O artigo de Leonardo Boff A falta de vergonha e a ausência de culpa na corrupção brasileira oferece uma ótima reflexão sobre algumas
caraterísticas nada gloriosas da sociedade brasileira. É um artigo bem atual e útil, principalmente nos dias de hoje, quando perplexos diariamente
assistimos ao vivo (!) - transmitido por grande mídia, tampouco
isenta de imparcialidade - ao absurdo e escandaloso “espetáculo” da
grande parte da classe política e empresarial corrupta brasileira... Mais ainda, quando constatamos que participam desse
indecente ‘show’ todas as instituiçãos
dos Três Poderes.
Por que isso existe? Quais são as causas? Como entender essa “falta de
vergonha” dos corruptos e corruptores e, muitas vezes, sua absoluta falta de
sentimento de culpa? – Essas são algumas das indagações analisadas no artigo
pelo autor.
Aproveito este momento para parabenizar Leonardo Boff por mais essa
importante contribuição, e por considerar este texto muito oportuno para uma
objetiva reflexão que a sociedade brasileira precisa fazer, para contribuir um pouco na sua divulgação - trago-o também para
o blog Indagações-Zapytania.
O artigo foi publicado pelo autor no seu blog leonardoBOFF.com, no
ano passado (em julho de 2016).
Vale a pena ler e refletir.
WCejnóg
Blog leonardoBOFF.com
22/07/2016
A falta de vergonha e a ausência de culpa na
corrupção brasileira.
Depois que surgiu a
psicanálise e o estruturalismo não podemos mais nos restringir ao consciente e
aos ditames da razão na análise dos fenômenos humanos, pessoais e coletivos. Há
um universo pré-consciente, sub-consciente e inconsciente (pessoal e coletivo),
subjacente a nossas práticas, a serem considerados.
Quero me ater apenas a
duas vertentes que influenciam nossos comportamentos: são os legados das duas
principais culturas ancestrais que subjazem no nosso inconsciente coletivo e que nos
ajudam a entender fenômenos atuais, como por exemplo, a tresloucada corrupção que atravessa o corpo
social brasileiro: a cultura grega e a cultura judaico-cristã.
Da cultura grega
herdamos o sentimento de vergonha. O conceito correlato é a do herói. Ter
vergonha para os gregos consistia em se frustrar em qualquer empreendimento
como na guerra e na convivência social. Perder uma batalha constituía uma
vergonha coletiva para todo um povo. Perder numa competição nas Olimpíadas provocava
vergonha. Triunfar e ser bem sucedido preenchia os requisitos do herói.
Hoje esta categoria está
presente em nossa sociedade. É um herói o jogador que conseguiu o gol da
vitória do time de sua predileção. Vergonha coletiva é o Brasil perder de 7x1 na Copa Mundial de
futebol contra a Alemanha.
Conseguir altos índices de crescimento e de lucro de uma empresa faz do
empresário um herói. Perder uma eleição produz vergonha. A vergonha tem a ver
com a imagem que projetamos socialmente. Ela tem que causar admiração e
respeito. Caso contrário faz as pessoas se envergonharem.
A outra vertente é
constituída pela tradição judaico-cristã. A categoria central é a culpa.
Geralmente colocamos a culpa nos outros. Se fracassamos num negócio, é por culpa
da crise econômica. Se
o matrimônio se desfez
é por culpa de um dos parceiros. Se há uma desgraça ecológica é por culpa dos moradores que se
instalaram em áreas de risco. Às vezes, colocamos a culpa em nós mesmos por um
acidente de tráfico ou por erros que produzem uma ruinosa administração.
A culpa atinge a
interioridade e afeta a consciência. A repercução não é tanto diante dos outros
que talvez nem saibam de nosso malfeito, mas diante do tribunal da consciência.
Esta nos remete logo a Deus, pois entre a consciencia e Deus não há mediação.
Estamos direta e imediatamente diante dele.
A culpa nos causa
remorsos e o sentimento de culpa que pode produzir uma punição. O oposto à
culpa é o sentimento de ser justo e reto, dois conceitos definidores de uma
pessoa “justa” (santa) no sentido bíblico.
Sentir vergonha e dar-se
conta da culpa constituem as bases de uma consciência ética. Não precisar se
envergonhar diante dos outros e não se sentir culpado diante da consciência e
de Deus são sinais de retidão de vida e de uma atitude ética correta.
Qual é o nosso problema
concernente à escandalosa corrupção passiva
e ativa no Brasil? É a
acabada falta de vergonha e a completa ausência de culpa dos corruptos e
corruptores diante de seus malfeitos.
Mesmo surpreendidos no
ato de corrupção, ouvimos
sempre o mesmo ritornello: “não sou culpado de nada”, “sou injustiçado”, “sou
completamente inocente”. E trata-se de pessoas notoria e comprovadamente
corruptas. Perderam a noção total de culpa e não dão nenhuma importância à
vergonha pública de seus atos. Seguem desfilando, tranquilos e a frequentar os
melhores restaurantes.
Raramente ouve-se a
indignação ética com os gritos de “corrupto, ladrão”. Mas os corruptos nem se
incomodam e continuam no seu desfrute.
Já Aristótles na sua Ética a
Nicômano estabelecia a vergonha e o rubor do rosto como um indicativo da
presença de uma consciencia ética. Sem essa vergonha, a pessoa era realmente um
“sem vergonha”, um mau caráter, sem sentido dos valores.
Essa falta de vergonha e
de sentimento de culpa se transformou, entre nós no Brasil, numa especial de
segunda natureza, tornada uma prática usual. Por isso, quase todo o tecido
social é contaminado pelo virus da
corrupção, dos corruptores e dos corrompidos.
Mas ela chegou nos dias
atuais a níveis tão escandalosos que não podem mais ser tolerados pela
sociedade e pelos cidadãos que ainda guardam uma consciência ética, do que é
reto e correto, justo e bom.
A corrupção como prática pessoal e social,
sem sermos moralistas e utópicos, tem que ser banida e reduzida a níveis
compatíveis com a condição humana decaída e corruptível. Há que se resgatar o
sentimento de vergonha e de culpa, sem o que nossos esforços serão inócuos.
Fonte:
blog leonardoBOFF.com
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