Acho muito interessante e oportuno o artigo “A
violência econômica: o poder dos juros e das corporações financeiras”, do economista e professor da
PUC-SP Ladislau Dowbor e por isso trago-o também para o blog Indagações-Zapytania. Com isso espero contribuir pelo menos um pouco para
a sua divulgação.
O
texto ajuda a entender como funciona o sistema econômico dominante no Brasil e
mostra o seu lado opressivo e desumano, que se impõe violentamente a todo o
povo brasileiro. Até quando será assim? – eis a indagação.
O
artigo foi publicado neste mês na revista eletrônica Com Ciência.
Vale a pena ler!
WCejnóg
9 de outubro
Por Ladislau Dowbor
A violência econômica: o poder dos juros e das corporações
financeiras
É estranho constatar que em
todo o ciclo escolar, inclusive nas universidades, a não ser na área
especializada em economia financeira, ninguém nunca teve uma aula sobre como
funciona o dinheiro, principal força estruturante da nossa sociedade. A
população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação
‘cabe no bolso’ (mas pesa no bolso durante muito tempo). O efeito demanda é travado. Quando 61 milhões de adultos
no Brasil estão com o nome sujo no sistema de crédito, é o sistema que está
deformado.
A economia teoricamente visa o bem-estar das famílias, por meio da
prosperidade que uma economia bem gerida deve permitir. Isto não significa
apenas acesso à renda, mas uma certa estabilidade e sentimento de segurança,
sem nuvens negras no horizonte, ou a angústia do emprego perdido. E se trata
também de assegurar que o que conseguimos hoje não seja às custas das gerações
futuras. Em suma, trata-se do equilíbrio entre o econômico, o social e o
ambiental.
Não nos faltam, no Brasil, recursos
para isso. Hoje o país produz cerca de 11 mil reais de bens e serviços por mês
por família de 4 pessoas, o que deveria permitir que todos vivam de maneira
digna e confortável. Quando constatamos, no entanto, que 6 pessoas têm mais
patrimônio do que a metade mais pobre da população, e que os 5% mais ricos têm
mais do que os 95% restantes, conforme dados recentes publicados pela Oxfam, só
podemos ficar chocados com a aberração econômica que vivemos. Acrescentemos a
isso a destruição ambiental, com a agressão à floresta amazônica, poluição dos
cursos de água, contaminação dos lençóis freáticos e até dos nossos alimentos
com agrotóxicos e antibióticos, além da congestão das cidades por falta de
transporte de massa, e temos uma ampla conta negativa. Não é a falta de
recursos que assola o país, é a falta de governança competente e o consequente
descontrole geral.
Tudo isso em nome da economia, de
assegurar uma misteriosa “confiança” dos mercados. Confiança dos ricos de que
irão ganhar o suficiente com aplicações financeiras, sem precisar se dar ao
trabalho de investir na produção. A realidade é que os chamados mercados,
constituídos essencialmente por grandes corporações financeiras, não só não
respeitam as exigências ambientais nem as necessidades sociais, como sequer se
mostram capazes de administrar a economia. O tripé básico do desenvolvimento,
que precisa ser economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente
sustentável, está grosseiramente deturpado. E quem sofre com isso são
justamente as famílias.
Não é por falta de saber o que deve
ser feito, o que funciona. Quando os Estados Unidos mergulharam na crise em
1929, nenhuma iniciativa de “austeridade” funcionou. O país se recuperou
através do New Deal, um novo pacto social, em que os impostos sobre as fortunas
improdutivas foram radicalmente aumentados, ao mesmo tempo que o governo,
usando a sua capacidade de financiamento, inclusive emitindo moeda, generalizou
investimentos locais em infraestruturas e processos redistributivos, o que
devolveu ao andar de baixo da economia a capacidade de compra. Isso dinamizou
as empresas que voltaram a produzir e não gerou inflação pois as empresas
estavam com estoques acumulados e capacidade ociosa. A expansão do consumo das
famílias e a retomada de atividades das empresas geraram um fluxo de impostos
que cobriu com as receitas ampliadas o déficit inicial do governo, fechando a
conta. Gerou-se um círculo virtuoso de expansão da economia. A direita, como é
de praxe, desancava Roosevelt na imprensa, ridicularizando os “varredores de
folhas” do presidente, e tentou inclusive um golpe de estado em 1938.
Isso funcionou nos EUA dos anos 1930,
mas funcionou também na Europa durante os “trinta anos de ouro” de 1945 a 1975,
com amplos processos redistributivos, tanto diretamente por meio de aumentos
salariais como indiretamente por meio do acesso gratuito e universal à saúde,
educação e semelhantes. A prosperidade do andar de baixo da sociedade gerou um
capitalismo funcionando “com base ampla” da pirâmide, que permitia que os
aumentos de produtividade também encontrassem a demanda popular correspondente.
E a dinâmica econômica estabilizou as contas públicas pelos impostos gerados,
repassados à população por meio de investimentos em infraestruturas (em
particular de transportes) e políticas sociais.
