A disputa dos homens pelos melhores cargos, posições, vantagens, isto é, pelo poder – sempre existia (e existe!) em todas as sociedades, associações, instituições e grupos. É a realidade que incorpora a nefasta tendência do ser humano.
Só
que essa realidade torna-se triste e hipócrita, quando até as instituições cuja
missão deveria ser justamente demonstrar o contrário, no caso das Igrejas
cristãs, ostentam a existência dessas disputas. Jesus Cristo, o seu fundador,
que constitui o único sentido para a existência dessas Igrejas, adverte: “Entre vós não deverá ser assim; ao
contrário, se alguém de vós quiser ser grande, seja vosso servidor; e quem dentre
vós quiser ser o primeiro , seja escravo de todos.”(Mc 10,43-44). Mas, parece,
muitos homens e mulheres que fazem parte da Igreja, nunca ouviram essas
palavras, ou não querem ouvir...
Obviamente,
não se pode atribuir esta atitude de disputa pelo poder e de auto-promoção a
todos os fiéis e ministros da Igreja. Não se fala aqui de pessoas – e essas são
muitas! – que procuram sinceramente
dedicar a sua vida ao serviço desinteressado ao próximo, aos numerosos trabalhos
promovidos pela Igreja, que visam a ajuda ao ser humano e a sua promoção, que vivem colocando em prática o mandamento
de amor, que é o maior de todos.
Porém,
não podemos ignorar que existem pessoas
dentro da Igreja Católica (e também nas outras Igrejas), e principalmente dentro
das lideranças religiosas, que da disputa pelo poder fizeram o principal
objetivo de suas vidas. Muitas outras, por sua vez, justamente na Igreja encontraram o ambiente propício e, talvez, mais fácil, para “subir na vida”, enriquecer,
ou realizar outros planos, que nada têm a ver com o Evangelho de Jesus Cristo. Exercer
o domínio sobre os outros, maltratá-los, ostentar a arrogância, poder impor-lhes
as suas ordens, sentir-se “dono” do cargo
ocupado – são as práticas que negam
abertamente o exemplo de servir deixado por Jesus. Pior ainda, as atitudes
desta ordem confudem, machucam e escandalizam muitas pessoas honestas e
sinceras dentro da mesma Igreja, que cultivam
a fé na verdadeira missão da Igreja.
Sobre
este assunto, com muita propriedade, trata o excelente artigo do José Lisboa Moreira de Oliveira¹, que trago hoje para o blog
Indagações. Na minha opinião, esse texto deveria ser lido e refletido por todos
os cristãos, e sobretudo pelas lideranças católicas.
Não
deixe de ler!
WCejnog
Eis artigo:
Quarta-feira, 6 de março de 2013
O poder na Igreja
A disputa pelo
poder na cúpula da Igreja
José Lisboa Moreira de Oliveira
As recentes notícias de disputas pelo poder na
cúpula da Igreja Católica Romana têm deixado muita gente perplexa. O próprio
papa Bento XVI chegou a fazer referências ao assunto, considerando-o nocivo
para o anúncio do Evangelho. As pessoas mais simples, portadoras de uma visão
angelical do ministro ordenado, sentem-se como que maltratadas em sua fé,
quando ouvem tais notícias. Não acreditam no que é dito. As pessoas mais
críticas, pensantes, sabem que se trata de algo muito sério que não há como
esconder. Muitos membros da hierarquia, imitando a avestruz, tentam fugir do
problema. Normalmente saem pela tangente, procurando desviar-se do tema. Foi o
caso, por exemplo, de um ilustre canonista, solenemente vestido em seu
clergyman, que entrevistado ao vivo por uma jornalista de uma rede de
televisão, saiu com uma desculpa esfarrapada. Perguntado pela jornalista o que
o papa Bento XVI quis dizer quando aludiu a divisões dentro da Igreja, o
ilustre mestre em Direito Canônico deu uma resposta evasiva que soou mais ou
menos assim: “Em seus discursos o papa tem sempre presente o tempo litúrgico.
