Hoje
trago para o blog Indagações-Zapytania mais um artigo muito interessante sobre a situação econômica do Brasil e sobre a
crise atual. É um excelente texto de Ladislau Dowbor e seria muito bom se
pudesse ser lido e analisado por toda a sociedade, sobretudo pelos brasileiros
e brasileiras que realmente torcem pelo bem deste lindo e grande país.
Para
contribuir pelo menos um pouquinho para a divulgação desse artigo, publico-o
também no meu blog.
Não
deixe de ler!
ECONOMIA
Onde foi parar o nosso dinheiro?
Não há
nenhuma razão técnica para esta catástrofe em câmara lenta. Produzimos o
suficiente para todos, cerca de R$ 11 mil de bens e serviços por mês por
família de quatro pessoas, número que vale tanto para o mundo como para o
Brasil: estamos exatamente na média mundial
por:
Ladislau Dowbor
3 de
maio de 2017
Crédito
da Imagem: Alpino
Por desgraça, em economia a gente tem de fazer as contas. E no Brasil
recente as contas não batem. As pessoas tendem a ter certa alergia aos números.
Mas não há como entender as pragas que nos assolam sem se dar conta dos
números. Francamente, eles não são complicados, apenas a escala é maior. Temos
de contar em bilhões quando em casa contamos em milhares.
Para já, não estamos sozinhos na desgraça. É só olhar o que acontece nos
Estados Unidos. Michael Moore resume de maneira genial: “É a equação
norte-americana. Desinforme a população e torne-a ignorante e estúpida. A
ignorância leva ao medo, o medo leva ao ódio. Trump conhecia muito bem essa
parte da equação. E o ódio leva à violência” (Guardian, 21 abr. 2017). Estamos
falando da erosão geral da governança. É só olhar o caos gerado no Brasil, na
Argentina, na Venezuela, na Turquia, na França, na África, no Oriente Médio,
nas Filipinas. Ressurgem atitudes que achávamos enterradas na Idade Média. O
mundo volta a se cobrir de muros e arames farpados.
No centro dos desafios estão duas macrotendências que formatam a nossa
sociedade. No plano do meio ambiente, estamos destruindo literalmente a vida no
planeta. O aquecimento global, a contaminação das águas, a destruição da
cobertura florestal, a liquidação das espécies – perdemos 52% da fauna do planeta
em apenas quarenta anos, entre 1970 e 2010 (WWF, 2016). Estamos indo ladeira
abaixo em ritmo vertiginoso, com mais tecnologias descontroladas e 7,4 bilhões
de habitantes tentando agarrar o que podem no quadro do caos que temos chamado
educadamente de “mercados”.
A segunda tendência estruturante é obviamente a desigualdade. No
planeta, oito famílias dispõem de mais riqueza do que a metade mais pobre da
população mundial, e o 1% mais rico tem mais do que os 99% restantes. Não há
economia que possa funcionar assim. Os 28 maiores grupos financeiros do mundo
manejam em média US$ 1,8 trilhão. O Brasil, sétima potência econômica mundial,
tem um PIB de US$ 1,7 trilhão. O poder efetivo, que detém a autoridade sobre a
alocação dos nossos recursos, simplesmente se deslocou, e com isso se desloca a
capacidade de resgatar o controle e restaurar os equilíbrios. Não é apenas uma
questão de justiça social: a própria economia deixa de funcionar. Desde a crise
de 2008, o mundo vive no marasmo.
Não há nenhuma razão técnica para esta catástrofe em câmara lenta.
Produzimos o suficiente para todos, cerca de R$ 11 mil de bens e serviços por
mês por família de quatro pessoas, número que vale tanto para o mundo como para
o Brasil: estamos exatamente na média mundial. Temos todos os estudos
necessários e propostas sistematizadas sobre o que fazer e como, desde a Agenda
2030 aprovada em Nova York até as medidas ambientais aprovadas em Paris.
