O artigo “O que significa Bolsonaro no poder” do sociólogo Jessé Souza é
simplesmente incrível. Trago-o também para o meu blog para ajudar um pouco na
sua divulgação. Quem, porventura, estiver interessado em entender melhor o que de
fato está acontecendo atualmente no Brasil, certamente encontrará aqui a melhor
análise crítica produzida hoje. Parabéns, Prof. Jessé Souza!
Vale a pena ler!
WCejnóg
O que significa Bolsonaro no poder, por Jessé Souza
Bolsonaro é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar com ele é
literalmente impossível
Jessé Souza 08 Maio 2019
Eleição de Bolsonaro foi resultado da guerra social contra os pobres e
entre os pobres / Marcelo Camargo / Agência Brasil
A eleição de Jair Bolsonaro foi um protesto da
população brasileira. Um protesto financiado e produzido pela elite colonizada
e sua imprensa venal, mas, ainda assim, um “protesto”. Uma sociedade
empobrecida – cheia de desempregados, de miseráveis e violência endêmica, cujas
causas, segundo a elite e a grande imprensa que a mantém, é apenas a “corrupção
política” – elege o mais nefasto político que os 500 anos de história
brasileira já produziu. Segundo a imprensa comprada, a corrupção é, inclusive,
culpa do PT e de Lula manipulando a informação e criando uma guerra entre os
pobres. Sem compreender o que acontece, a sociedade como um todo é manipulada e
passa a agir contra seus melhores interesses.
A única classe social que entra no jogo sabendo o
que quer é a elite de proprietários. Para a elite, o que conta é a captura do
orçamento público via “dívida pública” e juros extorsivos, e ter o Estado como
seu “banco particular” para encher o próprio bolso. A reforma da previdência é
apenas a última máscara desta compulsão à repetição. Mas as outras classes
sociais, manipuladas pela elite e sua imprensa, também participaram do esquema,
sempre “contra” seus melhores interesses.
A classe média real entrou em peso no jogo, como
sempre, contra os pobres para mantê-los servis, humilhados e sem chances de
concorrer aos privilégios educacionais de que desfruta. Os pobres entraram no
jogo parcialmente, o que se revelou decisivo do ponto de vista eleitoral, pela
manipulação de sua fragilidade e pela sua divisão proposital entre pobres
decentes e pobres “delinquentes”. Esses dois fatores juntos, a guerra social
contra os pobres e entre os pobres, elegeram Bolsonaro e sua claque.
Foi um protesto contra o progresso material e moral
da sociedade brasileira desde 1988 e que foi aprofundado a partir de 2002.
Estava em curso um processo de aprendizado coletivo raro na história da
sociedade brasileira. Como ninguém em sã consciência pode ser contra o
progresso material e moral de todos, o pretexto construído, para produzir o atraso
e mascará-lo como avanço, foi o pretexto, já velho de cem anos, da suposta luta
contra a corrupção. Sérgio Moro incorporou esta farsa canalha como ninguém.
A “corrupção política”, como tenho defendido em
todas as oportunidades, é a única legitimação da elite brasileira para
manipular a sociedade e tornar o Estado seu banco particular. A captura do
Estado pelos proprietários, obviamente, é a verdadeira corrupção que,
inclusive, a “esquerda” até hoje, ainda sem contradiscurso e sem narrativa
própria, parece não ter compreendido.
Agora, eleição ganha e Bolsonaro no poder, começam
as brigas intestinas entre interesses muito contraditórios que haviam se unido
conjunturalmente na guerra contra os pobres e seus representantes. Bolsonaro é
um representante típico da baixa classe média raivosa, cuja face militarizada é
a milícia, que teme a proletarização e, portanto, constrói distinções morais
contra os pobres tornados “delinquentes” (supostos bandidos, prostitutas,
homossexuais, etc.) e seus representantes, os “comunistas”, para legitimar seu
ódio e fabricar uma distância segura em relação a eles.
Toda a sexualidade reprimida e todo o ressentimento
de classe sem expressão racional cabem nesse vaso. O seu anticomunismo radical
e seu anti-intelectualismo significam a sua ambivalente identificação com o
opressor, um mecanismo de defesa e uma fantasia que o livra de ser assimilado à
classe dos oprimidos. Olavo de Carvalho é o profeta que deu um sentido e uma
orientação a essa turma de desvalidos de espírito.
É claro que Bolsonaro é um mero fantoche ocasional
das elites brasileira e americana. Quando ele volta de mãos vazias dos Estados
Unidos, depois de dar sem qualquer contrapartida o que os americanos nem sequer
tinham pedido, a única explicação é que ele estava lá como sujeito privado e
não como presidente de um país. Como sujeito privado, é bem possível que ele
estivesse pagando, com dinheiro e recursos públicos, os gastos de campanha até
hoje secretos e sem explicação. Mas é óbvio que sua campanha foi feita e muito
provavelmente financiada pelos mesmos que fizeram e bancaram a campanha de
Trump.
