O
texto que hoje trago para o blog Indagações-Zapytania é de autoria da
antropóloga Lílian Brandt. As infrmações e observações contidas nele são muito
úteis, esclarecedoras e oportunas. Penso que elas podem ajudar a desconstruir vários
falsos paradigmas que hoje existem na sociedade brasileira em relação à questão
indígena.
A
matéria foi publicada recentemente no PORTAL FORUM.
Espero
que a publicação desse texto neste espaço possa ser uma pequena contribuição na
defesa da causa indigena.
Não
deixe de ler!
WCejnog
As afirmações listadas abaixo foram extraídas da vida real.
Algumas nas ruas do interior do Brasil, outras nas cidades grandes, outras em
discursos de políticos. Percepções diversas, vindas de pessoas com histórias
diferentes, mas com um direcionamento em comum: a disseminação do discurso
anti-indígena com argumentos falsos.
Texto e fotos por Lilian Brandt*, do AXA
Mentira nº 1: Quase não existe mais índio, daqui alguns anos não
existirá
mais nenhum
Se as pessoas não sabem muito sobre os indígenas na atualidade, sabem
menos ainda sobre o passado destes povos. Mesmo os pesquisadores não encontram
um consenso, e os números variam muito conforme os critérios utilizados.
A antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo estima que, na época da
chegada dos europeus, a população indígena no Brasil era de 3 milhões de
pessoas. Eram mais de 1.000 povos diferentes, que durante séculos foram
exterminados pelos conquistadores, seja por suas armas de fogo, seja pelas
doenças que eles trouxeram. De acordo com antropóloga, em 1957 havia no Brasil
apenas 70 mil indígenas. O crescimento desta população é observado somente a partir
da década de 1980.
Em 1991, quando o IBGE passou a coletar dados sobre a população indígena
brasileira, eles somavam 294 mil pessoas. Em 2000, o Censo revelou um
crescimento da população indígena muito acima da expectativa, passando para 734
mil pessoas. Em 2010, a população indígena continuou crescendo, e o Censo
mostrou que mais de 817 mil brasileiros se autodeclararam indígenas,
representando 0,47% da população brasileira. Eles estão distribuídos em 305
etnias e falam 274 línguas.
Esse aumento populacional jamais seria possível se fossem considerados
apenas fatores demográficos, como a natalidade e a mortalidade. Esses dados
revelam o crescimento do número de pessoas que passaram a se reconhecer como
indígenas e o “ressurgimento” de grupos indígenas. Isto se dá porque, antes,
ser índio no Brasil significava ser atrasado, inferior, escravizado,
catequizado, ser alvo de discriminação, de chacinas e até mesmo não ser
considerado humano. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas
e de sua cultura. Agora os povos indígenas voltam a afirmar sua identidade,
talvez porque as circunstâncias estejam mais amigáveis. Ou talvez porque este
grito não suporte mais ser calado.
Tratá-los simplesmente como “índios” esconde a imensa diversidade
cultural e circunstâncias de vida tão distintas. Mas algo muito mais forte que
as diferenças étnicas propicia a união destes povos: o fato de se sentirem
diferentes de nós.
Temos no Brasil todos os tipos de extremos: índios que possuem seu
território assegurado e índios que morrem lutando por seu território; índios
brancos e índios negros; índios cristãos e índios pajés; índios isolados e
índios urbanos.
Os povos indígenas isolados são aqueles que não estabeleceram contato
permanente com a população nacional e com o Estado. As informações sobre eles
são transmitidas por outros índios, por moradores da região e por
pesquisadores. A Funai (Fundação Nacional do Índio) tem cerca de 107 registros
da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, dos quais 26 já foram
confirmados e estão sendo monitorados, seja por imagens de satélite, sobrevoos
ou expedições na região. Não se sabe, no entanto, a quantidade destes povos e
indivíduos que vivem voluntariamente isolados.
Muitos já tiveram alguma experiência de contato não amistosa com
garimpeiros, madeireiros, grileiros e traficantes próximos à fronteira. Também
é provável que tenham tido ou mantenham contato com populações ribeirinhas,
seringueiros e, principalmente, com algum outro povo indígena.
Os resultados do contato conosco são trágicos, a começar pelas doenças
que transmitimos, para as quais eles não têm imunidade: sarampo, rubéola,
caxumba, difteria, tétano, hepatite, gripe e outras. Conhecendo esta realidade,
estes povos que vivem em situação de isolamento escolheram fugir. Isso não
significa, no entanto, que eles não tenham notícias de nossa sociedade. Eles
observam rastros, utilizam ferramentas e se relacionam com outros indígenas que
contam as novidades do mundo do branco.
Em outros tempos, como muitos devem se lembrar, o órgão governamental
indigenista, na época chamado SPI (Serviço de Proteção aos Índios), deixava
presentes como espelhos, panelas e ferramentas para atrair os indígenas. Hoje a
Funai busca garantir que eles tenham seu território assegurado para transitarem
livremente. Mas as ameaças são muitas e cada vez mais seus territórios são
menores.
