O artigo de Leonardo Boff “Uma cultura cujo centro é o coração”, sobre
a cultura maia na América Central, especialmente na Guatemala, é bem interessante,
pois apresenta alguns aspectos dessa cultura pouco conhecidos entre nós, ou talvez esquecidos e/ou não valorizados.
Acho que a leitura de um texto como este convida-nos
à reflexão mais concreta, porém bastante
serena, sobre alguns valores e ideias dos
povos da civilização maia e, com isso, ajuda-nos a enriquecer a nossa própra
visão e opinião sobre este tema. Para compartilhar com os outros, trago esse
artigo também para o blog Indagações-Zapytania.
O artigo foi publicado pelo autor no seu blog leonardoBOFF.com, no mês de fevereiro de
2016.
Vale a pena ler e refletir.
WCejnóg
Blog leonardoBOFF
Uma cultura cujo centro é
o coração
19/02/2016
A
nossa cultura, a partir do assim chamado século das luzes (1715-1789) aplicou
de forma rigorosa a compreensão de René Descartes (1596-1650) de que o ser
humano é “senhor e mestre” da natureza podendo dispor dela ao seu bel-prazer.
Conferiu um valor absoluto à razão e ao espírito científico. O que não
conseguir passar pelo crivo da razão, perde legitimidade. Daí se derivou uma
severa crítica a todas as tradições, especialmente à fé cristã tradicional.
Com
isso se fecharam muitas janelas do espírito que permitem também um conhecimento
sem necessariamente passar pelos cânones racionais. Já Pascal notara esse
reducionismo falando nos seus Pensées da logique du
coeur ( “o coração tem razões que a razão desconhece”) e do esprit
de finesse que se
distingue do esprit de géométrie, vale dizer, da razão calculatória e
instrumental analítica.
O
que mais foi marginalizado e até difamado foi o coração, órgão da sensibilidade
e do universo das emoções, sob o pretexto de que ele atrapalharia “as ideias
claras e distintas” (Descartes) do olhar científico. Assim surgiu um saber sem
coração, mas funcional ao projeto da modernidade que era e continua sendo o de
fazer do saber um poder e um poder como forma de dominação da natureza, dos
povos e das culturas. Essa foi a metafísica (a compreensão da realidade)
subjacente a todo o colonialismo, ao escravagismo e eventualmente à destruição
dos diferentes, como das ricas culturas dos povos originários da América Latina
(lembremos Bartolomé de las Casas com sua História da destruição das
Índias) e também do capitalismo selvagem e predador.
Curiosamente
a epistemologia moderna que incorpora a mecânica quântica, a nova antropologia,
a filosofia fenomenológica e a psicologia analítica tem mostrado que todo
conhecimento vem impregnado das emoções do sujeito e que sujeito e objeto estão
indissoluvelmente vinculados, às vezes por interesses escusos (J. Habermas).
Foi
a partir de tais constatações e com a experiência desapiedada das guerras
modernas que se pensou no resgate do coração. Finalmente é nele que reside o
amor, a simpatia, a compaixão, o sentido de respeito, base da dignidade humana
e dos direitos inalienáveis. Michel Maffesoli na França, David Goleman nos USA,
Adela Cortina na Espanha, Muniz Sodré no Brasil e tantos outros pelo mundo
afora se empenharam no resgate da inteligência emocional ou da razão sensível
ou cordial. Pessoalmente estimo que, face à crise generalizada de nosso estilo
de vida e de nossa relação para com a Terra, sem a razão cordial não nos
moveremos para salvaguardar a vitalidade da Mãe Terra e garantir o futuro de
nossa civilização.
Isso
que nos parece novo e uma conquista – os direitos do coração – era o eixo da
grandiosa cultura maya na América Central, particularmente na Guatemala. Como
não passaram pela circuncisão da razão moderna, guardam fielmente suas
tradições que vêm pelas avós e pelos avôs, ao largo das gerações. O escrito
maior o Popol Vuh e os livros de Chilam Balam de Chumayel testemunham essa
sabedoria.
Participei
mais vezes de celebrações mayas com os seus sacerdotes e sacerdotisas. É sempre
ao redor do fogo. Começam invocando o coração dos ventos, das montanhas, das
águas, das árvores e dos ancestrais. Fazem suas invocações no meio de um
incenso nativo perfumado e produtor de muita fumaça.
Ouvindo-os
falar das energias da natureza e do universo, parecia-me que sua cosmovisão era
muito afim, guardadas as diferenças de linguagem, da física quântica. Tudo para
eles é energia e movimento entre a formação e a desintegração (nós diríamos a
dialética do caos-cosmos) que conferem dinamismo ao universo. Eram exímios
matemáticos e haviam inventado o número zero. Seus cálculos do
curso das estrelas se aproximam em muito ao que nós com os modernos telescópios
alcançamos.
Belamente
dizem que tudo o que existe nasceu do encontro amoroso de dois corações, do
coração do Céu e do coração da Terra. Esta, a Terra, é Pacha Mama, um ser vivo
que sente, intui, vibra e inspira os seres humanos. Estes são os “filhos
ilustres, os indagadores e buscadores da existência”, afirmações que nos
lembram Martin Heidegger.
A
essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável,
compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é
cultivar a dimensão do coração. Os Irmãos de La Salle mantém na capital Guatemala
um imenso colégio –Prodessa – onde jovens mayas vivem na forma de internato,
onde se recupera, bilíngue, e sistematiza a cosmovisão maya, ao mesmo tempo em
que assimilam e combinam saberes ancestrais com os modernos especialmente ligados à agricultura e a relações respeitosas
para com a natureza.
Apraz-me
concluir com um texto que uma mulher sábia maya me repassou no final de um
encontro só com indígenas mayas em meados de fevereiro.”Quando tens que
escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe
o caminho do coração jamais se equivocará” (Popol Vuh).
Leonardo
Boff escreveu O casamento do céu e da terra, Mar de Ideias, Rio 2014.
Fonte:
leonardoBOFF
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