"Se Eichmann afirmava desconhecer o destino dos trens repletos de judeus para eximir-se de qualquer culpa, também os juízes criminais brasileiros, ressalvadas as honrosas exceções, não se interessam por conhecer a realidade das quase-masmorras para onde vão os camburões, tampouco o destino de seus prisioneiros uma vez recepcionados do lado de dentro dos muros. E não se incomodam, até por assim não se perceberem, em atuar como meros executores de uma política voltada ao encarceramento em massa que, seletiva, alcança preferencialmente a parcela jovem, negra e pobre da população. São os nossos judeus." - (do texto abaixo)
O artigo “O
juiz e a banalidade do mal”, do promotor de Justiça Haroldo Caetano da
Silva, é muito expressivo e oportuno. Não há como não concordar com o autor sobre a situação calamitosa e
absurda em que, no Brasil, se encontra o sistema penal e carcerário. Não se pode
tampouco ignorar o papel dos juízes e dos tribunais, da polícia e do Ministério Público que, com poucas
exceções, não só não questionam essa realidade espúria, mas trabalham fazendo
parte desse esquema desumano e absurdo, alegando que apenas “cumprem o seu
papel.”
É muito importante que a sociedade brasileira conheça
mais concretamente essa questão, para exigir com urgência mudanças concretas e necessárias nesse campo.
O artigo foi publicado dois anos atrás pelo
autor no blog “Justificando” (20/07/2015) e também no site do Instituto
Humanitas Unisinos (IHU). Ao meu ver, o tema continua muito atual e por isso trago-o
também para o blog
Indagações-Zapytania para contribuir um
pouco na sua divulgação.
Não deixe de ler!
WCejnóg
IHU
- Notícias
Terça, 28 de julho de
2015
O juiz e a banalidade do mal
"É a banalidade
do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o
fundamento de um sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta,
repleto de ações isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves
violações de direitos humanos em solo brasileiro",
alerta Haroldo Caetano da Silva, promotor de Justiça, mestre
em Direito pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Psicologia pela
Universidade Federal Fluminense, em artigo publicado no blog Justificando,
20-07-2015.
Eis o artigo.
Hannah Arendt descreve Adolf Eichmann,
oficial alemão responsável pela logística do transporte de judeus para campos
de concentração, como um homem que não admitia qualquer culpa no extermínio
massivo de pessoas durante o Terceiro Reich. No seu julgamento,
reportado pela filósofa alemã de origem judaica no livro Eichmann em Jerusalém (Companhia
das Letras, 1999), Eichmann enfatizava que não passava de um mero cumpridor de
ordens e, como tal, jamais poderia ser punido por se desincumbir com eficiência
das funções a ele acometidas pelo regime nazista. Sua tarefa limitava-se,
insistia ele em seus muitos depoimentos, a organizar a identificação de pessoas,
encontrar e providenciar rotas de trens; e que não tinha responsabilidade sobre
o destino dos milhares de judeus transportados para os campos de
extermínio.
Dizendo-se funcionário
público exemplar, Eichmann cumpria à risca as ordens
superiores, cuja legalidade estava assegurada pelo ordenamento jurídico do
regime nazista. Não havia ilegalidade em sua conduta, defendia-se; pelo
contrário, agia exatamente como determinava a lei. Assim se manifestava o que Hanna
Arendt depois conceituou como a “banalidade do mal”.
Neste breve texto,
proponho um exercício intelectual no sentido de traçar um paralelo entre aquela
prática nazista, cuja legalidade era atestada por importantes juristas da
época, e o contexto atual do sistema penal brasileiro.
Para onde são levados aqueles
que são apontados pela polícia como autores de crimes ou aqueles que são
condenados pela justiça criminal brasileira?
Respondo: para presídios como
esses das fotos ao longo do texto. Com uma ou outra diferença, a regra geral é
a inclusão de homens e mulheres em espaços que em boa parte se assemelham a
campos de concentração. Superlotados, fétidos e sombrios ou
mesmo em ruínas, os presídios brasileiros são palco de abandono, doença,
tortura e morte. Há poucas exceções que por isso mesmo são irrelevantes quando
se observa o sistema prisional como um todo. A violação da dignidade de
seres humanos é rotineira, o que expõe a prisão à máxima ilegalidade,
pois contraria aquele que é um dos fundamentos do nosso país enquanto Estado
Democrático e de Direito.