Os indígenas que vivem em áreas urbanas somam 324 mil, ou seja, 36% do
total da população indígena, um número que vem crescendo ano após ano (IBGE,
2010). Há dois motivos recorrentes para que esses índios vivam em áreas
urbanas. Um deles é a migração dos territórios tradicionais em busca de
melhores condições de vida na cidade. O outro é que os limites das cidades cada
vez mais alcançam as fronteiras de seus territórios.
As pessoas continuam acreditando que a população indígena está sendo
reduzida, mesmo que os números digam o contrário e que eles estejam mais
presentes nos centros urbanos. A desinformação tem uma consequência: fingimos
que os índios estão deixando de existir e gradualmente não pensamos mais na
situação deles. Assim fica mais fácil justificar nenhum respeito a seus
direitos e à sua própria vida.
Mentira nº 2: Os índios estão perdendo sua cultura
Esta afirmação resume uma série de outras ideias muito difundidas:
“índio que usa celular não é mais índio”, e suas variáveis televisão,
computador, calça jeans, tênis, rede de pesca, barco a motor, caminhonete,
trator e etc.
De modo geral, cultura é o conjunto de manifestações que inclui o
conhecimento, a arte, as crenças, a língua, a moral, os costumes, os
comportamentos e todos os hábitos e aptidões adquiridos por pessoas que fazem
parte de uma sociedade específica.
Sendo composta por diversos elementos, a cultura está em constante
transformação, se inter-relacionando de diferentes formas com o ambiente, as
circunstâncias, outras culturas e consigo mesma. Logo, a cultura não é algo que
se perde, é algo que se transforma constantemente.
É certo, no entanto, que não temos uma relação de troca cultural justa
com os indígenas. Nossa sociedade se caracteriza por termos uma cultura
dominadora e impositiva. O impacto do nosso modo de vida reflete diretamente na
vida dos indígenas, de forma que hoje já não há a mesma fartura e
biodiversidade que se tinha em 1500. O rio está contaminado por agrotóxicos, a
floresta foi derrubada e a quantidade de peixe e de caça foi drasticamente
reduzida.
Neste sentido, a incorporação de elementos de outra cultura é também uma
estratégia de resistência. O uso de equipamentos de pesca dos “brancos”, por
exemplo, pode ser um modo de resistência cultural, num entendimento de que
pescar é mais importante para a identidade indígena do que se manter preso a
técnicas tradicionais e não chegar com o peixe em casa.
Uma das maneiras de se fortalecer a tradição é inovar a partir de uma
forte referência tradicional. Um grupo de jovens Guarani Kaiowá nos dá um bom
exemplo de resistência cultural. O grupo de rap Brô MC’s é formado por duas duplas
de irmãos, e daí o nome “brô”, do inglês “brother”. Suas rimas misturam
português e guarani e denunciam o desmatamento ilegal, o esquecimento e a
perseguição que seu povo sofre por pressão do agronegócio. (Curta o som aqui)
Outras vezes, objetos não-indígenas podem ser inseridos na cultura
indígena com um significado e uso completamente diferentes do nosso, como
garrafas plásticas cuidadosamente cortadas e limadas para fazerem colares, à
semelhança do que fazem há centenas de anos com as lascas de caramujos. E
outras vezes, por fim, eles podem incorporar determinado elemento de outra
cultura e nem por isso serem “menos índios”, assim como comer sushi não nos
torna japoneses, tomar chimarrão não nos torna gaúchos e tomar banhos diários
não nos torna índios.
Nos assusta a velocidade com que alguns indígenas incorporam elementos
da nossa cultura no seu modo de vida. Mas sabemos que as trocas entre povos sempre
existiram. Se nos chama a atenção ver um indígena ao celular, é porque não
sabemos que o adorno que ele utiliza em rituais de sua tradição há séculos
podem ter sido confeccionados por um outro povo e utilizados como moeda de
troca. E por que não?
Com que velocidade os Karajá incorporaram elementos da cultura Tapirapé,
e vice-versa? Com que velocidade os brasileiros incorporam elementos da cultura
norte-americana? Não existe meios de medir precisamente as causas e os efeitos
destas trocas culturais.
Nossa sociedade não aceita que este sujeito tão diferente de nós possa
utilizar as mesmas tecnologias e bens de consumo que utilizamos. Assim, ao
mesmo tempo que vemos os indígenas como inferiores por não terem desenvolvido
as tecnologias que nos saltam aos olhos, não aceitamos que ele desfrute das
facilidades da vida contemporânea. Como se tudo o que temos hoje fosse
resultado apenas do trabalho de homens brancos e para usufruto exclusivo de
homens brancos. Como se o progresso tecnológico e econômico não tivesse sido
impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que pertenciam a
esses índios.
Mas para que índio quer tecnologia? Tenho visto indígenas vendendo
artesanatos através do Facebook, trocando e-mails com lojas que revendem suas
produções, promovendo abaixo-assinados para terem seus direitos respeitados, se
comunicando com parentes que ficaram na aldeia enquanto ele saiu para estudar
na cidade e namorando, como a gente.
O uso da fotografia e, especialmente, a produção de vídeos, tem se destacado
entre os povos indígenas com a função de registrar a realidade, de encenar
mitos e histórias, de criar estórias e de mostrar para outros povos (indígenas
ou não) um pouco de sua cultura. As produções audiovisuais também têm sido
usadas como uma ferramenta de denúncia ao ataque de seus direitos.
