Para falar sobre
a questão de democracia na Igreja Católica Romana trago para o blog Indagações um
artigo muito interessante do nosso ilustre
colega José Lisboa Moreira de Oliveira, em que ele analisa o tema com
muita competência e clareza. O autor publicou este artigo no seu blog no mês de
setembro de 2013.
Acho importante
poder divulgar as coisas boas e compartilhá-las com os outros.
Não
deixe de ler! .
WCejnóg
Blog - O Chamado
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
Democracia na Igreja
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário.
Há mais de
quarenta anos estou diariamente envolvido com a vida da Igreja Católica Romana.
Durante este período escutei centenas de vezes a afirmação de que a Igreja não
é uma democracia. Geralmente escuto este tipo de afirmação quando se quer
justificar os autoritarismos praticados por eclesiásticos ou por gestores de
instituições eclesiásticas. A última vez que escutei tal afirmação foi há
poucos dias atrás. Um gestor de uma instituição ligada à Igreja Católica,
querendo justificar atitudes pouco evangélicas e pouco transparentes dessa
mesma instituição saiu-se com esta afirmação: “Meu caro, você sabe que a Igreja
Católica não é uma democracia”.
Diante da
resposta evasiva deste gestor tive que fazer alguns esclarecimentos. Antes de
tudo disse para ele que, realmente, a Igreja não é uma democracia no sentido
que estamos acostumados a entender esse termo. No âmbito político atual
entende-se por democracia a vontade da maioria da população de um país ou de um
continente, manifestada através do voto, de um plebiscito ou mesmo de um
referendum. Por democracia, no sentido comum do termo, entende-se a obrigação
que os governantes e os políticos têm de agir com transparência, respeitando a
autonomia dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário) e respeitando
a vontade da maioria manifestada em algumas ocasiões. Por democracia entende-se
ainda uma série de direitos e de deveres individuais e sociais garantidos pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelas Constituições dos diversos
países.
Sabemos, porém,
que nem sempre a vontade da maioria é o melhor para a humanidade e para os
vários povos e nações. A história tem demonstrado que, muitas vezes, as
escolhas feitas pela maioria são equivocadas e terminam por se voltar contra as
próprias pessoas. Por esse motivo vem se firmando cada vez mais a exigência de
novas formas de democracia como, por exemplo, a democracia participativa,
através da qual a população de uma determinada região ou país manifesta, por
meio de determinados organismos, a sua vontade e interfere diretamente na
realização das políticas públicas. Nesse processo são respeitados não só a
vontade da maioria, mas também o desejo e os direitos de pequenos grupos e
minorias, os quais quase sempre são esquecidos nos processos e mecanismos de
decisão que consideram apenas a vontade da maioria.
Ora,
considerando esses aspectos de uma democracia representativa, pode-se dizer com
tranquilidade que a Igreja não pode e nem deve ser uma democracia. Ela, pelo
contrário, é muito mais do que isso. A Igreja é uma koinonía e vai, enquanto tal, muito mais além de uma pura e simples
democracia. Ettore Franco, meu professor na Pontifícia Faculdade da Itália
Meridional (Nápoles – Itália) no seu livro Comunione
e partecipazione: la koinônia nell’epistolario paolino (Bréscia:
Morcelliana, 1986) estudou a fundo essa questão.
Para Franco a koinonía bíblica é a salvação
escatológica oferecida pelo Pai, através da ação do Filho, no dinamismo do
Espírito e que se concretiza em um determinado momento da nossa história (1Jo
1,1-3). Enquanto tal, a koinonía implica uma resposta de comunhão e de participação
dos cristãos e das cristãs, acolhendo o dom salvífico. Isso significa que
aqueles e aquelas que crêem devem se preocupar com o bem comum e com o bem dos
demais. Essa atitude comporta necessariamente relações horizontais entre as pessoas, de modo que ninguém seja tratado
de maneira inferior, discriminadora, preconceituosa e excludente (1Cor
10,14-22).