Como estamos na Quaresma, ele quis fazer-nos um convite à conversão. Ele
naturalmente estava se referindo à obrigação que temos de nos converter e de
nos purificar de todas as fragilidades”.
A disputa pelo poder dentro da Igreja é tão antiga
quanto a própria comunidade cristã. Os Evangelhos sinóticos registram o
episódio dos irmãos Zebedeu, que instigados por uma mãe preocupada com o futuro
de seus filhos, pretendem ocupar o lugar de primeiros ministros no Reino de
Jesus (Mt 20,20-28). A pretensão dos dois irmãos causou ciúmes e indignação nos
outros dez discípulos. Muitos estudiosos da Bíblia afirmam que por trás desta
narrativa estaria a briga pelo poder nas primeiras comunidades cristãs. Os
evangelistas teriam registrado o episódio para chamar a atenção dessas
comunidades e orientá-las quanto à forma como deveriam lidar com a questão do
poder. O evangelista João, embora não narre este episódio, deixou registrada a
parábola do Bom Pastor (Jo 10,11-21). Ele reflete sobre o poder na comunidade
cristã, criticando aquelas lideranças que se comportam como ladrões e
assaltantes, não entrando “pela porta do curral” (Jo 10,1). Ao que tudo indica,
trata-se de uma referência ao carreirismo e ao oportunismo já presentes nas
comunidades cristãs do final do primeiro século da nossa era. Mais adiante, na
narrativa conhecida como “Lava-pés”, João vai novamente criticar o
autoritarismo e fazer uma catequese sobre como deveria ser o exercício do poder
na comunidade cristã (Jo 13,1-17). No versículo nove da sua Terceira Carta o
ancião João denuncia certo Diótrefes “que ambiciona dominar” e, por isso, se
recusa a aceitar as demais lideranças, difamando-as e expulsando-as da Igreja.
Paulo, em algumas de suas cartas, denuncia e
critica o comportamento ambicioso de determinadas lideranças, as quais disputam
ferozmente o poder dentro das comunidades cristãs por ele fundadas. O texto
mais incisivo é aquele da Carta aos Gálatas na qual o apóstolo denuncia pessoas
que estão semeando confusão nas comunidades e anunciando “um evangelho
diferente” daquele que ele anuncia (Gl 1,6-10). Em Corinto, depois de seu
esforço evangelizador, Paulo vê a comunidade se dividir em facções (1Cor 1,12;
3,4). Na Carta aos Filipenses (1,12-18) o apóstolo acusa aqueles que na
comunidade agem por inveja e por espírito de competição. Tais “cães” e “falsos
circuncidados” confiam “na carne” (3,2-4) e adoram o “deus-ventre” (3,19).
A situação se agrava ainda mais quando, a partir de
380, com o decreto de Teodósio, o cristianismo passa a ser religião de Estado
e, aos poucos, as lideranças cristãs vão assumindo o estilo autoritário e
tirânico de governar (Mc 10,42-43). Os bispos, os padres e até o próprio papa
vão assimilando o jeito de ser dos imperadores e reis. Até os títulos imperiais
(excelência, eminência, sumo pontífice, monsenhor etc.) e as insígnias (coroas,
anéis, tiaras, luvas, sapatilhas, mitras, casulas etc.) se tornam títulos e
insígnias dos pastores da Igreja. Junto com o poder vem a riqueza, o luxo e a
ostentação. E a guerra pelos primeiros lugares se torna violenta e cruel.
Qualquer historiador eclesiástico sério sabe muito bem o que isso significou. E
não podia ser diferente, pois “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males” e
quando alguém se deixa levar pela “ânsia do dinheiro” termina se afastando da
fé (1Tm 6,10).