Outro equipamento que tem sido bastante útil é o GPS, que pode ser uma
ferramenta de vigilância e atuação conjunta com os órgãos responsáveis pelo
combate do garimpo, de madeireiras e de outras atividades ilícitas.
Mentira nº 3: Estão inventando índios, agora todo mundo pode ser
índio
Se a pessoa se reconhece como indígena e se identifica com um grupo de
pessoas que também se reconhecem como indígenas e a consideram indígena, então
ela é. Não existe nenhum reconhecimento da Funai, nenhum julgamento de um
não-indígena e nenhum critério imposto por nossa sociedade que possa ser maior
do que o seu sentimento e o sentimento da coletividade a qual ela pertença.
Ela pode se considerar indígena por uma questão genética e/ou cultural,
mas não cabe a nós e nem ao governo atribuir identidade a outra pessoa. A
autodeclaração é defendida também pela Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e
Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil
em 2000.
Por isso, não tem fundamento a ideia de que “sendo assim, todos os
brasileiros seriam indígenas, já que correm em nossas veias sangue indígena,
daquela bisavó que foi pega no laço”. Este discurso não viria de um indígena.
Se o cidadão diz isso querendo reduzir o direito de ser índio na atualidade, é
evidente que está se identificando muito mais com o bisavô estuprador do que
com a bisavó violentada.
Repare que a televisão, por exemplo, se esforça em caricaturar os
indígenas. Quando a TV mostra aquele “indiozão” bonito da Amazônia, forte,
guerreiro, caçador, todo enfeitado de penas e muito bem pintado, o povo acha
bonito de ver e até acha que não existe mesmo racismo contra indígena. Mas quando
a TV diz que aquele é um índio, discretamente nega outras possibilidades de
índios.
Nega que existam índios sem penas e sem pinturas, com jeans e celular.
Nega aqueles que não têm mais arara em seu território e por isso não usam
cocar. Nega aqueles que têm cabelo crespo porque os negros escravizados fugiram
para sua aldeia e foram bem recebidos como parceiros de resistência. Nega
aqueles que vivem nas cidades porque seus territórios foram invadidos, aqueles
que vão para Brasília protestar, etc.
Os índios são como são. Se nossa sociedade tem dúvida se um indivíduo é
índio, esta dúvida não encontra recíproca por parte dele. Quem é índio sabe que
é, porque tem a vivência do seu povo e sente na pele o racismo.
Nossa sociedade acredita que existe uma escala de quem é mais ou menos
índio: “vive em maloca? Tem cabelo liso? Sabe pescar? Usa celular? É rico?”.
Mas não é assim que funciona, não existe uma tabelinha para a gente definir
quem é e quem não é, quem é mais e quem é menos. Essa crença evidencia o desejo
oculto de querer que tenham menos índios, pois alguns já estão “aculturados” e
“integrados”.
A Convenção nº 169 da OIT garante a autodeterminação dos povos e o
direito de que cada população indígena ou tribal possa escolher seus próprios
caminhos para o futuro. Esse princípio consta ainda na Declaração das Nações
Unidas sobre os direitos dos povos indígenas.
O entendimento de que os indígenas seriam assimilados até deixarem de
existir já foi superado na legislação, mas ainda precisa ser superado na
sociedade.
Mentira nº 4: O Brasil é um país
miscigenado, aqui não tem racismo
Racismo, assim como machismo, é algo sutil. Às vezes ele aparece
escancarado, quando um sujeito chama um negro de “macaco”, quando uma mulher é
estuprada, quando se constata um salário menor para mulheres e negros do que
para homens brancos para fazerem exatamente o mesmo trabalho. Esse racismo
escancarado é muitas vezes (mas nem sempre) condenado pela sociedade.
Mas nem tudo é preto no branco, racismo ou não-racismo. Há infinitas
combinações de cores, há infinitas formas de demonstrar e de esconder o racismo
e ainda assim julgar-se superior.
Com indígenas é pior, porque a diferença não está só na cor da pele, no
tipo de cabelo e na classe social. Além de tudo isso, a diferença é cultural e
muitas vezes até linguística. Os indígenas são os brasileiros mais ímpares e
diferentes que compartilham o mesmo território que nós.
O racismo pode aparecer em momentos leves, entre amigos. As pessoas
naturalizaram de uma tal forma o racismo contra indígenas, que não percebem que
jamais poderiam usar aquelas mesmas palavras para se referir a qualquer outro
grupo de pessoas. Nossa sociedade tem sido muito conivente com o racismo contra
indígenas, a despeito do que diz nossa legislação.
Conforme a Constituição Federal e a Lei nº 7.716/89, serão punidos os
crimes de discriminação ou preconceito contra raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional, sendo o crime de racismo inafiançável e imprescritível.
No entanto, diariamente os indígenas são discriminados e são raros os casos de
denúncia e condenação.
