Hoje
trago para o blog Indagações-Zapytania mais uma entrevista com o Dom Roque
Paloschi, publicada em outubro do ano passado (2016) pelo Conselho Missionário Indigenista
(CIMI). É uma entrevista concreta e esclarecedora sobre a questão indígena no
momento atual do Brasil.
A sociedade brasileira precisa tomar consciência dessa
grave situação e posicionar-se ao lado dos povos indígenas que sobreviveram ao
genocídio sofrido ao longo da história de 500 anos, e que ainda hoje sofrem agressões
e ameaças promovidas pelas forças do poder político e econômico do Brasil, que
querem retirar, diminuir ou até anular os seus direitos assegurados na Carta
Magna brasileira.
Espero
que a publicação desta entrevista também aqui, no meu blog, possa ser uma
pequena contribuição na divulgação e defesa da causa indigena.
Vale
a pena ler!
WCejnog
IHU
- Adital
07
Outubro 2016
Gritos perdidos na indiferença. O Brasil e a questão
indígena
Depois de dez anos e meio como bispo de Boa Vista,
no Estado da Roraima, a partir de Dezembro de 2015 Dom Roque Paloschi é arcebispo de Porto Velho, capital da Rondônia. Alguns meses
antes da sua transferência, o prelado – nascido na pequena cidade de Progresso –
no Estado do Rio Grande do Sul – tinha sido nomeado presidente do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), a organização criada em 1972 para
apoiar a luta dos povos indígenas do Brasil. No final de Julho, o CIMI obteve
o estatuto de consultor para a temática indígena no Conselho Econômico
e Social (Ecosoc) das Nações Unidas.
A entrevista foi publicada por Conselho
Indigenista Missionário -Cimi, 05-10-2016.
Eis a entrevista.
Este é momento histórico
Dom
Paloschi, o Brasil está a viver um período histórico muito particular.
Sem dúvida. É um momento que nasce também de uma
luta contra as conquistas sociais obtidas nos últimos anos. O novo Governo
de Michel Temer é composto por corruptos, como o demonstra a
situação de vários ministros.
No decurso do último ano, passou da diocese de Boa
Vista para a de Porto Velho. Tornou-se também presidente do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI). Qual das duas tarefas considera a mais difícil?
São dois desafios novos que exigem muito empenho.
Todavia, não há dúvida que a questão indígena é hoje uma temática crucial no
Brasil.
Falemos então do CIMI, o organismo da Conferência
Episcopal Brasileira.
Foi criado nos anos 70 para acompanhar o caminho
dos povos indígenas. Após oito anos com D. Erwin Kräutler à frente, desde há um ano eu assumi a sua presidência. Hoje o
organismo está a viver um momento muito absorvente por causa da difícil
condição dos indígenas. No Mato Grosso do Sul foi inclusive
criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar sobre o seu
comportamento.
O CIMI tornou público no passado 15 de Setembro
(2016), como faz cada ano, o relatório sobre as violências perpetradas contra
os povos indígenas no Brasil. Que quadro se apresenta?
Que também no decurso de 2015 os povos indígenas sofreram
um grande número de violências. Este relatório é um trabalho reconhecido
a nível internacional. Com ele nós denunciamos a violência das empresas
mineiras, das da agro-indústria e da madeira, mas também do Governo com as suas
repressões policiescas em relação às populações indígenas.
Em finais de Dezembro, um menino de etnia Kaingang
foi morto na estação dos autocarros perante os olhos da mãe. Como é que o país
reagiu?
O assassino do Victor, um menino de
dois anos, demonstra que a sociedade é discriminatória, muitas vezes alimentada
pelos grandes meios de comunicação social do Brasil. A sua morte provocou,
evidentemente, uma certa comoção, mas não há uma atitude de aceitação da
sociedade brasileira face aos indígenas e a sua cultura. É violenta.
A política «Bala, Boi,
Bíblia»
Pode fazer uma lista dos principais problemas dos
povos indígenas do Brasil?
O maior problema é a indiferença da sociedade
brasileira. Uma indiferença histórica, que parte dos colonizadores que viam nos
povos indígenas uma cultura atrasada. Como se não fossem pessoas com uma
dignidade. O segundo problema é a agressão aos direitos que, a custos
elevadíssimos, foram introduzidos na Constituição de 1988.
Hoje há uma tentativa de desconstrução destes
direitos através de muitas propostas de alterações constitucionais (Proposta de
emenda constitucional, PEC). Há depois a invasão das terras
demarcadas por mão de vários sujeitos: as companhias mineiras, as empresas da
madeira, as companhias para as grandes obras do Governo. Podemos aqui recordar
as centrais de Belo Monte, Balbina, Jirau e muitas outras. Há por
fim o grande problema da saúde indígena, que se encontra num caos generalizado:
as suas perspectivas são muito difíceis.
Antes de ser destituída, a presidente Dilma não
tinha feito muito pela questão indígena. Basta pensar que tinha como ministra
da Agricultura Kátia Abreu, conhecida ruralista e anti-indígena.