Diante do exposto resta-nos dizer que é hipocrisia
tentar negar o óbvio, ou seja, que existam disputas internas no interior da
Igreja. Os autores sagrados do Novo Testamento não esconderam isso. Pelo
contrário, expuseram as mazelas de suas comunidades. Por essa razão um teólogo
ou canonista que, de público, nega tal fato comporta-se de maneira ridícula e
falsifica o próprio Evangelho. Sabemos por experiência que tal disputa se dá
ainda hoje, inclusive nas pequenas comunidades. Com frequência vemos
lideranças, coordenadores e ministros agarrando-se ao pequeno poder que lhes é
concedido pelos cargos. Até a detenção da chave da gaveta do armário da sacristia
pode se tornar fonte de poder autoritário, dominador e opressivo.
Resta-nos uma única
alternativa para reverter tal situação. Esta alternativa tem início com a
humilde confissão e admissão da existência da disputa pelo poder no interior da
Igreja. Admitida esta realidade é indispensável repensar por completo a
educação das lideranças cristãs, desde as mais simples até os ministérios
ordenados. Esta educação implica antes de tudo a clareza acerca da total incompatibilidade entre o modo de
governar dos tiranos deste mundo e o governo eclesial: “Entre vocês não deverá
ser assim” (Mc 10,43). A partir desta convicção a catequese vocacional de
educação das lideranças deverá comportar o
princípio fundamental de que o poder na comunidade cristã é exclusivamente
serviço, de modo que fique bem evidente que quem não estiver disposto a servir
não pode assumir nenhum tipo de liderança na Igreja: “quem de vocês quiser ser
grande, deve tornar-se o servidor de
vocês” (Mc 10,43).
Este tipo evangélico de educação é um grande
desafio para o momento, pois, como vimos acima, o vício está espalhado pelas
comunidades cristãs e a visão mais comum é de que cargo ou função na Igreja é
uma forma de dominar os outros e de mostrar poder sobre os demais. Não será
fácil educar à maneira de Jesus: depor o manto do poder dominador e amarrar na
própria cintura a toalha do diákonos,
do servidor, do garçom, do empregado que
serve à mesa (Jo 13,4). Mas, não há outro caminho e os responsáveis pela
educação das lideranças devem deixar bem claro que não há como conciliar o
poder serviço com o poder dominação. Quem se recusa a ver a função da liderança
como serviço aos outros, se exclui automaticamente da comunidade dos discípulos
e discípulas de Cristo (Jo 13,8). Torna-se um excomungado no sentido técnico da expressão. Infelizmente
excomungamos, ou seja, expulsamos das comunidades os que pensam diferente, mas
não nos damos conta de que todo papa e todo bispo, todo padre e todo diácono,
todo ministro e toda liderança cristã que transforma o seu cargo ou função em
poder-dominação é um excomungado. Por recusar-se a ser servidor exclui-se
automaticamente do discipulado de Jesus: “não terá parte comigo” (Jo 13,8).
Mas para chegar a tanto se faz necessário uma
catequese ainda mais profunda. Uma catequese que deixe bem claro que somos
todos irmãos e irmãs, formando uma comunidade de pessoas com igual dignidade,
na qual os títulos não contam e não devem ser utilizados para colocar alguém
acima dos demais (Mt 23,8-10). Na comunidade cristã, de irmãos e de irmãs, o
que conta é a capacidade de servir. Se há grandeza em alguém, esta grandeza
deve ser medida por sua capacidade de, na humildade, servir aos outros (Mt
23,11-12). O resto é, no dizer do apóstolo Paulo, podridão, esterco, inclusive
os “nobres títulos” com os quais algumas lideranças cristãs fazem questão de
serem identificadas (Fl 3,1-14).
__________
¹
José Lisboa Moreira de Oliveira é filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário.
Licenciado
em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, graduado em Teologia pela
Universidade Gregoriana de Roma, Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade
Teológica da Itália Meridional (Nápoles – Itália), Doutor em Teologia pela
Universidade Gregoriana de Roma. Autor
de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação
vocacional.
Fonte: http://lisboa-ochamado.blogspot.com.br/2013/03/o-poder-na-igreja.html
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