Hoje trago para o blog Indagações-Zapytania uma
entrevista muito interessante com o cineasta inglês Ken Loach,
diretor do filme “Eu, Daniel Blake”.
Penso que hoje, mais do que nunca, precisamos deste
tipo de opinião (que, na verdade, é uma grande e valiosa "provocação" para o ser
humano contemporâneo) para questionar os nossos pensamentos acomodados
e medíocres em relação aos rumos traçados pelo mundo em que vivemos.
A entrevista foi
concedida ao jornal El País em Janeiro deste ano, mas ao meu ver continua atual, além de ser um
convite para assistir o filme “Eu, Daniel Blake”.
Realmente vale a pena ler, analisar as respostas e tirar as suas próprias conclusões.
WCejnóg
Londres, 05 jan 2017.
Ken Loach / cineasta
“O Estado
cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua”
Aos 80 anos,
cineasta inglês estreia ‘Eu, Daniel Blake’, o filme que lhe rendeu a segunda
Palma de Ouro
(DAVE J HOGAN DAVE J HOGAN/GETTY IMAGES)
Londres
5 Jan 2017.
O filme Eu, Daniel Blake, que
estreia nesta quinta-feira nos cinemas do Brasil, é a história de um homem bom
abandonado por um sistema mau. Um trabalhador honrado sofre um ataque do
coração que o condena ao repouso. Sem renda, solicita apoio do Estado e se vê
enroscado em uma cruel espiral burocrática. Esperas absurdas ao telefone,
entrevistas humilhantes, formulários estúpidos, funcionários desprovidos de
empatia por causa do sistema. Kafka nos anos de austeridade. Nessa espiral
desumanizadora Daniel encontra Katie, mãe solteira de dois filhos, obrigada a
se mudar para Newcastle porque o sistema diz que não há lugar para alojá-los em
Londres, uma cidade com 10.000 moradias vazias. Daniel se torna um pai para
Katie e um avô para as crianças. A humanidade que demonstram realça a
indignidade do monstro que os condena. Aí está, como terão reconhecido seus
fiéis, o toque de Ken Loach.
Seu cinema sempre esteve do lado dos menos favorecidos e, aos
80 anos, a realidade continua lhe dando argumentos para permanecer atrás das
câmeras. Eu,
Daniel Blake, Palma de Ouro no último festival de Cannes (a
segunda de Loach), é um filme espartano. Não precisa de piruetas para comover.
A história foi escrita pelo amigo e roteirista Paul Laverty, depois de
percorrer bancos de alimentos, centros de emprego e outros cenários trágicos do
Reino Unido de hoje, onde conheceu muitos daniels e katies. A realidade de
Loach (Nuneaton, 1936) está lá fora para quem quiser vê-la. Mas, em um mundo imune aos dados, a emoção que
o cineasta mobiliza para contar essa realidade se revela mais valiosa que
nunca. Recebe o EL PAÍS em seu escritório no Soho londrino.
Entrevista
Pergunta. Como
chegamos à situação que seu filme descreve?
Resposta. É um
processo inevitável, é a forma como o capitalismo se desenvolveu. As grandes
corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O
Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão
de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo
direito ou chegou tarde a uma entrevista. Montam um sistema burocrático que te
pune por ser pobre. A humilhação é um elemento-chave na pobreza. Rouba a sua dignidade
e a sua autoestima. E o Estado contribui para a humilhação com toda essa
burocracia estúpida.
P. Abandonar
os mais desfavorecidos é uma escolha política?
R. É uma
escolha política nascida das demandas do capital. Se os pobres não aceitassem
que a pobreza é sua culpa, poderia haver um movimento para desafiar o sistema
econômico. Os meios de comunicação falam de gente folgada, de viciados, de
pessoas que têm muitos filhos, que compram televisores grandes… Sempre
encontram histórias para culpar os pobres ou os migrantes. É uma forma de
demonizar a pobreza. Neste inverno, muitas famílias terão de escolher entre
comer e se esquentar. Existe uma determinação da direita para não falar dessas
coisas e é assustador tolerarmos isso.
P. A
situação lembra Cathy
Come Home, seu filme de 1966 sobre uma família jovem que
está na rua. O que mudou em 50 anos?
R. Agora é
pior. Naquela época, os elementos do Estado de bem-estar ainda funcionavam,
agora não. A sociedade, hoje, não está tão coesa. Acontece em toda a Europa. O
sistema se tornou pior porque o processo capitalista avança.
P. As
histórias humanas são seu veículo para articular mensagens políticas?
R. Todas as
histórias humanas são políticas. Têm consequências políticas. Nem Katie nem Dan
são animais políticos. Não fazem discursos, não participam de reuniões. Mas a
situação em que se encontram é determinada pela política. É preciso haver
indivíduos. Não vale alguém que represente algo. Devem ser idiossincrásicos.
Devem ser pessoas com coisas particulares que as tornem especiais.
R. O cinema
norte-americano cultua a riqueza. Os personagens têm dinheiro e casas bonitas.
E nunca se explica de onde vem esse dinheiro. Todos parecem muito saudáveis,
têm corpos perfeitos. O subtexto é que a riqueza é boa, que o privilégio é bom.
Além de outras mensagens, como que o homem com um revólver resolverá todos os
seus problemas. Há uma agenda de direita no cinema norte-americano. Com exceção
de Chaplin, claro. Seus filmes contêm uma certa política radical, a do homem
pequeno que vence.
P. Você
apoia Jeremy Corbyn, o polêmico líder trabalhista. Acredita que seu projeto de
esquerda poderia mudar a realidade descrita em seu filme?
R. Sim, sou
otimista. Sanders, Podemos, Syriza... Existe uma sensação de que outro mundo é
possível. A ascensão de Corbyn traz muita esperança, mas é sistematicamente
atacada por toda a imprensa, pela BBC, e até pelos jornais de esquerda. É uma
grande batalha, mas é muito popular entre as bases.
P. Acontece
com frequência, como seu país demonstrou, que as mensagens populistas e
xenófobas atraiam os mais desfavorecidos. “O cinema norte-americano cultua a
riqueza. Os personagens têm dinheiro e casas bonitas. E nunca se explica de
onde vem esse dinheiro. Há uma agenda de direita nesse cinema”
R. Oferecem
uma resposta simples: os imigrantes roubaram seu trabalho. É igual ao
crescimento do fascismo nos anos 1930. É fácil apontar o diferente. As pessoas são sempre vulneráveis às respostas simples. A esquerda tem uma resposta mais
complicada.
P. O que
pensa quando ouve Theresa May dizer que os conservadores são o partido da classe
trabalhadora?
R. Seria uma
piada, não fosse o fato de que ninguém a questiona. É um Governo que utiliza a
fome como arma, que deixa as pessoas passarem fome para discipliná-las. É
propaganda.
P. Insinuou
que Jimmy’s Hall (2014) seria seu último filme, mas voltou e ganhou
a Palma de Ouro. Desta vez é para valer?
R. Não sei.
Como no futebol, jogaremos uma partida de cada vez. Há muitas histórias para
contar, mas, fisicamente, o cinema é muito exigente.
P. Como
gostaria de ser lembrado?
R. Como
alguém que não se rendeu, acho. Não se render é importante, porque a luta
continua. E as pessoas tendem a se render quando ficam velhas.
Fonte: EL PAÍS o jornal global
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