A entrevista com Pe. Paulo Sérgio Bezerra, que hoje trago para o blog Indagações-Zapytania, é muito
interessante e pode ser bastante útil para as pessoas que procuram compreender melhor a questão de
Teologia da Libertação. Foi publicada no início deste ano (2017) no blog CAMINHO
PRA CASA, por Mauro Lopes.
Vale a
pena conferir!
W. Cejnog
[por Mauro Lopes]
Padre Paulo:
papados conservadores “destruíram Igreja inserida na vida dos pobres” no Brasil
e AL
Padre
Paulo ao fim de um batizado em 2015
Padre Paulo Sérgio Bezerra não cede um
milímetro sequer no seguimento dos ensinamentos da Igreja à luz do Evangelho e
da renovação do Concílio Vaticano II, como um dos protagonistas da Teologia da
Libertação na periferia de São Paulo. Padre desde 1980, há 34 anos está na
Paróquia Nossa Senhora do Carmo, na Diocese de São Miguel Paulista, em
Itaquera, bairro pobre da zona leste da cidade.
O sacerdote, de 63 anos, foi formado pela
escola do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, falecido em dezembro de 2016 e dom
Angélico Sândalo Bernardino, bispo da região Leste II da cidade de São Paulo e
hoje emérito da diocese de Blumenau (SC), aos 84 anos. Isso anos antes que João
Paulo II dividisse a Arquidiocese em 1989, numa articulação para esvaziar a
liderança de dom Paulo e nomear bispos conservadores para as novas dioceses,
que trataram de demolir toda a construção da “Igreja rumo à periferia” na
antevisão de dom Paulo, agora retomada pelo Papa Francisco, que tem convocado
os católicos para novamente partirem “às periferias existenciais” de uma
“Igreja em saída”.
A matriz e as capelas das sete comunidades da
paróquia estão sempre cheias, quase duas mil pessoas frequentam as celebrações
e participam da vida da Igreja local. Acorrem às missas presididas por
padre Paulo gente de toda a cidade, em busca de uma liturgia que fuja ao
rigorismo dos tradicionalistas ou ao estilo neopentecostal dos carismáticos.
“Aqui não tem ‘milagres’ nem se fala em línguas”, diz ele, desolado com o
ambiente da Igreja em boa parte da cidade: “A questão para os padres hoje, em
larga escala, é indumentária. Tem padre que usa barrete, solidéu preto, é um
fetiche indumentário que sequer é propriamente uma teologia tradicionalista,
conservadora, apesar de serem conservadores, reacionários”. Ele não desanima,
está empolgado com a primavera da Igreja promovida por Francisco: “Quando em
2013 aquele homem curvou-se para a multidão no dia do anúncio de seu nome, na
praça São Pedro, nem precisei ir ao Google pra saber quem era; entendi que
havia chegado um novo tempo”.
Um tempo novo que se abre depois da terra
arrasada. Para ele, a ofensiva conservadora de 35 anos dos papados de João
Paulo II e Bento XVI quase liquidou com a Igreja na América Latina e no Brasil,
com a perseguição aos leigos, leigas, padres, freiras, teólogos, teólogas e até
bispos vinculados à Igreja dos pobres, à Teologia da Libertação e, sobretudo,
às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): “Eles destruíram com a Igreja
organizada em comunidades, pequenos círculos, inserida na vida das famílias
pobres ao redor do país e da região”.
Entre outubro e novembro de 2016, padre Paulo
sofreu uma campanha agressiva promovida por blogs católicos ultraconservadores.
Motivo: ter recebido em celebrações na Igreja, durante a novena de Nossa
Senhora do Carmo, pessoas como o deputado Chico Alencar (PSOL), Guilherme
Boulos, líder nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), a
filósofa Marilena Chauí e, sobretudo, a drag queen Albert Roggenbuck (Dindry
Buck). No caso da de Buck, os rigoristas deixaram de informar que a jovem é
catequista em outra paróquia da região. Os integristas moveram intensa campanha
de ódio contra o padre nas redes sociais, incentivaram um abaixo assinado pela
remoção dele e mantiveram uma reunião constrangedora e inquisitorial com o
bispo, dom Manuel Parrado Carral. Não deu em nada. “No abaixo assinado deles
tinha até gente do Acre, no norte do país, mas aqui na paróquia pouquíssimas
pessoas deram bola para isso”, afirmou padre Paulo. Em reportagem da TVCarta sobre as ações da paróquia, padre
Paulo questionou: “Porque o Alckmin, por exemplo, chega e fala na basílica
nacional (de Aparecida) e ninguém questiona?” (veja aqui).
Ele concedeu entrevista ao blog Caminho pra Casa em duas
rodadas de conversas, entre 12 e 16 de janeiro –todas as observações entre
colchetes são intervenções do autor deste blog.
Entrevista
Caminho pra Casa: As
celebrações na paróquia Nossa Senhora do Carmo estão sempre cheias e a
mobilização da comunidade é sempre muito forte. O que acontece aqui?