Nos EUA foi o New Deal, na Europa foi
o Welfare State, Estado de bem-estar, mas o princípio é o mesmo. Trata-se de
orientar a economia não segundo a rentabilidade financeira dos especuladores e
sim segundo as necessidades da população. E não esqueçamos a China, que
organiza o fluxo de financiamento para atividades produtivas: do bilhão de
pessoas que superaram a linha de pobreza no mundo, o Banco Mundial mostra que
700 milhões são chinesas.
Funciona hoje na Alemanha, e até com
a “geringonça” em Portugal [“geringonça” é o curioso nome com que se batizou o
acordo de 2015 que formou o governo do Partido Socialista (PS) com apoio parlamentar
do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português (PCP)]. Aqui não há
grandes debates entre economistas ortodoxos ou heterodoxos e semelhantes, há
simples bom senso.
O Brasil seguiu essa linha entre 2003
e 2013, uma década que o mesmo Banco Mundial, em balanço recente sobre a
economia brasileira, qualificou de Golden Decade, década
dourada do país. Sim, o Banco Mundial. Não ver os resultados de se investir na
base da pirâmide é falta de elementar bom senso e excesso de preconceito. Já
afirmar que esta política gerou déficit fiscal ou que “quebrou o país”
constitui desinformação ou má-fé.
Como foi que se travou esse processo
no Brasil? A partir de 2013 o processo entrou em crise. A realidade é que os
bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a
drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia,
esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de
crescimento que se inicia em 2003.
Trata-se nada menos do que da
esterilização dos recursos do país através do sistema de intermediação
financeira, que drena em volumes impressionantes recursos que deveriam servir
ao fomento produtivo e ao desenvolvimento econômico. Os números são bastante
claros, e conhecidos, e basta juntá-los para entender o impacto. Em raro
momento de clareza, o jornal O
Estado de S. Paulo de
18 de dezembro de 2016 ostentou essa enorme manchete de primeira página
dominical: “Crise de crédito tira R$ 1 tri da economia e piora recessão”. Ou
seja, 15% do PIB drenados pelos intermediários financeiros. Mais 7% do PIB
tirados por meio dos juros sobre a dívida pública, e temos a fórmula do
desastre.
E com liberdade total dos bancos,
conforme ressalta o relatório da Anefac (Associação Nacional dos Executivos de
Finanças, Administração e Contabilidade): “Destacamos que as taxas de juros são
livres e as mesmas são estipuladas pela própria instituição financeira, não
existindo assim qualquer controle de preços ou tetos pelos valores cobrados”.
Lembremos que o artigo 192 da Constituição, que regulamentava o sistema
financeiro nacional, foi revogado por um Congresso eleito com o dinheiro das
corporações – uma prática que o Supremo Tribunal Federal levou 18 anos para
declarar inconstitucional. [A norma do § 3º do art. 192 da Constituição,
revogada pela emenda constitucional 40, de 2003, limitava a taxa de juros reais
a 12% ao ano: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer
outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito,
não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste
limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas
modalidades, nos termos que a lei determinar”].
De acordo com os dados do Banco
Central, em março de 2005 a dívida das famílias equivalia a 19,3% da renda
familiar. Em março de 2015, a dívida acumulada representava 46,5% da renda.
Esse grau de endividamento, em termos de estoque da dívida, é inferior ao de
muitas economias desenvolvidas. Mas nelas se paga juros da ordem de 2% a 5% ao
ano. Com os juros aqui praticados, as famílias deixaram evidentemente de poder
expandir o seu consumo, e a sua capacidade de compra foi apropriada pelos
intermediários financeiros.
A demanda foi travada pelos altos
juros para pessoa física, e isso trava a economia no seu conjunto. Em agosto de
2017, 61 milhões de adultos, cerca de 40% do total, estão “negativados”, ou
seja, sequer conseguem pagar compras anteriores, que dirá expandir o consumo.
Não é o imposto que é o principal
vilão, ainda que o peso dominante dos impostos indiretos e a isenção fiscal de
lucros e dividendos só piore a situação: é o desvio da capacidade de compra
para o pagamento de juros. As famílias estavam gastando muito mais, resultado
do nível elevado de emprego e da elevação do poder aquisitivo da base da
sociedade, mas os juros esterilizaram a capacidade de dinamização da economia
pela demanda que esses gastos poderiam representar. O principal vetor de
dinamização da economia viu-se travado. Gerou-se uma economia de atravessadores
financeiros. Prejudicam-se as famílias que precisam dos bens e serviços, e
indiretamente as empresas efetivamente produtoras que têm os seus estoques
parados. Perde-se boa parte do impacto de dinamização econômica das políticas
redistributivas.
Alguns exemplos ajudam a entender a
dinâmica. O crediário cobra, por exemplo, 141,12% para “artigos do lar”
comprados a prazo. Quem se enforca com esse nível de juros e recorre ao cheque
especial (mais de 300%) apenas se afunda na dívida acumulada, e se entra no rotativo
do cartão, da ordem de 450%, acaba de amarrar o nó no pescoço. Note-se que os juros sobre o cheque
especial e o rotativo no cartão não ultrapassam 20% ao ano nos países
desenvolvidos. Temos nesse caso grande parte da capacidade de compra dos
novos consumidores drenada para intermediários financeiros, esterilizando a
dinamização da economia pelo lado da demanda.
