
intentos, apoiando todo o empenho indispensável para barrar qualquer
possibilidade de a tal PEC 215 cumprir os seus desumanos efeitos.
Fonte: IHU - Adital
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