Padre Paulo Sérgio Bezerra: Bem, talvez seja melhor
dizer o que não acontece aqui. Aqui não tem ‘milagres’
nem se fala em línguas (risos). Há mais de 30 anos o que fazemos aqui é manter
a linha do Vaticano II. Seis anos depois de minha ordenação decidi fazer
pós-graduação em Liturgia e sempre procurei inspirar-me na renovação do
Concílio que pretendeu uma caminhada litúrgica dinâmica, com o povo. Ao longo
dos anos houve um enrijecimento litúrgico notável, que negou em boa medida o
espírito do Vaticano II, ao lado do surgimento da onda de padres cantores e
celebrações com acento neopentecostal, mas buscamos nos manter fiéis e eu
tentei manter-me amparado no ensinamento de dom Paulo (Evaristo Arns) e dom
Angélico (Sândalo Bernardino). Para eles, como filhos diretos do Vaticano II, a
Liturgia deveria refletir e ser concretização de uma vida pastoral de
compromisso com os pobres. Não se sacralizavam as normas litúrgicas, mas elas
eram adaptadas à vida da Igreja como Povo de Deus. Com os anos a liturgia virou
uma “vaca sagrada”; ninguém toca. E não tem mais vida, não pulsa.
É mesmo impressionante o que
aconteceu. Onde estão os profetas da Igreja?
Há muitos profetas ainda, mas o fato é que em
largas fatias do clero há três palavras que são imperativas: dinheiro,
dinheiro, dinheiro. A questão para os padres hoje, em larga escala, é
indumentária. Tem padre que usa barrete, solidéu preto, é um fetiche
indumentário que sequer é propriamente uma teologia tradicionalista,
conservadora, apesar de serem conservadores, reacionários.
Padre
Paulo na abertura da Campanha da Fraternidade de 1985,
sob o tema “Pão para
quem tem fome” – na Zona Leste de São Paulo.
Estamos começando a sair de uma situação
difícil, muito difícil. Como superar esses anos de fechamento e esclerose? Como
enfrentar a Teologia da Prosperidade que se tornou como uma praga dentro da
Igreja, seduzindo fiéis, padres, bispos, tanto teologicamente como
pessoalmente? Sim, a prosperidade financeira tornou-se “projeto de vida”. É uma
virada enorme a ser feita. Comblin perguntava: quem na Igreja realizará a
missão continental? Dom Angélico disse-me mais de uma vez, depois de tantos
livros publicados sobre o Papa Francisco: “é preciso parar com essa coisa de
escreve livros e passar à pratica pastoral que ele aponta para a Igreja.
Padre
Paulo preparando homilia dominical
Isto ficou claro desde o
começo, não?
Sim. Quando em 2013 aquele homem curvou-se para
a multidão no dia do anúncio de seu nome, na Praça São Pedro, nem precisei ir
ao Google pra saber quem era; entendi que havia chegado um novo tempo.
Está tudo na Evangelii Gaudium! [a Exortação
Apostólica de Francisco, A Alegria do Evangelho, sobre o anúncio do Evangelho
–a íntegra aqui]
Ela foi lançada em novembro de 2013 e será que
os cardeais rebelados não leram? Tenho certeza que sim, mas esperaram o momento
para atacar, que é o que vemos hoje.
A Igreja do Vaticano II, a Igreja das primeiras
comunidades, está tudo lá na Evangelii Gaudium. Com ela, Francisco liquidou
todo o edifício hierárquico de fundo monárquico que foi construído nesses anos
todos. Olha! [Pega um exemplar da carta apostólica e indica] O Papa fala nos
novos caminhos logo no tópico 1, anuncia um novo desenho de Igreja, a partir
dos processos e de uma amarração de elaboração coletiva… Leia aqui no número
16: “(…) não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou
completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo”.[1]
Tudo o que a Igreja experimentou no Sínodo da
Família e com a Amoris
Laetitiaestava indicado desde a Evangelii
Gaudium. É a Igreja das autonomias, dos processos, não mais das
decisões monárquicas; por isso os que estavam no poder estão reagindo desse
jeito brutal. Eles querem manter o poder!
O cenário é muito tenso. Há muita gente na
estrutura da Igreja rezando por uma morte rápida de Francisco. Mas precisamos
ter coragem de mudar. Os planos pastorais, que hoje são verticais e inspirados
nos planos das empresas, precisam ser refeitos todos, com a participação e
decisão do povo. Houve um tempo, o da Teologia da Libertação, em que a
liderança da vida da Igreja estava com o episcopado profético; depois foi esse
desastre; o futuro está nas mãos dos leigos.
Há muito trabalho pela frente.
Com Francisco, a Igreja, que se tornou nos
últimos 35 anos totalmente irrelevante, domesticada volta a cumprir sua missão:
ser luz do mundo, incomodar, ser profética. Precisamos ser esta luz não apenas
em Roma, mas em todos os cantos.
