Hoje trago para o blog Indagações-Zapytania uma reportagem
de Tulio
Kahn* que fala sobre a questão de relação entre as
estatísticas de suicídios e homicídios e a disponibilidade de armas de fogo na
sociedade brasileira.
Penso que o tema é muito atual e urgente, pois recentemente
foram retomados os debates e discussões sobre o Estatuto do Desarmamento (que
vigora no Brasil desde 2004) e hoje há grande pressão da parte de alguns grupos
de deputados e senadores federais para revogar esse Estatuto, articulando as
mudanças nas leis para facilitar o porte de arma para os cidadãos comuns. Alega-se
que seria direito de cada cidadão possuir a(as) arma(s) de fogo para a sua
própria defesa e segurança.
Uma parte da sociedade, talvez desorientada ou até ingênua
demais (para acreditar de que essa seria uma forma eficaz de se proteger contra
os bandidos e assaltantes), inclina-se para apoiar essas iniciativas. Também o
fato de existirem divergências em relação aos resultados de várias diferentes
pesquisas nesse campo não ajuda a sociedade a vislumbrar a melhor solução.
Eu, particularmente, considero um grande equívoco e
retrocesso esse enorme esforço e interesse desses deputados e senadores, que
lutam para revogar o Estatuto do Desarmamento e assim permitir que todos possam
se ‘armar’ contra a violência. Na
verdade, e todos sabem disso, aqui está em jogo o interesse da indústria
armamentícia para vender mais armas e com isso obter lucros maiores ainda.
Caso sejam aprovadas essas mudanças na lei – penso eu - com certeza os resultados
serão muito negativos. É lamentável que não se foque o objetivo das políticas
de segurança aos cidadãos no combate ao crime organizado, no combate aos de ‘fora
da lei’, isto é, aos bandidos e assaltantes,
para os ‘desarmar’. Mas, ao invés disso, quer-se colocar a arma na mão de muitos para se ‘defenderem’. Haverá, isso
sim, um ‘Bang-Bang’ em muitas situações imprevistas, com muito mais
mortes. Chegará o dia em que vai se lamentar os resultados. Aí será que esses
‘políticos valentões’ terão o mesmo empenho para reconhecer e assumir a sua
culpa?
O texto abaixo pode ser muito útil para muitos de
nós, para elaborarmos com mais frieza a nossa opinião pessoal sobre o tema em
questão.
Foi publicado em setembro deste ano (2015) no portal
Ponte.
Vale a pena ler
WCejnóg
O
depoimento de um dos principais criminólogos do Brasil sobre as armas
23/09/15
Em linhas gerais, isso foi o que aprendi
pesquisando a questão nestas duas décadas: onde existem mais armas, existem
mais suicídios e homicídios
Armas apreendidas pelas polícias Civil e Militar | Foto:
Luiz Silveira / Agência CNJ
Por Tulio Kahn
Passei a prestar atenção na questão das armas de
fogo quando trabalhava no Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas
para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), no final dos anos 1990,
e a ONU (Organização das Nações Unidas) publicara um estudo internacional
sugerindo que o Brasil era o país onde proporcionalmente mais se usava armas de
fogo para cometer homicídios.
Havia uma percepção difusa de que as armas estavam
de algum modo ligadas ao nosso crescente número de assassinatos – tanto que em
1997 o porte ilegal passou de contravenção a crime e é criado o SINARM (Sistema
Nacional de Armas) – mas pouquíssimos estudos empíricos sobre o tema.
Como sempre, sofríamos do crônico problema da falta
de dados e de pesquisas para embasar políticas públicas. A Lei 4937, de 1997,
produziu um forte impacto na venda de armas no país e para reclamar da queda de
40% no faturamento, a indústria começou a divulgar seus dados. Na literatura
internacional aventava-se a hipótese de que a taxa de suicídios local tinha
forte relação com a disponibilidade de armas e agora dispúnhamos de dados para
testar esta correlação no Brasil.
Este foi meu primeiro levantamento sobre o tema em
1999: tomamos as vendas anuais de armas da Taurus em 1997 e 1998, por Estado,
calculamos a taxa de armas por habitante e comparamos com a taxa de suicídios
disponibilizada pelo Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de
Saúde). E ali estava: confirmando um levantamento internacional que Martin
Killias fizera anos antes com 18 países, encontramos uma forte correlação
(r=.58) entre a quantidade de armas vendidas nos Estados pela Taurus e suas
respectivas taxas de suicídio. Não havia o tal “efeito displacement” (que afirmava
que “quem quer se matar se mata de qualquer jeito”). Nos Estados com menos
armas, menos gente se matava.
Hoje já está estabelecido que a relação entre
suicídios e disponibilidade de armas é tão grande que, se você não sabe ao
certo quantas armas existem em circulação num lugar, pode-se tomar a taxa de
suicídio como uma medida substituta. Esta foi a estratégia seguida por Daniel
Cerqueira, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aliás, para
corroborar os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre a queda dos homicídios em São Paulo, em sua tese de
doutoramento.