Sabemos o que fazer e quanto custa tanto para enfrentar a mudança climática
como para assegurar o acesso a um rendimento mínimo digno para todos e a
inclusão produtiva. O que se perdeu foi a capacidade de colocar em prática as
políticas, ou seja, a governança do processo, a própria capacidade de decidir
sobre o processo decisório. Nosso problema não é econômico, é político.
Para onde migrou o poder? Essencialmente para os grandes grupos de
intermediação financeira. Como escreve Joseph Stiglitz na sua proposta de
“reescrever as regras”, “conforme a desigualdade aumenta, o sistema político se
torna crescentemente atropelado (over-run) pelos interesses corporativos, e as
políticas públicas requeridas para assegurar uma real igualdade de
oportunidades tornam-se cada vez mais difíceis de implementar”.1 Ou seja, o
problema não é político no sentido de que apenas elegemos a pessoa ou o partido
errados, mas no sentido de que o processo decisório se tornou disfuncional.
Temos uma economia globalizada e uma política fragmentada em duzentos
governos nacionais. Temos tecnologias impressionantes e um sistema de patentes,
copyrights e royalties que trava o acesso ou as torna inoperantes. Temos, em
particular, um sistema financeiro global, as famosas Sifis (Systemically
Important Financial Institutions), que não prestam mais contas a ninguém. E
manejam o acesso aos recursos necessários para viabilizar as novas políticas
ambientais e sociais, e para financiar, inclusive, as atividades
produtivas.
Esse último aspecto é essencial. O sistema financeiro não só trava as
iniciativas necessárias para assegurar os equilíbrios ambientais e sociais,
como também drena os recursos das empresas efetivamente produtoras de bens e
serviços que geram empregos. A revista The Economist, na sua edição prospectiva
para 2017, constata que “a taxa de distribuição dos dividendos subiu de menos
de 40% em 2011 para mais de 70% em 2016. Em consequência, não é surpreendente
neste contexto que a parte do investimento industrial relativa ao PIB tenha
continuado a se reduzir. As empresas buscam transferir os fundos para seus
acionistas em vez de reinvesti-los em suas operações. Assim, não é a liquidez
que faz falta para investir. Estima-se que as empresas entesouraram mais de US$
7 trilhões em liquidez no mundo – uma forma de inércia que vai se perpetuar em
2017 e para além”.2 Em outros termos: o capital financeiro drena o produtivo.
Generaliza-se o capitalismo improdutivo no planeta. O rentismo não é só
brasileiro. Voltamos ao século retrasado, em que as “famílias de bem” viviam de
rendas.
Como passamos de um capitalismo em que a remuneração e a fortuna
mantinham certa proporcionalidade com a contribuição produtiva para o presente
sistema, que, em vez de remunerar produtores, remunera rentistas? Em poucas
décadas, essencialmente desde os anos 1980, a parte dos intermediários
financeiros no lucro corporativo norte-americano subiu de 10% para 42%. Epstein
e Montecino, do Roosevelt Institute, fizeram as contas e constataram que o
sistema financeiro, no seu conjunto, hoje mais drena a economia em vez de
financiar suas atividades. Ou seja, não é apenas improdutivo; ele tem uma
contribuição líquida negativa para a economia.
“Um sistema financeiro saudável é aquele que canaliza recursos
financeiros para investimento produtivo; ajuda as famílias a poupar para poder
financiar grandes despesas, como educação superior e aposentadorias; fornece
produtos como seguros para ajudar a reduzir riscos; cria suficiente quantidade
de liquidez útil; gera um mecanismo eficiente de pagamentos e inovações
financeiras para fazer todas essas coisas úteis de forma mais barata e efetiva.
