Abaixo,
um excelente artigo de José Lisboa Moreira de Oliveira que fala sobre a nova (e
mais uma) tentativa dos adversários da Teologia da Libertação de diminuir a
importância dessa corrente teológica. Desta vez, trata-se do pronunciamento de
um prelado, o presidente da CELAM, dom Carlos Aguiar Retes, como representante do grupo conservador dos
bispos da Igreja Católica da América Latina.
Por
concordar com todas as colocações do autor do artigo, faço questão de publicá-lo
no blog Indagaçoes-Zapytania para contribuir na sua divulgação.
O
texto foi publicado no blog O Chamado. Vale a pena ler!
WCejnóg
O Chamado
Quinta-feira, 12 de junho de 2014.
Nova tentativa de assassinato da
Teologia da Libertação
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo,
escritor e professor universitário
A Teologia
da Libertação (TdL) foi
gestada na 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (CELAM),
realizada em 1968 em Medellín, na Colômbia. Naquela ocasião os bispos do nosso
continente tentaram aplicar o Concílio Vaticano II à realidade que marcava a
vida dos nossos povos e dos nossos países. Logo depois, a TdL foi sistematizada
pela obra de Gustavo Gutiérrez e de outros teólogos, os quais tentaram fazer
uma reflexão teológica que desenvolvesse a intuição de Medellín, que era
centrar a sua atenção sobre o ser humano do continente, frustrado em suas
legítimas aspirações, devido às enormes injustiças e à opressão que assolavam
os diversos países.
Depois de alguns anos de aceitação e
de esforço para traduzir na prática as suas intuições, a TdL passou a ser incompreendida e perseguida.
Isso aconteceu de modo particular a partir de 1978, com o início do pontificado
do polaco Wojtyla. Este papa, assessorado por uma Cúria ultraconservadora, foi
podando sistematicamente e cruamente todas as iniciativas da Igreja da
Libertação. Censurou e até cassou alguns dos mais renomados teólogos da
libertação, nomeou bispos tradicionalistas e perseguiu aqueles que tinham
desenvolvido em suas dioceses uma pastoral da libertação. Esta política
continuou no pontificado do alemão Ratzinger. Com a chegada do papa Francisco
houve uma diminuição da perseguição, mas ainda existem resquícios de tentativas
de assassinato da TdL.
A mais recente tentativa de
assassinato aconteceu poucos dias atrás. Segundo informação do site do
Instituto Humanitas da Unisinos, os membros da presidência do CELAM, em sua
visita anual à Santa Sé, afirmaram em entrevista que a TdL está “muito velha,
se não é que já está morta”. Embora tenha reconhecido os esforços dos teólogos
da libertação, o presidente do CELAM, dom Carlos Aguiar Retes, disse que depois
da TdL “temos uma reflexão teológica mais sapiencial” que abandonou a luta de
classes e a confrontação entre ricos e pobres. Com estas afirmações o ilustre
prelado, presidente do CELAM, tentou desacreditar a TdL: ela está velha ou morta e não é
uma teologia “sapiencial”.
Os membros da presidência do CELAM,
resquícios de um episcopado alinhado com a Cúria Romana de Wojtyla e Ratzinger,
ainda tentam sufocar uma teologia original, autêntica e que incomodou muita gente, especialmente os
empacotados de roxo e os purpurados que frequentavam as luxuosas casas e as
cozinhas das “raposas” (Lc 13,32) que patrocinaram a opressão, a injustiça e a
miséria em nosso continente.
Mas um simples olhar mostra que a
TdL não morreu e nem
envelheceu. Ela continua nova e vigorosa, antes de tudo no legado que nos foi deixado por pastores como
Oscar Romero, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga
e Dom Angélico Sândalo Bernardino, só para citar alguns nomes. O legado desses
pastores da libertação ultrapassou as fronteiras da própria Igreja Católica
Romana e as fronteiras do tempo. Hoje, no mundo, centenas de milhares de
mulheres e homens continuam a testemunhar a sua fé, graças ao testemunho desses
pastores da libertação. Milhares de iniciativas surgiram por conta da ação
pastoral desses bispos católicos e continuam existindo e agindo, apesar dos
ventos que sopram em sentido contrário.
Também alguns bispos e pastores de outras Igrejas irmãs, como a
Igreja de Confissão Luterana, a Igreja Anglicana, a Igreja Metodista, a Igreja
Presbiteriana, descobriram na TdL o caminho para uma ação mais incisiva em
nosso continente e no mundo. Não posso deixar de lembrar a figura de dois
representantes destas Igrejas: o pastor presbiteriano Jaime Wright e o pastor
luterano Milton Schwantes, verdadeiros ícones das Igrejas da Reforma no Brasil
e que encontraram na TdL o caminho para a evangelização. Ainda hoje homens e mulheres
dessas Igrejas, teólogas e teólogos, pastoras e pastores desenvolvem suas
atividades de anúncio da Boa-Notícia tendo como ponto de apoio a TdL. Sem falar
depois nas inúmeras iniciativas ecumênicas ainda hoje em pleno vigor e que
tiveram o seu berço na TdL. Basta lembrar, por exemplo, o Centro de Estudos
Bíblicos (CEBI) com a sua vasta produção de subsídios para a animação bíblica
popular. Por fim, cabe lembrar também a maravilhosa experiência das Comunidades
Eclesiais de Base, expressão máxima de uma Igreja que bebe na fonte da
libertação. Alguns tentam hoje minimizar essas comunidades, mas elas continuam
aí, existindo como jeito novo de ser Igreja. No último Intereclesial, realizado
no início deste ano em Juazeiro do Norte (CE), a terra do Padim Ciço, elas
mostraram a sua força e a sua pujança.