O principal motivo para se portar arma, segundo as
sondagens de opinião, é a proteção contra crimes. A segunda razão é “se sentir
forte” e a terceira “fazer boa impressão com os colegas”, como revelou a
pesquisa de Nanci Cardia do NEV (Núcleo de Estudos da Violência, da USP), em
1999.
Mas será que a arma de fogo realmente protege quem
a usa ou aumenta o seu risco? Esta foi a segunda oportunidade que tive de
estudar o tema, como colaborador, em 2000, de uma pesquisa conduzida por
Jacqueline Sinhoretto e Renato Lima para a Secretaria de Segurança de São Paulo.
Em 1999, Ignacio Cano, do Iser (Instituto de Estudos da Religião), já
estudara milhares de roubos no Rio de Janeiro e concluíra que o risco de levar
a pior durante um assalto – ser ferido ou morto – era maior para quem tinha
arma de fogo e reagira.
Os dados de São Paulo iam na mesma direção: segundo
o DataFolha, cerca de 18% dos paulistas andavam armados. Entre as vítimas de
latrocínio, 28% estavam armadas, sugerindo, portanto, que o uso da arma aumenta
o risco de ser morto num assalto. O sociólogo Claudio Beato acaba de divulgar
neste mês um estudo feito com 78 mil vítimas corroborando as conclusões destes
levantamentos anteriores, usando dados da pesquisa nacional de vitimização.
A mídia dava muita atenção na época ao armamento
pesado em mãos dos traficantes e os defensores das armas argumentavam que o
grande problema da violência era causado por armas importadas, de grosso
calibre, nas mãos dos criminosos. A discussão acabou pautando uma série de
pesquisas sobre o tipo de armas envolvidos nos crimes.
Para a surpresa geral, os grandes vilões não eram
os fuzis AR-15, mas os bons e velhos revólveres Taurus e Rossi, calibres .32 ou
.38. Os criminosos valorizavam a indústria nacional. Foi o que detectou nova
pesquisa do Iser, de 2000, analisando 590 armas apreendidas no Rio em razão de
crimes: 57% eram Taurus e 31%, Rossi.
Em 2004, me encontrava na Secretaria de Segurança
de São Paulo e pesquisando 15 mil armas apreendidas pela polícia encontrei
números bastante parecidos: 56% eram da Taurus; 14%, Rossi. Levantamentos do
Instituto Sou da Paz trazem os mesmos padrões. Assim caia por terra o argumento
de que o perigo vinha de fora.
Foram esses estudos que subsidiaram o debate sobre
a questão das armas de fogo e seu envolvimento com os níveis intoleráveis de homicídios
no Brasil, e que ajudaram a criar um cenário favorável para a aprovação do
Estatuto do Desarmamento, em 2003.
Não se trata, como alguns afirmam, de medida
petista para preparar a revolução bolivariana no Brasil. A discussão começou
bem antes e quase todo o projeto foi elaborado durante o período de Fernando
Henrique Cardoso como presidente, sendo apenas fruto da dinâmica congressual o
fato de ter sido aprovado no primeiro ano da gestão Lula.
A medida já constava do Plano Nacional de Segurança
Pública de 2000, do qual tive oportunidade de participar. Acompanhei de perto o
processo, tanto como conselheiro do Instituto Sou da Paz quanto como diretor da
Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), no último ano do governo
FHC, e de fato o controle de armas era uma questão consensual na comunidade
acadêmica bem como entre os principais partidos.
Lembro de passagem que, durante o período como
gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública, autorizei a compra de milhares
de armas pelas polícias, que, na minha opinião, são as únicas que devem
portá-las.
Na época da aprovação do Estatuto tinha acabado de
assumir a coordenação da CAP (Coordenadoria de Análise e Planejamento, órgão da
Secretaria da Segurança Pública de SP responsável pela sistematização final e
análise dos dados, onde os homicídios começavam a declinar lentamente desde a
Lei de 1997, que transformou o porte ilegal de contravenção em crime.
Os dados de 2004 começaram a chegar e as diferenças
eram nítidas: apesar do aumento das revistas e das buscas e apreensões, a
polícia conseguia apreender cada vez menos armas. A proibição do porte e o
aumento da punição e da fiscalização fizeram as armas saírem de circulação.
Todos os indicadores mostravam isso: o número de armas perdidas pela população
também caíra, junto com as apreensões de armas ilegais.
Como consequência da diminuição das armas em
circulação – a queda dos homicídios medidos pelo Infocrim (a base de dados
sobre a violência do governo paulista) e pelo Datasus – teve uma aceleração
abrupta após dezembro de 2003. Estamos falando aqui de uma mudança de patamar,
de uma quebra de nível na série histórica.