O que está acontecendo na
paróquia em que o senhor atua?
Bem, tentamos manter uma pequena chama acesa
esses anos todos. Há sinais aqui e ali, parece que a Igreja começa, lentamente,
a acordar da anestesia, em meio aos conflitos internos brutais.
Buscamos ter um governo da Igreja partilhado
com todos, dentro de nossas fragilidades.
Um aspecto importante de nossa dinâmica, além
do cotidiano de viver e compartilhar com as pessoas é a celebração anual de
Nossa Senhora do Carmo, nossa padroeira. Desde 2006 tornamos a novena
preparatória da festa como espaço privilegiado de reflexão; em cada ano foi um tema:
democracia, meio ambiente, mulheres, saúde… É um período de distribuição de
documentos, cartas e da encíclica Laudato
Sii sobre o planeta.
Convidamos pessoas que refletem sobre essas questões para partilhar com nossa
comunidade, aqui estiveram nesses anos todos gente como Vladimir Safatle,
Marilena Chauí, Guilherme Boulos, o padre Luiz Lima, Chico Alencar, Marcelo
Barros, Boff…
A partir de 2015 mudamos a novena para um ciclo
em sete domingos, um septenário, que permite uma reflexão mais aprofundada e é mais
adaptado à esse ritmo frenético da vida das pessoas.
O senhor é alvo de uma
perseguição constante de grupos católicos ultraconservadores, que foram até
pedir sua remoção ao bispo
Sim. Essa história foi quando trouxemos a drag
queen Dindry Buck [Alberto Roggenbuck] para dar
testemunho, como católica e drag, sobre as provocações que a vida lhe traz e
como vive a sua fé. Ela sequer estava caracterizada assim durante a
celebração. Por sinal, o que os conservadores não dizem é que ela é catequista
numa paróquia vizinha. Fizeram um escarcéu porque ela falou na missa, levantou
o cálice durante a consagração e ajudou na distribuição da eucaristia. Quando
veio a Marilena Chauí fizeram um escândalo porque ela teria comungado da
“hóstia do padre”. Mas isso só revela ignorância litúrgica, pois a hóstia é da
assembleia.
No abaixo assinado deles tinha até gente do
Acre, no norte do país, mas aqui na paróquia pouquíssimas pessoas deram bola
pra isso.
Eu fico tranquilo, porque sei que não sou o
alvo. O alvo verdadeiro é a eclesiologia do Papa Francisco.
Padre
Paulo e padre Júlio Lancelotti visitam Guilherme Boulos,
preso durante
repressão da PM a sem teto em São Paulo em 17 de dezembro
Quais as perspectivas em curto
prazo?
A comunidade aqui da região fundou em 2010 o
IPDM (Igreja Povo de Deus em Movimento), que pretende ser um núcleo de
articulação, reflexão e oração em torno da proposta do Papa para a Igreja, numa
perspectiva ecumênica. Com isso, começamos a “expandir” as fronteiras da
paróquia para dialogarmos com pessoas e movimentos em outros cantos,
estabelecer novas pontes. É uma prioridade para mim e muita coisa já está sendo
feita.
Além disso, fomos “provocados” pelo Boulos [Guilherme
Boulos, líder nacional do MTST]. Em dezembro ele nos convidou
para assumirmos a evangelização nas ocupações de sem teto a partir de uma
perspectiva também ecumênica. Estamos nos organizando para isso. É um desafio.
E pensar que nos anos 80 em todas as ocupações aqui na zona leste (e não só
aqui) estavam presentes padres e seminaristas aos montes, era a Igreja “em
saída”, “nas periferias existências”, desafio para o qual o Papa Francisco nos
re-convoca. É um começar de novo, mas entendendo que vivemos uma época
totalmente nova; há ocupações de milhares de pessoas sem moradia em toda a
cidade e a Igreja ou inexiste ou tem uma presença tímida, e mesmo essa presença
tímida sofre em muitos casos a perseguição dos católicos reacionários. [em
17 de janeiro, dia seguinte à segunda rodada da entrevista, Guilherme Boulos
foi preso numa desocupação violenta realizada pela PM no leste de São Paulo e o
padre Paulo, ao lado dos padres Júlio Lancelotti, vigário da Pastoral do Povo
da Rua, e Tarcísio Mesquita, da Paróquia Nossa Senhora do Bom Parto, também na
Zona Leste, acorreram para a delegacia, em solidariedade –e foram todos os três
sacerdotes alvos de postagens agressivas e ofensivas dos movimentos católicos
integristas nas redes sociais]
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[1] “Com
prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta Exortação. Para
o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei também várias
pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me movem neste
momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a
evangelização no mundo atual, que se poderiam desenvolver aqui, são
inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de
questões que devem ser objeto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso,
aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou
completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não
convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as
problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a
necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’” (16).