As redes sociais, por exemplo, estão repletas de conteúdo racista. Em
abril de 2014, a Justiça Federal condenou um jornalista amapaense por cinco
mensagens que utilizavam expressões de desprezo se referindo aos índios Guarani
Kaiowá. De acordo com a decisão, o jornalista prestaria serviços comunitários
na Casa de Apoio à Saúde Indígena do Amapá (Casai) e pagaria seis salários mínimos
ao Conselho de Caciques de Oiapoque e à Associação dos Indígenas de Wajãpi. A
proposta é que, prestando serviços comunitários na Casai, o jornalista conviva
com indígenas e, conhecendo a realidade, passe a respeitá-los. Tomara que sim.
(Saiba mais)
Na esfera política os discursos de ódio estão cada vez mais
escancarados. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Deputado
Federal Luís Carlos Heinze (PP-RS), diversas vezes desqualificou publicamente
quilombolas, índios, gays e lésbicas (saiba mais). As
urnas mostraram que a população o apoia: em 2014, Heinze foi reeleito pela 5ª
vez, como Deputado Federal do Rio Grande do Sul, sendo o deputado mais votado
do estado.
Os discursos racistas atingem diretamente os indígenas. O relatório
Conflitos no Campo Brasil 2013, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mostra
que, das 1.266 ocorrências relacionadas ao conjunto dos conflitos no campo no
Brasil, 205 estão relacionadas a indígenas, totalizando 16%. A maior parte
destes casos refere-se a conflitos por terra ou retomada de territórios,
somando 154 ocorrências.
Os povos indígenas são os mais afetados pela violência no Brasil. Ainda
segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil, em 2013, das 829 vítimas de
assassinatos, ameaças de morte, intimidações, tentativas de assassinato e
outras, 238 eram indígenas. Das 34 mortes por assassinato, 15 eram de
indígenas. Eram também indígenas 10 das 15 vítimas de tentativas de
assassinato, e 33 das 241 pessoas ameaçadas de morte.
É triste constatar que as mortes de indígenas no campo, as quais se
caracterizam como um verdadeiro genocídio, encontram uma referência no discurso
de figuras públicas e lideranças políticas, quase sempre motivadas por
interesses econômicos.
O racismo (assim como o machismo) habita o imaginário social, paira
sobre a sociedade como um todo, e, consequentemente, sobre cada indivíduo. Como
toda ideia, ele é vivo, autônomo e se faz transparecer em ações e ideologias.
Um dos modos que o racismo age é pela generalização, quando se nota algo
negativo de um indivíduo e se transfere essa questão ofensiva para o povo todo.
Utilizando um exemplo bem comum em cidades pequenas que convivem com indígenas,
imagine que alguém veja na rua um homem bêbado. Se o homem não é indígena,
comenta-se “este homem está bêbado”, mas se ele for indígena o comentário é “os
índios estão sempre bêbados”.
A sociedade é racista, e mesmo que você não se considere racista, às
vezes ele pode escapar discretamente. Vigie seus atos, pensamentos, sentimentos
e se permita ver.
Mentira nº 5: Os índios têm muitos privilégios
Se estivéssemos aqui falando de privilégios como desfrutar de uma vida
em meio à natureza, estaria tudo bem. Mas não, infelizmente este discurso vem
acompanhado da crença de que “índio recebe um salário do governo a partir do
momento que nasce”.
Pior do que ter tantas pessoas acreditando nisso, é a surpresa que
expressam quando descobrem que não. “Não? Mas então, do que vivem?”. Parece
impossível acreditar que trabalham e que batalham pelo seu sustento. Ao
contrário do que tantos brasileiros acreditam, não existe muita vantagem em ser
indígena hoje em dia. Existe sim, muita coragem.
Em relação à saúde, a diferença é que os indígenas são atendidos pela
Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que é parte do mesmo SUS que
atende aos não-indígenas. Na teoria, essa distinção permite um olhar
diferenciado dos profissionais de saúde, considerando questões culturais e
atuando em consonância com as práticas de saúde tradicionais indígenas. Na
prática, como os nossos postos de saúde, alguns funcionam bem, outros não.
Faltam equipamentos, às vezes não têm remédios, faltam profissionais
especializados, etc. Falta percorrer um longo caminho.
Na área da educação por muitos anos os indígenas estiveram expostos à
imposição de nossos valores e negação de sua identidade e cultura. Hoje o
Ministério da Educação é responsável por desenvolver uma educação diferenciada,
intercultural e bilíngue, dando espaço aos processos de aprendizagem e aos
conhecimentos indígenas. Além disso, os indígenas podem elaborar seus próprios currículos
e rotinas escolares com gestão indígena. De acordo com o Ministério da
Educação, a maioria dos professores ainda são não-indígenas, totalizando 7.968,
enquanto professores indígenas somam 7.321. Na prática, como no ensino público
para não-indígenas, com exceção de alguns casos de sucesso, faltam materiais
didáticos específicos, alimentação (sendo que poucas vezes esta é de fato
diferenciada), infra-estrutura etc.
Quanto aos benefícios sociais, indígenas são considerados pelo INSS
“segurados especiais” para fins de acesso ao salário maternidade, aposentadoria
por idade, auxílio doença, auxílio acidente, aposentadoria por invalidez,
pensão por morte e auxílio reclusão.
