Artigo sobre o dia de
Corpus Christi, de autoria de Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos
(IHU) quatro anos atrás. Apesar de as datas da festa serem diferentes, o
texto continua sendo muito atual e pode
servir como uma boa reflexão para quem desejar ou estiver interessado no
assunto.
Achei oportuno trazê-lo hoje para o blog Indagações,
no momento em que no mundo inteiro a Igreja Católica celebra este dia.
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Eis o artigo:
Antonio Cechin
Jacques Távora Alfonsin
Dia
11 de junho [2009], festa ou feriado? “Corpo de Deus” ou “Corpus Christi”? Véspera do
dia de Santo Antônio ou do dia dos namorados? Os grandes meios de comunicação,
quando em português, designam o dia como de “Corpo de Deus”; quando em latim,
como de “Corpus Christi”. Essa dupla designação levanta a diferença fundamental
entre as religiões em geral e o cristianismo em particular. Para aquelas, “Deus
é um Espírito perfeitíssimo, eterno, criador do céu e da terra”. Por isso, se o
Deus das religiões é só Espírito, para elas é de todo inconveniente falar em
“Corpo de Deus”.
Cristianismo
fora de Jesus Cristo não está com nada. O Homem-Jesus-de-Nazaré veio ao mundo
2010 anos atrás, na Terra Santa ou Palestina. Deus, para as religiões, é
totalmente transcendente e tem sempre aqui na terra um profeta, um guru, alguém
em suma, que é quem o explicita. No islamismo, por exemplo, Deus é Allá e seu
profeta é Maomé; na religião afro-brasileira, Deus é Oxalá e intermediário é o
Orixá; em países asiáticos o Deus transcendente tem Buda como profeta. Enquanto
as religiões tem sempre seu referencial em Deus, o cristianismo fora do
Homem-Jesus-Cristo não existe. Porém Jesus que é um Homem de carne e osso é
também Deus em plenitude. Para os cristãos portanto, a festa do dia 11 está
muito mais para “Corpus Christi” do que para “Corpo de Deus”.
Há
uma pendenga no ar, em Porto Alegre, porque, neste ano, a festa do Corpo de
Cristo transcorre na véspera do dia dos namorados – 12 de junho – que é também
véspera de Santo Antônio, o santo casamenteiro. Os comerciantes batalharam para
que Corpus Christi fosse transferida para segunda-feira, dia 13 e assim fizesse
dobradinha com o dia de Santo Antônio, com dupla vantagem: a de criar mais um
feriadão e também mais uma de vendas a rodo, já que a data dos namorados é a
segunda festa anual em volume de comércio. É a famigerada “auri sacra fames”
dos antigos (a sagrada fome de ouro). Essa última festa vem assinalada por
miríades de corações estampados por toda a parte: lojas, ruas, praças,
restaurantes, etc. É a festa do amor por excelência segundo a grande propaganda
e por isso a consagração do namoro.
Na
prática sabemos que o amor humano com todo seu romantismo estampado nos
símbolos, dá a impressão de dar de goleada no amor divino que a fé tenta
extravasar nos ritos litúrgicos de Corpus Christi. Só que certos amores humano
exibido por multidões de namorados e celebrado pela mídia é muito mais paixão
que amor.
Qual é a distinção que fazemos? Certas paixões são sempre captativas,
individualistas, egoístas. Nessas, a pessoa coloca a si no centro e espera da
outra pessoa – o/a amada – a obrigação de estar totalmente voltada para
namorado(a) ou cônjuge. No AMOR é exatamente o contrário que acontece. Aqui,
AMOR é oblação, isto é, “eu que amo, quero fazer a pessoa amada inteiramente
feliz e realizada, mesmo que seja às expensas de meu bem-estar e alegria. Se
isso acontecer de fato, no relacionamento Homem-Mulher aonde um visa totalmente
a felicidade da outra e vice-versa, é o céu na terra sem solução de
continuidade depois da morte, junto do Deus-AMOR.