O seu discurso de ódio era o único remédio contra a
volta do PT ao poder. E como a elite e sua imprensa querem o saque do povo, e
para isso se aliam até ao diabo, ou pior, até a Bolsonaro, sua escolha teve
este sentido. O ódio, por sua vez, é produzido pela revolta de quem não entende
por que fica mais pobre e a única explicação oferecida pela imprensa venal é o
eterno “bode expiatório” da corrupção política. Mas a corrupção política era a
forma, até então, como se manipulava a falsa moralidade da classe média real.
Como se chega com esse discurso manipulador também nas classes baixas? O voto
da elite e da classe média no Brasil não ganha eleição nenhuma. Este é um país
de pobres.
A questão interessante passa a ser como e por que
setores das classes populares passaram a seguir Bolsonaro e permitiram sua
eleição. Para quem Bolsonaro fala quando diz suas maluquices e suas agressões
grosseiras? Ele fala, antes de tudo, para a baixa classe média iletrada dos
setores mais conservadores do público evangélico. Este público que ganha entre
dois e cinco salários mínimos é um pobre remediado que odeia o mais pobre e
idealiza o rico. O anticomunismo, por exemplo, tem o efeito de irmanar este
pobre remediado com o rico, já que é uma oportunidade de se solidarizar com o
inimigo de classe que o explora e não com seu vizinho mais pobre com quem não
quer ter nada em comum. Isso o faz pensar que ele, em alguma medida, também é
rico – ou em vias de ser –, já que pensa como ele.
O anti-intelectualismo também está em casa na baixa
classe média. Isso é importante quando queremos saber a quem Bolsonaro fala
quando ataca, por exemplo, as universidades e o conhecimento. A relação da
baixa classe média com o conhecimento é ambivalente: ela inveja e odeia o conhecimento
que não possui, daí o ódio aos intelectuais, à universidade, à sociologia ou à
filosofia. Este é o público verdadeiramente cativo de Bolsonaro e sua pregação.
É onde ele está em casa, é de onde ele também vem. Obviamente esta classe é
indefesa contra a mentira institucionalizada da elite e de sua imprensa. Ela é
vítima tanto do ódio de classe contra ela própria, que cria uma raiva que não
se compreende de onde vem, e da manipulação de seu medo de se proletarizar.
Quando essas duas coisas se juntam, o pobre remediado passa a ser mais pró-rico
que o Dória.
A escolha de Sérgio Moro foi uma ponte para cima
com a classe média tradicional que também odeia os pobres, inveja os ricos e se
imagina moralmente perfeita porque se escandaliza com a corrupção seletiva dos
tolos. Mas, apesar de socialmente conservadora, ela não se identifica com a
moralidade rígida nos costumes dos bolsonaristas de raiz, que estão mais perto
dos pobres. Paulo Guedes, por sua vez, é o lacaio dos ricos que fica com o
quinhão destinado a todos aqueles que sujam as mãos de sangue para aumentar a
riqueza dos já poderosos.
Os primeiros meses de Bolsonaro mostram que a
convivência desses aliados de ocasião não é fácil. A elite não quer o barulho e
a baixaria de Bolsonaro e sua claque, que só prejudicam os negócios. Também a
classe média tradicional se envergonha crescentemente do “capitão pateta”. Ao
mesmo tempo, sem barulho nem baixaria Bolsonaro não existe. Bolsonaro “é” a
baixaria. Sérgio Moro, tão tolo, superficial e narcísico como a classe que
representa, é queimado em fogo brando, já que o Estado policial que almeja,
para matar pobres e controlar seletivamente a política, em favor dos interesses
corporativos do aparelho jurídico-policial do Estado, não interessa de verdade
nem à elite nem a seus políticos. Sem a mídia a blindá-lo, Sérgio Moro é um
fantoche patético em busca de uma voz.
O resumo da ópera mostra a dificuldade de se
dominar uma sociedade marginalizando, ainda que em graus variáveis, cerca de
80% dela. Bolsonaro e sua penetração na banda podre das classes populares foi
útil para vencer o PT, mas é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar
com ele é literalmente impossível. A idiotice dele e de sua claque no governo é
literal no sentido da patologia que o termo define. Eles vivem em um mundo à
parte, comandado pelo anti-intelectualismo militante, o qual não envolve apenas
uma percepção distorcida do mundo. O idiota é também levado a agir segundo
pulsões e afetos que não respeitam o controle da realidade externa. Um idiota
de verdade no comando da nação é um preço muito alto até para uma elite e uma
classe média sem compromisso com a população nem com a sociedade como um todo.
Esse é o dilema do idiota Jair Bolsonaro no poder.
* Jessé
Souza é sociólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro que
atua nas áreas de Teoria Social, pensamento social brasileiro e estudos
sobre desigualdade e classes sociais no Brasil contemporâneo.
Fonte: Jornal GGN Brasil de Fato
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