Além dos
relacionamentos horizontais, a koinonía comporta a partilha dos bens entre as pessoas. Essa partilha dos bens expressa
a solidariedade que deve existir
entre aqueles e aquelas que acreditam em Cristo e destes para com todas as
pessoas necessitadas. A solidariedade, por sua vez, é sinal visível da graça de
Deus que é a comunhão com Cristo (2Cor 8 – 9). A koinonía, portanto, é
expressão de um relacionamento entre os cristãos e entre as cristãs que não
admite formas de distinção ou de hierarquia que sejam discriminatórias ou
excludentes, nas quais algumas pessoas ou até multidões sejam consideradas
inferiores e, por isso mesmo, excluídas de determinados espaços. A koinonía
exige, enquanto tal, que se respeite o direito de toda pessoa batizada a ter
voz e vez na comunidade cristã. Esse direito não nasce do pertencimento a uma
determinada hierarquia ou ao fato de ter tido oportunidade de uma formação
acadêmica (ter feito teologia, por exemplo), mas da inserção efetiva no Corpo
de Cristo que se dá através do batismo (Rm 6,3-5). O batismo nos faz todos
irmãos e irmãs uns dos outros e constitui cada pessoa no direito e no dever de
participar ativamente da vida da Igreja, segundo a graça recebida do Espírito
através desse mesmo batismo (Ef 4,4-16).
Consequentemente
na Igreja-koinonía as pessoas
batizadas são todas, sem exceção, irmãs umas das outras (Mt 23,8) e, por isso,
não há lugar para autoritarismos e nem para uma hierarquia dominadora,
impositiva e repressora. A solução das questões se dá através do diálogo
fecundo entre as diversas pessoas que ocupam funções diferentes, exercem
ministérios particulares e prestam vários serviços à comunidade. Tudo de acordo
com os dons recebidos do Espírito. Na comunidade cristã que tem como referência
a koinonía bíblica não existem mestres, não existem senhores, não existem
“pais”. Somente Cristo é o Mestre e Senhor e somente Deus é o Pai de todos e de
todas (Mt 23,8-10).
Na Igreja não
podem, pois, existir eminências e excelências; pessoas mais importantes e
outras menos importantes; pessoas incensadas e outras descartadas ou colocadas
em segundo plano. Certos títulos e certas honras atribuídas a determinadas
pessoas são resquícios de uma herança do passado, quando a Igreja passou a
imitar as tiranias e os tiranos do mundo (Mc 10,42), e que contradizem
profundamente o Evangelho. São expressão de uma Igreja que, apesar dos
cinquenta anos do Vaticano II ainda não se purificou totalmente, como pediu
esse Concílio, mas ainda continua buscando glórias e afastada do seu Fundador
pobre, humilde, sofredor e servidor (LG, 8).
Portanto,
realmente a Igreja não é e não pode ser uma democracia no sentido que
entendemos atualmente este vocábulo. Isso seria reduzi-la drasticamente. Porém,
como vimos antes, a Igreja é muito mais do que isso; é uma koinonía e é,
enquanto tal, uma comunidade de irmãs e de irmãos na qual não podem ser aceitas
de forma alguma as desigualdades, as discriminações, o exercício autoritário do
poder etc. Temos ainda um longo caminho a percorrer e somos desafiados a
avançar com coragem e determinação na direção da utopia do Reino de Deus. Não
podemos e não devemos desistir do sonho de uma Igreja na qual “a totalidade dos
fiéis, que receberam a unção que vem do Espírito” (LG, 12), será plenamente
respeitada na sua diversidade, superando assim a tentação das hierarquizações
discriminantes e excludentes (At 10, 34-35; Gl 3,28-29). Foi com base na koinonía que, nos primeiros séculos da Igreja,
as comunidades escolhiam seus ministros e demitiam as autoridades eclesiásticas
indignas e corruptas. Mas disso falaremos em outra ocasião.
Fonte: Blog
- O Chamado
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