Segurados especiais são os trabalhadores rurais que produzem em regime
de economia familiar, sem utilização de mão de obra assalariada. Além dos
indígenas, são considerados segurados especiais os agricultores, os
seringueiros e os pescadores artesanais. Os indígenas precisam comprovar que
sua subsistência advém do extrativismo, do plantio ou de outra atividade
vinculada à terra e aos recursos naturais. Ou seja, os indígenas acessam estes
benefícios não por serem indígenas, mas sim por viverem de atividades rurais,
pois se forem assalariados, deixam de ser segurados especiais.
E, por fim, os indígenas possuem o direito de usufruir de seu
território. As Terras Indígenas não são dos indígenas, são propriedade da
União, terras públicas que pertencem a toda a nação brasileira, cedidas aos
índios em regime de posse permanente e usufruto exclusivo. Ou seja, eles não
têm a propriedade das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das
riquezas do solo e das águas para a atual e as futuras gerações viverem.
Mentira nº 6: Os índios são tutelados, por isso índio não vai
preso e não pode comprar bebida alcoólica
Essa história é antiga e tem um fundo de verdade. Desde o período
colonial até o século passado, o Estado sempre considerou que os indígenas
deveriam ser integrados, ou seja, deveriam negar suas identidades em nome de
sua inserção à nação brasileira.
Esta concepção foi perpetuada por séculos e virou “tutela” no Código
Civil de 1916 (artigo 6º), que enquadrou os índios na categoria de
relativamente incapazes, condição semelhante à dos órfãos menores de idade no
século XIX.
O Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) endossou o regime de tutela,
depois de separar categorias de índios em “isolados”, em “vias de integração” e
“integrados”, estabelecendo que o regime tutelar se aplicaria aos índios ainda
não integrados.
O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e os mantém sob
controle. Em nome desta “tutela”, o Estado brasileiro promoveu um verdadeiro
genocídio. A Comissão Nacional da Verdade, que investiga crimes cometidos pelo
governo ou agentes da ditadura militar, estima que somente a construção de
estradas na Amazônia, no governo do general Médici (1969-1973), matou em torno
de 8 mil índios (saiba mais).
Na região do Araguaia, o povo Xavante de Marãiwatsédé entregou um
relatório de 71 páginas à Comissão Nacional da Verdade. Entre os crimes, estão
a invasão do território com a condescendência de autoridades, empresários e
poderes locais e nacionais (saiba mais).
A legislação só tomou um rumo diferente em 1988, com a atual
Constituição Federal Brasileira. Nossa Constituição reconheceu e introduziu os
direitos permanentes dos índios, abandonando a ideia de que eles seriam
assimilados à nossa sociedade e endossando a ideia de que os índios são
sujeitos presentes e capazes de permanecer no futuro. Ela reconheceu ainda o
direito dos indígenas às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço na
legislação indigenista foi uma conquista do movimento indígena.
O Novo Código Civil Brasileiro (2002), em seu Art. 4º, diz que “a capacidade
dos índios será regulada por legislação especial”. Como essa tal lei não
existe, alguns podem acreditar que se trata do antigo Estatuto do Índio, e daí
se cai em contradição, já que o referido Estatuto trata o índio como
semi-incapaz.
O Estatuto do Índio e suas ideias retrógradas nunca foram oficialmente
revogados, mas muitos especialistas acreditam que a Constituição Brasileira,
como nossa lei máxima, por si só já o revoga em relação à tutela. Porém, muitos
juristas, legisladores e a população brasileira ainda remetem ao Estatuto do
Índio para embasar decisões e discursos, valendo-se da contradição das leis e
provocando insegurança jurídica para os povos indígenas.
Por isso, no entendimento da Funai e de diversos especialistas,
indígenas são tão cidadãos quanto nós, e podem sim comprar bebidas alcoólicas
fora das Terras Indígenas. Aliás, o comerciante que não vendesse estaria
cometendo um crime ao discriminar o indígena, além de uma prática abusiva
prevista no inciso IX do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor.
Algumas instâncias governamentais encontram amparo legal no Estatuto do
Índio para proibir a venda de bebidas alcoólicas para indígenas. O Artigo 58
desse Estatuto estabelece que constitui crime “propiciar, por qualquer meio, a
aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou
entre índios não integrados”.
Em relação à criminalização, o Estatuto do Índio diz que a pena deve ser
atenuada, e “se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de
funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da
habitação do condenado” (Art. 56).
A tutela em nada tem a ver com a não-responsabilização do indivíduo por
um crime que praticou. Tem a ver com um julgamento diferenciado caso a questão
se relacione à sua prática cultural e à necessidade de um intérprete em seu
interrogatório, caso o indígena não tenha completo domínio da língua
portuguesa.
Em relação aos delitos, a lei para os indígenas é a mesma que a nossa.
Índios podem ser e são presos quando roubam, quando praticam atos de violência,
cometem assassinatos e por todos os motivos que os não-indígenas são presos.
São presos também injustamente, para serem calados e oprimidos, para não serem
cumpridos seus direitos como no caso do Cacique Babau, que luta pelo seu
território e sofre continuamente perseguição das autoridades (saiba mais).
Em 1978, o Estatuto do Índio ordenou ao Estado brasileiro a demarcação
de todas as terras indígenas até dezembro de 1978. Depois de dez anos, a
Constituição Brasileira reconheceu aos índios os “direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens” (Art. 231), e estabeleceu o prazo de cinco
anos para a demarcação de todas as Terras Indígenas.