Para os povos indígenas o governo Temer constituirá uma prova bem mais
difícil do que o governo de Dilma. O objetivo deste governo é
eliminar os direitos dos povos indígenas. É abrir o acesso às
terras indígenas. É cortar as políticas de promoção indígena: da educação
diferenciada às universidades. Nós não temos ilusões quanto ao governo Temer.
Como não as temos quanto ao Congresso Nacional, cada vez mais hostil com a
causa indígena e a causa afro. É um Congresso extremamente conservador e
interessado apenas no capital internacional.
Dom Roque, o senhor confirma que o Congresso
brasileiro é dominado por partidos adversos aos povos indígenas?
Confirmo. No Congresso nacional temos três bancadas
anti-indígenas: a da Bíblia, a da bala e a do boi. Também o poder judiciário
tem uma atitude completamente contrária. Numa palavra, todos os poderes do
Estado mostram uma grande intolerância face aos povos indígenas.
A ilusão do
desenvolvimento
Dom Roque, uma das objeções que se levantam às
políticas indigenistas pode sintetizar-se numa frase: demasiada terra para
poucos indígenas.
É uma objeção infundada. Primeiro, toda a terra do
Brasil era deles. Eles habitavam-na desde há muito tempo. Segundo, os indígenas
têm um usufruto da terra e não a propriedade. Terceiro, é geralmente
reconhecido, também pelo próprio Governo brasileiro, que as terras indígenas
estão mais bem conservadas que as outras. Não mostram a destruição da
Natureza como as outras. Os rios em terra indígena, os que não
foram invadidos pelos garimpeiros, são de água cristalina. Por último, não é
que a terra pertença aos indígenas, são os indígenas que pertencem à terra.
Pertencer à terra em vez de ser seu proprietário é o que caracteriza um
indígena. Esta é a diferença que, à primeira vista, aos nossos olhos parece
incompreensível.
Uma outra objeção diz respeito à necessidade do
desenvolvimento econômico, sobretudo agora que o país passou do milagre
econômico à crise.
O país tem de encontrar o equilíbrio. Todos estes
projetos servem? Nós temos de perguntar-nos que desenvolvimento queremos. Um
desenvolvimento onde poucos têm muito e muitos não têm nada? Ou um
desenvolvimento equilibrado em que haja uma relação correta com o ambiente e a
criação? Esta Casa comum – como a chama o papa – é muito mal administrada. Os povos indígenas são
os que podem ensinar-nos a cuidá-la e a mantê-la. Segundo: com este ritmo de
desenvolvimento não poderá haver recursos para todos. É necessário um percurso
de austeridade, uma vida mais sóbria em vez da atual que prevê o consumo pelo
consumo.
É um fato que na Amazônia se esteja a fazer de
tudo. De modo legal e ilegal.
A Amazônia foi sempre vista como o lugar da
abundância. Por Portugal primeiro, pelo Brasil depois, mas não pelos povos
indígenas. Os seus recursos estiveram ao serviço do capital, nacional e
internacional. Os projetos caem de cima e não respeitam os modos de viver dos
que ali vivem desde sempre. Por outras palavras, são pensados para servir os
grandes interesses e não certamente os povos amazônicos.
O CIMI é muitas vezes acusado de fazer política.
Como são as suas relações com o poder?
A nossa relação é extremamente discreta. O nosso
trabalho não precisa de presidentes. Nós seguimos o Evangelho.
A Casa comum:
destruidores e defensores
Dom Roque, o que pensa da atitude do Papa Francisco
a respeito dos povos indígenas? E dos erros cometidos no passado pela Igreja
Católica em relação a eles?
Já na Evangelii Gaudium o papa tinha falado dos povos indígenas. Na Laudato Si’ foi mais além escrevendo quase um hino de reconhecimento à
riqueza dos povos indígenas. Quanto ao passado, em vários discursos proferidos
na Bolívia e no México, Francisco reconheceu os pecados cometidos pela
Igreja Católica relativamente a eles. Nós esperamos a sua visita ao Brasil em
2017. Estamos a procurar inserir uma etapa no Pará e em particular na região
do rio Tapajós, onde a construção dos diques – estão previstos pelo
menos 43 – está a pôr em risco a existência de muitos povos, inclusive alguns
ainda incontatados.
Desde sempre os povos indígenas são
apontados como populações retrógradas. O senhor defende que as suas modalidades
de vida podem ensinar muito a nós ocidentais.
Desde há 500 anos que os povos indígenas puseram em
causa a rapina e a violência contra a Mãe Terra, imposta pelo Ocidente com o
seu modelo econômico e de desenvolvimento fortemente destrutivo.
Os povos indígenas podem-nos
ensinar uma relação harmoniosa com o ambiente e a Natureza. Podem-nos ensinar a
viver sem ser escravos do dinheiro e da acumulação.
Dom Roque, como vê o futuro o presidente do CIMI?
A
decisão está nas nossas mãos: ou acolher o grito dos povos indígenas ou
destruir a nossa Casa comum em nome do lucro e do bem-estar de poucos.
Fonte: IHU - Adital
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