Abaixo, um artigo muito
interessante do psicanalista Mario Corso sobre as pessoas que se encontram em
estado de loucura, hoje mais visíveis nas ruas e outros espaços públicos, com
as quais a sociedade (e cada um de nós) precisa conviver e aprender a lidar. Trata-se
de uma realidade que frequentemente constrange e desconcerta a todos nós – escreve o autor.
O artigo foi publicado
recentemente também no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Vale a pena
ler!
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IHU - Notícias
Quarta, 30 de abril de
2014.
O dono do mundo
"Passeava com minha filha na Cidade
Baixa e encontramos o dono do mundo. Pelo menos era o que ele
gritava aos passantes, desde a calçada onde estava estirado: 'O dono do mundo
sou eu, não são os americanos, não são os japoneses, não são os alemães, eu sou
o dono...' . Além de reclamar para si a posse do planeta, xingava todos,
delimitando sonoramente seu reino", escreve Mario Corso, psicanalista, em artigo publicado no jornal Zero Hora,
29-04-2014.
Eis o artigo.
Passamos reto, pisando leve em seus domínios. Nós
sabíamos do que se tratava, já trabalhamos com pessoas assim. Discutimos se ele estaria melhor num hospício.
A abertura dos manicômios trouxe para as ruas uma população que permanecia
oculta. De uns anos para cá, aumentou o número de loucos de rua entre os
mendigos habituais. Nossa reação automática é pensar que isso foi um erro, na
rua eles estão sem ajuda, sem terapia, sem medicação. Estão misturados ao lixo,
com que provavelmente estão identificados, ocupando um lugar de dejeto social.
O certo é que não estavam melhores antes, mesmo se
internados numa das poucas boas instituições e se esse abrigo fosse dotado de
bons profissionais. Os antigos manicômios eram museus de peças humanas
falhadas, ocultas do nosso olhar. É duro reconhecer uma
impotência, mas nós não temos uma resposta a não ser paliativa para certos
desistentes da nossa sociedade. Nesses casos extremos, tratamentos que visem a
abordagens corretivas são inúteis. Para ajudá-los, só nos resta acompanhá-los e
tentar fazê-los sentir-se considerados, como outro cidadão
qualquer.
Sua postura no mundo, sua doença – pessoalmente
prefiro evitar essa palavra, pois não dá conta do problema – é recusá-lo em
bloco. Eles desistiram de nós. Para tanto fundam um novo mundo, uma nova
lógica. Nesse espaço imaginário, eles vencem. Querer convencê-los do contrário
é tão contraproducente como impossível. É mais fácil convencer alguém são de
que seria louco do que arranhar minimamente esses sistemas delirantes.
O único motivo para mantê-los institucionalizados
seria para não tropeçarmos neles e nos deparar com as fronteiras sinistras da condição
humana. A internação era boa para nós, pois a loucura nos constrange e
desconcerta. Encerrados,
eles definham ainda mais, são privados dos cenários do mundo e de nós. Eles não
recusam nossa presença, é da nossa lógica que eles prescindem. Gostam de
circular neste mundo, mesmo sabendo que perderam a guerra de impor seu sentido.
Se você duvida sobre minha opinião e testemunho
(conheci muitos dos antigos hospícios), recomendo o livro Holocausto
Brasileiro, de Daniela
Arbex (Ed. Geração, 2013). Obra para
estômagos fortes, conta histórias de internados. Esses mesmos que hoje estão
nas ruas. Depois me diga o que é pior.
Fonte: IHU - Notícias
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