Quando a Constituição traz o termo “direitos originários”, ela revela
que este direito vem desde sempre, antecedendo à própria Constituição. As
demarcações são apenas reconhecimento desse direito pré-existente. A noção de
território não constitui apenas uma relação de ocupação ou exploração, mas o
fundamento da existência do povo, pois somente em seu território é possível a
prática plena de sua cultura.
No entanto, até hoje o Estado se recusa a cumprir sua obrigação e a cada
dia crescem mais os interesses econômicos sobre estas terras tradicionais. Não
bastasse isso, muitas Terras Indígenas são cada vez mais diretamente ou
indiretamente afetadas por grandes empreendimentos, monoculturas com uso
abusivo de agrotóxicos, mineradoras etc.
Enquanto os agentes destes grandes poderes econômicos tentam barrar
todos os processos de demarcações, também dizem que é preciso modificar o
procedimento de demarcação. O Decreto 1.775/1996 detalha todo o procedimento, havendo um grupo
técnico especializado, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar
estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica,
cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.
Após passar por autorização da Funai, é aberto um prazo para contestações e
somente depois é feita a demarcação.
Os ocupantes não-indígenas são indenizados tanto pelas benfeitorias
quanto pelos títulos de propriedade de boa fé. Além disso, os ocupantes
não-índios que atendem ao perfil da reforma agrária são reassentados, a cargo
do Incra.
As Terras Indígenas são inalienáveis e indisponíveis, ou seja, os
indígenas não podem efetuar nenhum negócio jurídico que acarrete a
transferência da titularidade de direitos sobre estas terras, e nem mesmo
permitir o beneficiamento de não-indígenas com a exploração dos recursos
naturais, pois o usufruto é exclusivos dos indígenas.
O discurso anti-indígena tem como principal argumento que as Terras
Indígenas ocupam 13% do território nacional. Mas os brasileiros não se dão
conta da imensa área que os latifúndios ocupam. O Brasil tem uma área de mais
de 851 milhões de hectares. Destes, mais de 318 milhões são ocupados por
grandes propriedades, totalizando 37% do território nacional.
A tabela abaixo mostra a quantidade de propriedades, a soma da área que
estas propriedades ocupam e a porcentagem que esta área representa sobre o
território nacional. Para compreender melhor, consideramos que “minifúndio” é o
imóvel de área inferior a um módulo fiscal (Decreto nº 84.685/1980), “pequena
propriedade” é o imóvel rural com área entre 1 e 4 módulos fiscais (Lei nº
8.629/1993) e “média propriedade” é o imóvel rural com área superior a 4
módulos fiscais e até 15 módulos fiscais (Lei nº 8.629/1993).
Não há definição legal para “grande propriedade”, a qual, no entanto,
passou a ser tida na prática das políticas agrárias como o imóvel rural com
área superior a 15 módulos fiscais.
Módulo fiscal é uma unidade de medida corresponde à área mínima
necessária a uma propriedade rural para que sua exploração seja economicamente
viável (Lei nº 6.746/1979). A depender do município, um módulo fiscal varia de
5 a 110 hectares.
Proponho agora um exercício de imaginação. Consideremos que estes 130
mil proprietários vivam em suas grandes terras com suas famílias, e imaginemos
que cada lar tenha em média 3,3 moradores, a mesma média dos lares brasileiros
de acordo com o Censo Demográfico 2010.
Vamos desconsiderar que, ainda segundo o Incra, 69 mil das grandes
propriedades, que equivalem a mais de 228 milhões hectares (40% da área das
grandes propriedades) são improdutivas. A maior parte destas pessoas possuem
outras fontes de renda, não produzem seus alimentos e não possuem laços
ancestrais com a terra. Muitas vezes os proprietários não são pessoas, e sim
empresas. Mas, por hora, deixemos estas questões de lado e nos voltemos aos
números, tratando igualmente a área indígena e a de grandes proprietários.
Os indígenas, por sua vez, ocupam uma área de 106 milhões de hectares,
sendo mais de 567 mil pessoas, conforme a tabela abaixo:
Ou seja, os indígenas estão em um território quase 3 vezes menor que o
território das grandes propriedades, apesar de ser quase 4 vezes mais populoso.
E repare que não estão sendo contados aqui os indígenas que vivem nas cidades,
somente os que vivem em Terras Indígenas. Seria preciso multiplicar em 37 vezes
o número de proprietários no latifúndio para ele se equivaler à área por pessoa
em Terra Indígena. Portanto, nota-se: temos no Brasil muita terra para poucos
proprietários.
A maior parte das terras indígenas está na Amazônia Legal, onde vive
cerca de 55% da população indígena no Brasil. Nas demais regiões do país,
principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, além do estado do Mato
Grosso do Sul, os povos indígenas conseguiram manter a posse em áreas
geralmente diminutas e esparsas, espremidos entre cidades e fazendas, sem as
condições mínimas necessárias para manter seu modo de vida. É justamente nessas
regiões que se verifica atualmente a maior ocorrência de conflitos fundiários e
disputas pela terra.
