Muito
bom o artigo “O enquadramento político de Deus”, de Magali do Nascimento
Cunha (Jornalista e doutora em Ciência da Comunicação pela USP), publicado recentemente (22/05) no Carta Capital. Quero
compartilhá-lo também aqui, nesta página, e com isso ajudar um pouco na sua
divulgação.
Vale
a pena ler!
WCejnóg
O enquadramento político de Deus
O presidente eleito Jair Bolsonaro participou durante campanha
de culto ao lado do pastor Silas Malafaia na Assembleia de Deus, na Penha, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro. (foto: Avener Prado/Folhapress)
Há muitas
imagens de Deus e elas respondem aos jeitos de ser e às visões de mundo das
pessoas que lhe rendem devoção.
Deus se meteu em política no Brasil. Escolheu um
salvador para os brasileiros: o ex-capitão tornado presidente da República em
2018 Jair Bolsonaro. Foi esta a notícia que tivemos nesta semana por duas
fontes: uma, oficial, pelo próprio presidente, que postou no Twitter a
entrevista do apóstolo congolês líder de uma igreja evangélica na França, Steve
Kunda, veiculada em abril pela Rede Super, TV da Igreja Batista da Lagoinha,
onde a ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, atua como
pastora. Na gravação, o apóstolo diz que fala “da parte de Deus”, por isso,
“…aceitando ou não, você seja de esquerda ou de direita, o senhor Jair
Bolsonaro é o Ciro [rei persa que tirou os judeus do exílio babilônico] do
Brasil. Deus o escolheu para um novo tempo, para uma nova temporada no Brasil”.
A outra fonte que coloca Deus na política é o bispo
fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo. No mesmo dia em que
o ex-capitão reavivou a entrevista do apóstolo Kunda, o bispo Macedo, em oração
publicada, afirma a autoridade de quem elegeu o presidente e que isto
garante-lhe o favor de Deus: “… te peço, meu Pai, por esta nação: nós elegemos
Bolsonaro, então seja justo com ele, meu Pai”. O líder religioso declara ainda,
falando com Deus, que, neste contexto, não cabe oposição ao eleito e os
divergentes devem ser retirados do cenário: “Remova aqueles que querem
impedi-lo de fazer um excelente governo. Ele pegou esse País, meu pai, caído,
quebrado, assaltado, roubado, espoliado, desgraçado, para mudar a história
dele, meu pai”.
Governantes e grupos que fazem política apontando
Deus como apoiador ou responsável por eles são coisa antiga. Há muitas
histórias em muitos lugares. Independentemente das motivações que agora, no
Brasil, se utilizam de Deus, a questão a ser refletida é que nunca houve e nem
haverá uma única fala sobre Deus. No âmbito cristão, nem o livro sagrado, a
Bíblia, traz uma única fala sobre Deus, o que gera muitas interpretações sobre
quem é Deus, como fala, por intermédio de quem fala e o que fala. Por isso, no
contexto da fé evangélica, há muitas igrejas, muitas doutrinas, muitas
práticas. Mesmo no Catolicismo, que tem um governo central e uma orientação
única, há tantas falas sobre Deus e suas preferências!
Em resumo, é preciso reconhecer que há muitas
imagens de Deus e que elas respondem aos jeitos de ser e às visões de mundo das
pessoas que lhe rendem devoção! Há deus para todos os grupos, deus para todos
os gostos.
A fala sobre Deus e em nome dele pode vir de um
congolês que vive na França e visita o Brasil, como pode emergir de uma mulher
dalit destinada a limpar latrinas na Índia ou pode surgir de um guarani que
está prestes a praticar suicídio em busca da Terra sem Males. Como são falas
diferentes!
A fala sobre Deus e em nome dele pode ser o grito
de uma mãe que perdeu o filho por tiros que partiram de um helicóptero da
polícia no Rio e pode ser também de um pastor da Finlândia que participa da
colheita de maçãs com sua comunidade. Há múltiplas vozes sobre Deus e em nome
dele!
Quando uma pessoa ou grupo advoga para si a voz de
Deus e afirma que o que Deus fala é o que ela ou ele pronuncia, e que toda fala
diferente, diversa, deve ser retirada, sem alternativa, “aceite-se ou não”, aí
temos o enquadramento de Deus, com extremismo revestido de fanatismo: a fala
absoluta sobre Deus, sem diálogo, sem mediação, sem contextualização.
Como, então, julgar? Com quem Deus está? Quem fala
em nome de Deus? Onde Deus está neste mundo, no Brasil? No Cristianismo, há uma
orientação, uma chave para discernir. Quem se apresenta como cristão é seguidor
do Cristo, é aquele que está no caminho de Jesus de Nazaré. Seguir o Cristo,
caminhar nos seus passos, é viver a partir do amor incondicional, sem preço ou
expectativa de retribuição, com misericórdia, com solidariedade, com
despojamento e simplicidade, com justiça acima de preceitos injustos, sem
discriminação de pessoas, com mansidão, com pacificação, com reconciliação, com
paciência, com partilha de bens para que todos tenham o suficiente para sobreviver,
com respeito e tolerância.
De acordo com os preceitos cristãos, estes são os
frutos de uma vida cristã coerente. O contrário disto é qualquer coisa menos
ser cristão. Jesus mesmo orientou seus seguidores: “Acautelai-vos, porém, dos
falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são
lobos devoradores. Por seus frutos os conhecereis. Porventura, colhem-se uvas
dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz bons
frutos, e toda árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus
frutos, nem a árvore má dar frutos bons. Toda árvore que não dá bom fruto
corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis”
(Mateus 7.15-29).
Qualquer fala sobre Deus que remeta a frutos na
forma de sacrifício de pessoas e do meio ambiente, morte, pobreza,
discriminação, segregação, privilégios, ganhos por mérito, violência, disputas
e divisão, intolerância, é falsa profecia, é falso cristianismo. É o
enquadramento de Deus em desejos e projetos de pessoas e grupos. E se esta fala
advoga o absoluto e a eliminação da discordância e do diferente, há mais
maldade: é extremismo revestido de fanatismo que deve ser, urgentemente,
superado, em nome da paz e da conciliação.
Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, veja
e ouça!
Fonte: Carta Capital
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