No caso de uma pessoa buscar o
crédito no banco, o juro para pessoa física, em que pese o crédito consignado,
que na faixa de 25% a 30% ainda é escorchante, mas utilizado em menos de um
quarto dos créditos, é da ordem de 68%. Na França os custos correspondentes se
situam na faixa de 3,5% ao ano.
As pessoas que, mais conscientes ou
dispondo de mais recursos, compram à vista no cartão, ignoram em geral que na
modalidade “crédito” de uma compra de 100 reais, 5% do que pagam vão para os
bancos, e na modalidade “débito” cerca de 2,5%. A CPMF era de 0,38% e provocou
uma avalanche de críticas. Na compra à vista pagando com cartão na modalidade
“crédito” o banco desconta 5 reais sobre uma compra de 100 reais, quando o
custo da operação (gestão dos cartões) mal chega a 10 centavos. Um custo
benefício de 50 por 1. Com milhões de operações de pagamento à vista no cartão
efetuadas todo dia, todas as atividades econômicas se tornam mais caras para o
consumidor. É um dreno imenso sobre toda
a economia.
É preciso acrescentar aqui que muitos
dos novos compradores a prazo tinham pouca experiência de crédito. Uma prática particularmente nefasta é o fato de os intermediários, e hoje
inclusive os bancos, apresentarem o juro ao mês, e não ao ano, o que esconde o
mecanismo de juros compostos. Uma pessoa sem formação na área pensará que
um juro de 6% ao mês é três vezes maior do que um juro de 2% ao mês. Juros de
6% ao mês representam cerca de 100% ao ano, quando juros de 2% ao mês
representam 26% ao ano. Três vezes 26 são 78%. O comprador vai fazer esses
cálculos de cabeça?
Na realidade, é até estranho
constatar que em todo o ciclo escolar, e inclusive nas universidades, a não ser
na área especializada em economia financeira, ninguém nunca teve uma aula sobre
como funciona o dinheiro, principal força estruturante da nossa sociedade. Não
à toa Stiglitz obteve o seu Nobel de economia [em 2001] com trabalhos sobre
assimetria de informação nos processos econômicos.
O resultado é que a população se
endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação “que cabe no
bolso” pesa no orçamento familiar durante muito tempo. O efeito demanda é
travado. Quando 61 milhões de adultos no Brasil estão com o nome sujo no
sistema de crédito, é o sistema que está deformado. O brasileiro trabalha
muito, mas os resultados são desviados das atividades produtivas para a chamada
ciranda financeira, que não reinveste na economia real. Não se pode ter o bolo
e comê-lo ao mesmo tempo. O principal motor da economia, a demanda das
famílias, é travado.
A verdade é que o Brasil tem no seu
amplo mercado interno uma gigantesca oportunidade de expansão. Em termos
econômicos, é o que funciona. E o crédito tem de se colocar a serviço da
dinamização do consumo de massa.
Na fase inicial da crise no Brasil,
gerada em grande parte pelo próprio sistema financeiro, tornou-se moda repetir
que esse estímulo à economia através do consumo de massas se esgotou, como se o
pouco que o andar de baixo do país pôde avançar fosse um teto. Nada como dar
uma volta em bairro popular, ou consultar as estatísticas no Data Popular, que
estuda esse comportamento de consumo, para se dar conta da idiotice que o
argumento representa.
A massa da população tem muito nível
quantitativo e qualitativo de consumo a atingir, tanto em termos de consumo “de
bolso” a partir da renda disponível, como do consumo coletivo com mais acesso à
educação, saúde e outros bens públicos de acesso universal.
A crise? Ora, a crise… Entre 2012 e
2013 o governo tinha se dado conta que o atolamento em dívidas tanto da
população, como das empresas e do próprio Estado – que perdia cerca de 400 bilhões ao ano repassados aos bancos em vez de
servir à população – exigia uma redução radical dos juros. A taxa Selic
baixou para 7,25%, os bancos públicos passaram a emprestar a juros mais baixos
tanto para pessoas físicas como para pessoas jurídicas. Não prestou.
Enfrentar o sistema financeiro, tanto
o poder dos bancos como da classe média alta que se acostumara a ganhar com
aplicações financeiras mais do que com a produção, foi textualmente crítico. A
partir de meados de 2013 não há mais governo no Brasil, há gritaria, boicote,
caos político. Os juros voltaram a subir, veio o impeachment, e veio a crise. E
quem gerou a crise está dizendo que veio para consertá-la. Há três anos estamos
esperando. Quem pagou o pato simbólico, naturalmente, foram e continuam sendo
as famílias. A grande massa da população.
___________
Ladislau
Dowbor é economista, professor da PUC-SP e consultor de várias agências da ONU.
Os seus trabalhos estão disponíveis na íntegra em http://dowbor.org – A presente nota faz parte de
ampla pesquisa sobre o capital improdutivo e as novas arquiteturas do poder,
veja
Fonte:
Revista eletrônica Com Ciência
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