O que está em jogo não é aquele pé de fruta que o avô plantou e onde ele
amarra sua rede. Não importa que ali estejam enterrados os seus antepassados,
que ali seja a morada de seus espíritos e do mundo sagrado. O “desenvolvimento”
vem como um trator atropelando tudo com suas hidrelétricas, mineradoras, gados,
sojas e milhos transgênicos. Os índios amam o seu território. E muitos morrem
porque os não-índios amam o dinheiro.
Mentira nº 8: Os índios são preguiçosos e não gostam de trabalhar
Cá entre nós, poucas pessoas verdadeiramente gostam muito de trabalhar.
A maioria trabalha porque precisa do dinheiro para pagar as contas, para
comprar comida, para comprar o celular e para comprar sempre e cada vez mais
tudo que possa surgir. Essa é a lógica das sociedades capitalistas: ter cada
vez mais, acumular e nunca estar satisfeito com o que tem.
A lógica indígena, tradicionalmente, não se interessa em acumular, e sim
em desfrutar. Portanto, se antes do sol chegar ao alto do céu, o homem já
pescou peixe para a família toda se alimentar naquele dia, ele pode voltar para
casa e descansar, pois sua obrigação já foi cumprida.
Mas espera aí… caçar, pescar, plantar, colher, manejar, construir sua
casa, fazer seu barco e fazer tudo mais que uma vida auto-subsistente necessita
não parece nada fácil. Imagine então que para realizar cada uma destas tarefas
é preciso muitas outras. Para fazer o barco, por exemplo, é preciso entrar no
mato, encontrar uma árvore de uma espécie específica que esteja num bom tamanho
e formato, derrubar a árvore, tirar da floresta, cortar e moldar a madeira,
queimar de um modo específico com uma lenha específica, moldar novamente como o
avô ensinou, queimar de novo, e pronto, finalmente ele tem o barco para pescar,
resumidamente. Quem se habilita?
Durante séculos os indígenas estiveram domesticando diversas espécies de
plantas que hoje consumimos, como o milho, um dos grãos mais produzidos no
mundo, e a mandioca, que os brasileiros tanto gostam. Estas plantas e tantas
outras, como feijões, abóboras, carás e tomates, não eram encontradas na
natureza como hoje as conhecemos. São o resultado de muito trabalho indígena.
Superando esse preconceito, vamos considerar que os indígenas também têm
o direito de querer comprar coisas que compramos, e, portanto, precisam de
dinheiro. Algumas etnias estão buscando meios de vida que integrem sua cultura
a essa nova necessidade.
É o caso do povo Paumari, que vive no sudoeste do Amazonas e está sendo
pioneiro no manejo de pirarucu. Há 5 anos eles fazem o manejo de 23 lagos, e no
final de setembro de 2014 realizaram a pesca de 3.523 kg de pirarucu
legalizados pelo Ibama. A iniciativa é apoiada pelo projeto Raízes do Purus,
realizado pela OPAN – Operação Amazônia Nativa com o patrocínio da Petrobras (saiba mais).
Outro exemplo de geração de renda aliado à sustentabilidade e à cultura
vem da etnia Kisêdjê, que habita a Terra Indígena Wawi, anexa ao Parque
Indígena do Xingu. Desde 2011 a comunidade participa de um projeto para produção
e comercialização de óleo de pequi. Em 2013 foram produzidos 170 litros do óleo
na mini usina construída na aldeia Ngohwêrê. O projeto conta com o apoio
técnico do ISA – Instituto Socioambiental e financeiro e organizacional do
Instituto Bacuri e do Grupo Rezek (saiba mais).
Todo mundo sabe que a cultura brasileira tem influência indígena. Com
eles aprendemos diversas palavras, o respeito à natureza e o hábito de tomar
banho todos os dias, certo? No entanto, para cada elogio existe um contraponto:
“índio que fala português não é mais índio”, “antes índio era inocente, agora
índio só pensa em dinheiro” e a pior frase de todas: “índio fede”.
Essa mentira é muito comum: “índio fede”. Não, o que fede é o
preconceito. Índio tem cheiro de óleo de tucum, de urucum e jenipapo, tem
cheiro de fogo feito em casa, de peixe assado, de suor de quem trabalha, de
banho de rio, de sabonete e de perfume comprado em shopping.
Enchemos o peito para dizer que o Brasil é um país lindo, rico em
minérios, com uma biodiversidade impressionante e com muita fartura de água.
Mas seguimos exaurindo os nossos recursos naturais perseguindo um desejo de
crescimento que parece nunca ter fim, como se os recursos naturais fossem
infinitos. Mas saibam, recursos naturais chegam ao fim.
Estamos sacrificando nossa diversidade biológica e cultural para
enriquecer ainda mais quem já é rico. E os índios, que são o símbolo maior de
uma vida sustentável, que são os grandes conhecedores da biodiversidade
brasileira, tão pouco conhecida pelos cientistas, estão sendo desprezados.
Enquanto se desmata incessantemente a Amazônia e o Cerrado, desaparecem
espécies de plantas que poderiam ser utilizadas para tratar inúmeras doenças,
conhecidas ou não. Enquanto se pratica o genocídio e se mantém os indígenas
como reféns do “progresso”, infinitas possibilidades de conhecimento vão
desaparecendo e os brasileiros não se dão conta.