Jesus
Cristo é o Deus-Amor porque Ele veio nos revelar o verdadeiro AMOR oblativo,
total, só ele digno do nome Amor porque, o primeiro, o captativo é falso, por
isso morre logo aí adiante no arrastão do primeiro contratempo. O próprio
Mahatma Gandhi, que não era cristão, exclamou: “A um povo de famintos, Deus só
pode aparecer como Pão” e o Homem de Nazaré disse: “Não há maior prova de amor
do que dar a Vida por aqueles aos quais se ama!” Não só falou mas concretizou
com seus sofrimentos (paixão), morte na cruz, ressurreição e ascensão.
Tornou-se pão para ser símbolo máximo do infinito amor pelas suas criaturas.
Isto nós celebramos com a festa-feriado de Corpus Christi. As procissões que
levam o Pão consagrado por ruas, casas e janelas enfeitadas para a ocasião,
revelam uma devoção popular histórica, devota, cujo valor espiritual e cultural
tem de ser acentuado.
A ênfase que se dá a uma Presença
sacramental de Jesus Cristo não exclui, todavia, a sua presença igualmente
Real, Encarnada e Viva nos corpos daquelas pessoas que, como Ele, foram e têm
sido desprezadas, perseguidas pelo poder econômico, político e religioso
de cada época. À nossa volta existe muita gente processada, presa,
condenada e morta, justamente pela fidelidade que guardou ontem e guarda hoje à
Sua Vontade Libertadora e Redentora do mal, do pecado, da injustiça.
Uma
certa cerimônia religiosa, por sua pompa, solenidade vistosa e aparato, assim,
corre o risco de fazer do seu significado o esquecimento do seu significante,
sendo capaz de imitar ideologicamente uma exibição de autoridade e poder contra
a qual o Corpo de Jesus Cristo, vítima pobre, flagelada e crucificada pelo
mesmo tipo de mando, deu testemunho claramente oposto.
O
sentido litúrgico dos ritos, das procissões que celebram a Eucaristia, antes de
reduzirem o Mistério da Encarnação a uma Presença Mágica de solução de todos os
nossos problemas, recorda que ela apareceu numa certa mesa em que se
partia o pão para todas/os, um pão material que, além de saciar a fome
física dos comensais, pretendia perenizar tanto um modelo de amor, de partilha
e convivência, quanto uma Presença Divina na história.
O
fim transcendente ao sacramento celebrado na próxima quinta-feira parece não
ser outro que não o do concreto modo pelo qual esse modelo cumpre a ordem de
Jesus Cristo, “fazei isso em memória de mim”. Em que o “nem só de pão
vive o homem”, num contexto de repúdio à tentação de um consumo egoísta e
exclusivo, posteriormente responsável pelo assassinato do Filho de Deus, vai
ser confrontado depois pelo “... felizes os que têm fome e sede de justiça”,
“...foi no partir do pão que nós o reconhecemos”, num contexto de ressurreição
e de vitória sobre a morte.
Essa
explicitação serve bem ao sentido e à referência que a celebração de Corpus
Christi comporta. Questiona o reducionismo censurado pelo próprio Jesus Cristo
quando advertiu de que não “não é aquele que me chama de Senhor, Senhor, que
entrará no Reino dos céus”, pois entre os sinais dos tempos que aparecem hoje,
a ausência progressiva dos sinais da Eucaristia, aquela que não é puramente
sacramental, parece inquestionável. Tão Real como Essa, aquela constitui
desafio à prática de quantas/os querem ser fiéis a uma e à outra já que, em
verdade, nem deviam ser consideradas separadamente.
Entre discutir se a data de celebração de Corpus Christi, portanto, deve ou não ser feriado, se a procissão vai sair com chuva ou sem chuva, quem deve ou não levar o ostensório, parece mais importante refletir que pensamento, sentimento e ação ela nos convida a considerar como os mais apropriados ao Amor e à Vida que ela encarna.
Salvo melhor juízo, convém que a
gente participante da procissão em homenagem ao Pão Consagrado seja a
mesma que pega no arado sem olhar para trás, a que toma a sua cruz em
seguimento de Jesus Cristo, a que ama os pobres e os pecadores, não os julgando
para não ser julgada, a que, a caminho do Pai, espera encontrá-lO na
eternidade, menos por ter participado dessa homenagem e mais por ter dado a
vida pelo que aquele Pão simboliza e encarna.
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