Todas essas funções são cruciais para uma economia de mercado estável e
produtiva. Mas, depois de décadas de desregulação, o sistema financeiro atual
dos Estados Unidos tornou-se altamente especulativo, falhando de maneira
bastante espetacular em realizar essas tarefas críticas.”3
O conceito de custo líquido do sistema financeiro é muito útil, pois
envolve a questão da produtividade sistêmica das finanças de um país. Para o
Brasil, considerando os custos da crise iniciada em 2013, da qual o sistema
financeiro foi a causa principal, poderíamos igualmente calcular o custo
sistêmico. No caso norte-americano, os autores consideram que “precisamos
incorporar os custos das crises financeiras associadas com a especulação
excessiva e as atividades econômicas destrutivas, que são agora bem
compreendidas, no sentido de terem sido essenciais na crise econômica recente”.
O capitalismo financeiro atual mudou as regras do jogo e deslocou o
centro do poder. O fato de bancos e economistas do mercado utilizarem o
conceito de “investimento” tanto para compra de papéis financeiros como para
investimento produtivo dificulta a compreensão. Em inglês se distingue
claramente o mecanismo produtivo que gera a renda (income) e a aplicação
financeira improdutiva que gera “renta” (rent). Em francês é igualmente clara a
diferença de revenu e rente, respectivamente. De forma mais explícita, na
literatura inglesa utiliza-se o conceito de unearned income, rendimento
auferido não por contribuição produtiva, mas por apropriação do trabalho dos
outros. Muitos (como Michael Hudson) já utilizam o conceito de capitalismo
parasitário. A diferença é que nos Estados Unidos se reconhece o papel dos
bancos na crise de 2008 e no marasmo que continua, enquanto aqui se atribui a
crise atual ao ridículo déficit fiscal, de menos de 2% do PIB.
Qualquer que seja o nome, vale a pena ver como essa deformação se
manifesta no Brasil e como travou a economia. Em termos resumidos, a economia,
para funcionar, depende de quatro motores: as exportações, a demanda das
famílias, o investimento e a produção empresariais, e o investimento público em
infraestruturas e políticas sociais.
No Brasil, as exportações não constituem nem de longe o principal motor.
Os cerca de US$ 185 bilhões de exportações, representando como ordem de
grandeza R$ 600 bilhões, mal chegam a 10% do PIB. Não somos como alguns países
asiáticos onde o motor do comércio externo é essencial. Com uma população de
204 milhões habitantes e um PIB de R$ 6 trilhões, somos uma economia vinculada
ao mercado interno. Se as dinâmicas internas não funcionam, o setor externo
pouco poderá resolver. E, na fase atual de marasmo mundial, o setor externo não
é alternativa.
A dinâmica principal tem de vir da demanda das famílias e das atividades
empresariais. Aqui, o volume de recursos extraídos da economia por meio dos
juros é absolutamente escandaloso e sem paralelo no mundo. Segundo o Banco
Central, em janeiro de 2017 o montante de crédito em mãos de pessoas físicas e
de pessoas jurídicas, ou seja, o estoque de dívidas das famílias e das
empresas, era de R$ 3,1 trilhões, o que representa uma relação crédito sobre
PIB de 48,7%. O montante da dívida não é particularmente elevado em comparação
com outros países onde frequentemente ultrapassa os 100% do PIB. O escândalo
está nos juros.
Fazendo a média entre os diversos tipos de crédito, o Banco Central
apresenta o juro médio de 32,8%. Ou seja, o juro extraído do estoque de R$ 3,1
trilhões de dívida é de R$ 1 trilhão por ano. Trata-se do montante que famílias
e empresas pagam aos intermediários financeiros e que deixa de se transformar
em consumo das famílias ou em investimento pelo setor privado da economia. Isso
representa 16% do PIB, valor apropriado pelo próprio sistema de intermediação
financeira. Os 32,8% que cobra o sistema financeiro no Brasil podem ser
comparados com a zona do euro, onde os juros se situam essencialmente entre 2%
e 4% ao ano. Reitero: ao ano. E os bancos na Europa vão bem, obrigado.