Mas fora do Brasil, há quem esteja bem atento às nossas riquezas. Em
2013, quatro coreanos foram presos em Canarana (MT) por biopirataria no Parque
Indígena do Xingu. Eles fizeram um acordo com os Kamaiurá, do Alto Xingu, e
pagaram para obter 10 quilos de raízes e plantas usadas pelos índios para fins
cosméticos. Os coreanos viviam nos Estados Unidos e um deles trabalhava para
uma empresa de cosméticos. O acesso aos recursos genéticos e conhecimentos
tradicionais, sua proteção e a repartição de benefícios associados é regido
pela Medida Provisória nº 2186/16, de 23 de agosto 2001 (saiba mais).
E não se trata apenas de conhecimentos da natureza, mas até mesmo de uma
nova estrutura econômica e social, de um novo jeito de fazer política, de tomar
decisões, de olhar para nós mesmos, para nossos semelhantes e para aqueles que
são diferentes. Ninguém quer ouvir as contribuições que o pensamento indígena
pode trazer.
O racismo é uma voz que sussurra ao ouvido dizendo que os índios são
mais “atrasados” que a gente. Como se o “desenvolvimento” fosse uma linha única
para toda a humanidade, como se nossa sociedade fosse um exemplo a ser seguido.
Já que nós gostamos tanto de olhar para nosso umbigo, vejamos também o que o
nosso “desenvolvimento” tem gerado: produção de lixo, contaminação e
esgotamento de água, desigualdade social, violência e por aí vai…
Mentira nº 10: Os índios atrasam o desenvolvimento do País
Mesmo que no mundo todo cada vez mais aumente a preocupação ambiental, o
Brasil continua com a mesma ideologia que balança no centro de nossa bandeira,
nossa palavra de ordem é o progresso.
Um progresso desesperado, que não pode dar o tempo para fazer o estudo
de impacto ambiental, que não pode analisar as possibilidades de redução de
danos, um progresso que chega custe o que custar, e que agora, mais do que
nunca, quer explorar os recursos das Terras Indígenas.
O principal aspecto a ser considerado é que os grandes donos do poder
econômico (os setores bancário, armamentista, minerário, farmacêutico, da
construção civil, do agronegócio etc.) possuem interesse em divulgar uma imagem
negativa dos indígenas. As grandes corporações tomaram conta da arena política e
querem a qualquer custo convencer a nação de que “é preciso crescer e os índios
atrasam o desenvolvimento do País”. Na lógica deles é mais importante plantar
soja para a China do que preservar as nascentes brasileiras.
O cenário que se apresenta hoje aos povos indígenas é pior do que o do
índio que avistou Cabral em 1500. A partir de 2015, teremos o Congresso mais
conservador desde 1964, e especialmente, mais anti-indígena. Foram eleitos 273
deputados federais e senadores considerados ruralistas, o que representa um
aumento de 33% em relação à legislatura atual, que conta com 205 ruralistas.
Várias investidas avarentas da bancada ruralista ganharão força, como a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, a PEC 237, o Projeto de Lei
(PL) 1.610, o PL 227/2012 e a Portaria 303, de iniciativa da Advocacia Geral da
União (AGU).
Estas iniciativas tratam de temas como demarcação de Terras Indígenas,
posse indireta de Terras Indígenas a produtores rurais na forma de concessão e
exploração e aproveitamento de recursos naturais em Terras Indígenas (minérios,
recursos hídricos, florestais, etc.), independe de consulta às comunidades
afetadas. Além de irem contra a legislação vigente e preceitos universais, elas
são cruelmente orquestradas para que se perpetue no país o ódio aos indígenas (saiba mais).
Mas se engana quem pensa que os indígenas assistem a isso calados. Os últimos anos foram anos de luta. Em maio de 2014, povos indígenas de todo o país reuniram-se em Brasília para a Mobilização Nacional Indígena, com atos e manifestações contra os ataques aos seus direitos garantidos pela Constituição Federal (saiba mais). E seguem lutando diariamente.
Os indígenas têm o direito de viverem em seus territórios. Já temos no
país muitas terras para a criação de gado e o plantio de monoculturas,
concentrada nas mãos de poucas pessoas. Desenvolvimento é bom, mas de qualquer
jeito, não. Não podemos admitir um desenvolvimento que desrespeite leis,
culturas e provoque mais desigualdade social.
Os indígenas devem poder escolher se desejam se beneficiar do
desenvolvimento e de que forma, ou se preferem nem se envolver. Mas eles não
podem continuar sendo desrespeitados em nome do interesse econômico.
Não precisamos de um crescimento desrespeitoso, realizado sem estudos de
impacto ambiental, social e cultural. Tampouco necessitamos da malícia de
políticos e da mídia. Precisamos sim tirar a venda dos olhos e enxergar o índio
realmente, pois são mentiras e preconceitos que atrasam a evolução humana.
O desenvolvimento deve ser bom para todos. A paz entre os povos, já
prevista em nossa Constituição Federal, deve ir além da diplomacia e incluir os
que vivem em solo pátrio.
Tenhamos amor!
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*Lilian Brandt é antropóloga e colaboradora da AXA.
Fonte: PORTAL FORUM
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