Usando series temporais e diversos procedimentos
metodológicos (teste de Chow, análise de intervenção, modelos ARIMA, etc.)
estimamos em 2005 que o Estatuto diminuiu em 12,9% o volume de armas
apreendidas no Estado, em 14,8% os homicídios na Capital, em 17% as agressões
intencionais com armas de fogo (Datasus), em 17,8% os latrocínios no Estado e
em 25,9% na Capital.
Naquela época, munido dos dados do Infocrim, passei
as estudar a morfologia da queda e a investigar todos as eventuais hipóteses
para explicar o que ocorria em São Paulo, que apresentava quedas na
criminalidade similares às festejadas quedas de Nova York, Cali ou Bogotá.
Os dados mostravam que a queda era generalizada no
Estado, abrupta e ocorria em áreas ricas e pobres, afetava jovens e velhos,
homens e mulheres, brancos e negros. A data do ponto de inflexão, a velocidade,
força e características da queda sugeriam que o Estatuto do Desarmamento era o
melhor candidato para explicar o fenômeno em São Paulo, ao lado de outras
variáveis de alguma importância, como a demografia, uso do Infocrim, aumento na
resolução de crimes de homicídio, melhorias na gestão das polícias e etc.
Diversos estudos, utilizando fontes e metodologias
diferentes, corroboram o que encontrávamos na SSP. O Ministério da Saúde
estimava em 2006 que o Estatuto invertera a tendência de crescimento linear da
década anterior e que o impacto era da ordem de 24%.
Um grupo de epidemiologistas publicou na Health
Affairs um estudo relacionando a queda no número de hospitalizações ao
Estatuto. Utilizando dados da SSP-SP, diversas teses acadêmicas corroboravam os
achados iniciais, como a de Gabriel Hartung, de Marcelo Justus dos Santos e de
Daniel Cerqueira, três economistas que utilizam econometria pesada para
garantir a robustez dos achados. Todos eles encontraram impactos significativos
do Estatuto do Desarmamento sobre os homicídios em São Paulo.
Quando se sente inseguro,
cidadão encara o risco de portar arma
Os ganhos não são permanentes. As armas estão
guardadas nas casas e quando crescem os roubos e aumenta a sensação de
insegurança, elas voltam a circular, como durante a crise econômica de 2009,
que criou um “soluço” na tendência de queda dos homicídios em São Paulo.
Trata-se de uma análise racional de custo-benefício: quando o cidadão se sente
inseguro, encara os riscos de andar armado.
Isso ajuda a entender porque os efeitos do Estatuto
foram desiguais pelo país. Num dos últimos escritos sobre o tema, um artigo
para a Revista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugeri em 2011, com o
apoio de evidências, que os efeitos foram maiores nos Estados do Sudeste e
menores no Nordeste em razão das diferentes conjunturas e dinâmicas
socioeconômicas destas regiões: onde o crescimento econômico foi acelerado,
como nas capitais nordestinas, houve um aumento dos crimes patrimoniais e da
sensação de medo, que levou a população a circular com suas armas e, consequentemente,
a um crescimento dos homicídios na região.
Não havia “clima” para falar em desarmamento, ao
contrário do Sudeste, onde a estabilidade e mesmo a queda de alguns crimes
contribuiu para o sucesso da nova Lei.
Em linhas
gerais, isso foi o que aprendi pesquisando a questão nestas duas décadas: onde
existem mais armas, existem mais suicídios e homicídios; o estrago é feito
pelas armas nacionais de baixo calibre, compradas legalmente e que terminam na
mão dos criminosos; portar armas aumenta o risco de ser ferido ou morto num
assalto; tanto a Lei 4937/97 quanto o Estatuto do Desarmamento tiveram efeitos
significativos sobre os homicídios em São Paulo; estes efeitos são tanto
maiores quanto melhor for a implementação e mais favorável a conjuntura.
Nos meus 30 anos de segurança pública, não
encontrei nenhuma outra medida ou política pública que tivesse efeitos tão significativos
sobre a criminalidade quanto o Estatuto teve. Agora o lobby das armas,
aproveitando a conjuntura anti-governo, quer acabar com umas das
poucas medidas que serviram para melhorar a segurança deste país.
Pouco
adianta falar em pacto para a redução dos homicídios se o Estatuto for
revogado. Os homicídios irão retomar com toda a força a trajetória linear de
crescimento observada desde os anos 1980 até 2003. Foi o que ocorreu durante a
farra das armas. É o que vai acontecer novamente caso o Estatuto seja revogado,
na convicção quase unânime da comunidade acadêmica que se debruçou sobre o
tema. Se está ruim com ele, ficará muito pior sem.
Fonte: Ponte.org
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*Túlio Kahn é doutor em ciência política pela
USP e considerado um dos principais criminólogos do país.
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