No campo da reflexão teológica,
depois da chegada do papa Francisco, houve uma retomada da TdL, até então
sufocada e proibida pelos monsenhores curiais. O pai da TdL, Gustavo Gutiérrez,
publicou recentemente com o Cardeal Gerhard Ludwig Müller , atual Prefeito da
Congregação Vaticana para a Doutrina da Fé, um texto no qual retomam os
principais elementos dessa teologia. O livro, originalmente escrito em alemão,
foi traduzido para o português e publicado no início deste ano por Edições
Paulinas, com o título: Ao
lado dos pobres. Teologia da Libertação. Muito
significativa a intervenção do Cardeal Müller, especialmente no capítulo quatro
do livro, no qual o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé fala das controvérsias
em torno da TdL. Antes de tudo o Cardeal Müller reconhece a sua legitimidade,
afirma a sua necessidade para a Igreja e diz tratar-se de uma autêntica
teologia. Lembra que a teologia latino-americana ajudou a corrigir a “clássica
doutrina social da Igreja”, construída a partir de um dualismo entre mundo
natural e mundo sobrenatural. O Cardeal Müller reconhece também a legitimidade
da mediação socioanalítica,
lembrando inclusive que esse tipo de recurso não é novidade na teologia
católica. Grandes teólogos, como Tomás de Aquino, já tinham utilizado tal
método, uma vez que é impossível fazer teologia abstrata, ou seja, sem partir
da realidade. O Cardeal chega mesmo a reconhecer a importância da mediação da análise marxista e até da referência à luta de classes, lembrando-nos
que o marxismo não deve ser confundido com o totalitarismo ideológico leninista
e stalinista. Aliás, diga-se de passagem, foram os teóricos do capitalismo, que
não conheciam o pensamento marxista, que confundiram Marx com Lênin e Stalin. Para o Cardeal Müller, ao mencionar a luta de classes, a TdL não entende
desenvolver uma guerra de eliminação de uma classe, mas apenas lembrar que “a
história não se desenvolve a partir do desenvolvimento harmônico de suas
virtualidades, mas mediante o antagonismo de princípios e de interesses
opostos”. A menção à luta de classes é um convite a participar “na luta da
graça contra o pecado e, concretamente, também, de uma encarnação da salvação
nas estruturas sociais promotoras da vida e uma superação do pecado e de sua
objetivação em sistemas exploradores”. Isso porque “a graça e o pecado não
existem simplesmente de modo puramente idealista e espiritualista em si, mas
sempre unicamente junto com sua encarnação e materialização nas condições de vida
humanas”.
A fala da presidência do CELAM tem
um lado positivo: mostra que no momento, em Roma, há um clima de distensão, de
mais respeito e de mais diálogo. Até alguns meses atrás seria impensável que
bispos discordassem abertamente do pensamento do Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé. Tal discordância era punida severamente, mesmo que fosse apenas
com o puro isolamento e descrédito dos interessados. A presidência do CELAM
ousou discordar do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que, como
vimos, tem outro olhar sobre a TdL. E isso é positivo.
Porém, é lamentável que tenham
tentado, a partir de Roma, decretar a caduquice e a morte da TdL; tenham
efetivado mais uma tentativa de assassinato da teologia latino-americana. É
lamentável porque foram essas tentativas que fizeram a Igreja Católica regredir
em nosso continente, perdendo a credibilidade e um número cada vez mais
expressivo de fiéis, como têm apontado as recentes pesquisas, mesmo que os
eclesiásticos queiram minimizar esses dados. Na Europa, onde a TdL nunca foi
admitida, o catolicismo agoniza, a Igreja envelhece rapidamente, tornando-se
cada dia mais feminil e senil. Os prelados do CELAM deveriam aprender com o
europeu Cardeal Müller, o qual afirma no texto acima mencionado que a Igreja,
tanto no nosso continente como no mundo inteiro, “não pode renunciar à
continuação e ao uso da Teologia da Libertação”, pois “a pretensão metodológica
da Teologia da Libertação, de empregar uma práxis transformadora, outra coisa
não é senão a nova formulação do evento original da teologia em absoluto”. Por
isso, no “contexto regional e para a comunicação teológica mundo afora, a
Teologia da Libertação é imprescindível” (p. 109).