Foto:
justificando.com
A esta altura você,
leitor, já pode imaginar aonde pretendo chegar com este texto. Sim, os juízes e
tribunais que fazem a jurisdição criminal no Brasil encaminham homens e
mulheres para esses lugares aí das fotografias ou, se não esses, outros muito
parecidos. Se você tem estômago forte, veja o documentário “O grito das
prisões” (2008), produzido pela repórter Fátima Souza e
pelo cinegrafista Ocimar Costa por ocasião da Comissão
Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Carcerário,
disponível aqui.
Como você irá perceber,
o documentário retrata muito bem a prisão, escancarando um pouco dos absurdos que
acontecem nesse espaço de que tanto se fala. É basicamente assim que funciona a
prisão no Brasil deste início de Século XXI, onde já estão cerca
de 600 mil mulheres e homens.
Que a sociedade deva
segregar alguns dos seus em função da prática de crimes é algo que não se
discute, particularmente no presente momento da história. A abolição do
cárcere é uma utopia, bela e até necessária, porém, ainda muito
distante. Casos há que exigem, sim, o encarceramento como resposta. Este artigo
não questiona esse fato, mas em como se dá a prisão de pessoas e como atua o sistema
de justiça criminal em face dessa realidade.
Foto: justificando.com
Então vem uma segunda
pergunta: diante do quadro de horror dos presídios brasileiros,
como é que juízes continuam a encaminhar homens e mulheres para esses espaços
que violam os mais comezinhos direitos fundamentais?
Também respondo: tal
qual Adolf Eichmann, convicto de que atuava na estrita legalidade
do regime político de sua época, os juízes brasileiros assim
procedem com a certeza de que, ao encaminhar seus réus para a prisão, apenas
cumprem com suas obrigações legais. Se Eichmann afirmava desconhecer o destino
dos trens repletos de judeus para eximir-se de qualquer culpa, também os juízes
criminais brasileiros, ressalvadas as honrosas exceções, não se interessam por
conhecer a realidade das quase-masmorras para onde vão os
camburões, tampouco o destino de seus prisioneiros uma vez recepcionados do
lado de dentro dos muros. E não se incomodam, até por assim não se perceberem,
em atuar como meros executores de uma política voltada ao encarceramento em massa que,
seletiva, alcança preferencialmente a parcela jovem, negra e pobre da
população. São os nossos judeus.
O mesmo vale – e devo
fazer o registro – para outros personagens que participam da persecução penal,
com destaque para a polícia e o Ministério Público. Com as
respeitáveis exceções de sempre, policiais e promotores de justiça, aliás,
assumem abertamente e sem qualquer constrangimento o discurso de que o que vale
mesmo é a punição, seja a que custo for. A esses agentes do Estado talvez
sequer se apliquem as escusas de Eichmann, pois assim o fazem
certos de que a sanção penal não precisa respeitar limites e que a violação de
direitos dos presos não tem relevância, tampouco significa motivo de
preocupação ou culpa, pois seria resposta legítima para a violação a que
correspondiam os crimes praticados contra suas vítimas.
Se o inimigo da Alemanha
nazista era o povo judeu, aqui os inimigos são identificados no delinquente e
no preso. Contra eles toda a força da lei, dentro de um positivismo estúpido. E
para que a máquina punitiva atue, tanto naquele regime
autoritário quanto neste que se pretende democrático, as engrenagens são
lubrificadas com um óleo alienante, o que faz com que os funcionários públicos
que conduzem o processo penal não vejam qualquer culpa pelas consequências de
seus atos. Afinal, sua atuação cumpre os rituais previstos expressamente na lei
e o conjunto da obra, esse resultado de horror e morte no cárcere,
não poderia ser a eles imputado.
É a banalidade do mal que
deixou de ser um simples conceito filosófico para ser o fundamento de um
sistema. E o sistema de justiça criminal assim se manifesta, repleto de ações
isoladas e “inocentes” que, somadas, produzem as mais graves violações
de direitos humanos em solo brasileiro.
A legalidade formal e,
por isso mesmo, superficial, das prisões decretadas por juízes e tribunais dos
quatro cantos do país, dissolve-se nos horrores da prisão.
Entretanto, tal qual Eichmann, os artífices do sistema de justiça
criminal apresentam-se como servidores públicos exemplares, cumpridores da
ordem emanada da lei penal e, assim, isentos de qualquer responsabilidade.
Só não é demais lembrar
que, mesmo sustentando com muito vigor a legalidade de suas ações enquanto
simples cumpridor de ordens, Eichmann foi julgado, condenado e
enforcado em Israel.
Fonte: IHU - Notícias
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