Particularmente importante são os cerca de R$ 800 bilhões que as famílias
utilizaram de crédito livre em 2016, tipicamente para compras a prazo, pagando
juros de 73%: são R$ 500 bilhões de capacidade de compra imobilizados em juros,
8,3% do PIB que passam para os intermediários financeiros em vez de serem
utilizados para compras. Estranguladas pelos juros, as famílias não só param de
comprar, mas também utilizam a liberação do FGTS para pagar juros, mais
recursos apropriados por intermediários financeiros.
O dreno sobre a capacidade de compra das famílias tem efeito direto
sobre as empresas, que não têm para quem vender. O resultado é um efeito em
cadeia: diminuem a produção, cortam investimentos, reduzem o emprego, o que
encurta ainda mais a demanda das famílias. Além disso, como as empresas, no
crédito livre, pagam 29% de juros (ordem de grandeza de 2% ao ano na Europa),
elas não têm como recorrer aos bancos para atravessar a crise. E finalmente têm
a opção de deixar de lado a produção de bens e serviços para colocar seu
dinheiro em títulos da dívida pública, que rendem ao mês o que no resto do
mundo rendem ao ano. As atividades empresariais produtoras de bens e serviços
entram em crise de vez.4
O quarto motor da economia, o investimento público em infraestruturas e
em políticas sociais, foi igualmente travado pelos elevados juros (Selic) sobre
a dívida pública. Em 2015 foram R$ 400 bilhões pagos em juros, 7% do PIB,
montante que poderia ter se transformado em dinamização da economia, mas foi
apropriado essencialmente por intermediários financeiros. Somando os 16%
tirados das famílias e das empresas e os 7% tirados dos nossos impostos, temos
um dreno de 23%. Que parte disso volta para a economia real? Não temos esse
número aqui. Nos Estados Unidos, a estimativa é que o dinheiro passa a rodar
essencialmente na ciranda financeira, porque as aplicações financeiras rendem
mais do que os investimentos produtivos. O sistema fica sistemicamente
disfuncional. Viva o rentismo.
O prego no caixão vem do sistema tributário. No Brasil, 56% dos tributos
consistem em impostos indiretos, embutidos nos produtos, o que significa que a
progressividade dos impostos é liquidada. Somadas a fragilidade do imposto
sobre lucros e dividendos, a evasão de impostos, que atingiu R$ 571 bilhões em
2015, e a sólida presença brasileira em paraísos fiscais, temos um estoque
acumulado de US$ 520 bilhões, segundo o Tax Justice Network. A conclusão é
óbvia: o sistema está travado não pelo ridículo déficit gerado pelas políticas
públicas, e sim pelo conjunto de drenos que o sistema financeiro gerou no
país.5 Bem-vindo ao capitalismo improdutivo.
*Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de
Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017}
________________
1 Joseph Stiglitz, Rewriting the Rules of the American Economy. An
Agenda for Growth and Shared Prosperity [Reescrevendo as regras da economia
norte-americana. Uma agenda para crescimento e prosperidade compartilhada],
Nova York, 2016, p.178.
2 The Economist, edição francesa, “Le monde en 2017”, p.51.
3 Gerald Epstein e Juan Antonio Montecino, Overcharged: the high cost of
high finance [Sobrecarregado: o alto custo da alta finança], The Roosevelt
Institute, jul. 2016, p.1 e 16. Disponível em:
<http://rooseveltinstitute.org/overcharged-high-cost-high-finance/>.
4 Os dados detalhados e a tabela original do Banco Central podem ser
encontrados em <http://dowbor.org/2017/03/o-escandalo-dos-juros.html/>;
ver também a manchete da edição dominical de O Estado de S. Paulo de 18 de
dezembro de 2016: “Crise de crédito tira R$ 1 trilhão da economia e piora
recessão”.
5 Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz),
Sonegação no Brasil. Uma estimativa do desvio da arrecadação do exercício de
2016, Brasília, mar. 2017, p.27.
Nenhum comentário:
Postar um comentário