Hoje quero voltar ao tema da Teologia da
Libertação. Para isso trago ao blog Indagações uma reportagem de Mauro
Castagnaro, publicada na revista mensal italiana Jesus,
em outubro de 2013, e, logo em seguida publicada também no site do Instituto
Humanitas Unisinos (IHU).
A matéria traz muitas informações,
esclarecimentos e depoimentos emocionantes e, com certeza, pode ser muito útil
para verificarmos se a nossa opinião sobre a teologia da libertação corresponde
à verdade. Por outro lado, esta é uma boa oportunidade para conhecermos melhor
o próprio padre Gustavo Gutiérrez através das suas colocações durante a
entrevista.
Não deixe de ler!
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IHU - Notícias
Terça, 08 de outubro de 2013
Gigante da teologia. Entrevista com Gustavo
Gutiérrez
Ele é um dos
pais da teologia da libertação e, por isso, esteve por muito tempo na
mira do Vaticano. Agora que Gustavo Gutiérrez foi recebido
pelo Papa Francisco e a sua obra foi reavaliada, ele traça um balanço sereno do
passado e delineia os desafios do futuro.
Vendo-o tão
pequeno e enfraquecido, caminhando aos tropeços, apoiado em uma bengala nos
claustros do Seminário Arquidiocesano de Seveso, na província de Milão,
é difícil pensar que o padre Gustavo Gutiérrez está na origem
causa de um movimento teológico que, ao longo das últimas quatro décadas,
motivou a participação de milhares de cristãos nas lutas pela justiça social,
perturbou o sono dos poderosos (a ponto de merecer estudos de centros
conservadores dos Estados Unidos e conferências
especiais dos exércitos de todo o continente americano) e provocou polêmicas na
própria instituição eclesiástica, principalmente pela sua suposta dependência
do marxismo. Mas quando esse padre de 85 anos abre a boca, logo se entende que
nos encontramos diante de um "gigante" do pensamento cristão.
A reportagem é
de Mauro Castagnaro, publicada na revista mensal italiana
Jesus,
de outubro de 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Reportagem
O
"pai" da Teologia da Libertação veio à
Itália para participar do 23º Congresso Nacional da Associação Teológica
Italiana (ATI) e apresentar, com o arcebispo Gerhard Ludwig
Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
no Festival de Literatura de Mântua, o livro escrito a
quatro mãos intitulado título Dalla parte dei poveri [Do lado dos
pobres].
Justamente esse
diálogo com Dom Müller e o encontro posterior, no dia 12 de
setembro, com o Papa Francisco em Santa Marta, foram
definidos como eventos "históricos", porque nas décadas passadas, ao
invés, o órgão da Cúria Romana encarregado de
vigiar a ortodoxia não tinha mostrado muita compreensão com relação aos
teólogos da libertação, emitindo em 1984 e em 1986 duas Instruções, em geral
bastante críticas, e censurando de várias formas e medidas alguns autores, como
os brasileiros Leonardo Boff e Ivone Gebara, ou o espanhol
naturalizado salvadorenho Jon Sobrino.
É a partir do
tema da amizade com Dom Müller que começa a longa
conversa do padre Gutiérrez com a revista Jesus:
"Eu o
conheci em 1988", explica ele, "quando o padre Josef Sayer,
à época missionário em Lima e, depois, diretor até o
ano passado da Misereor (a agência da Conferência Episcopal Alemã
que lida com a cooperação para o desenvolvimento), convidou um grupo de
professores alemães para um seminário ao qual me pediu para participar. O
professor Müller, que ensinava teologia dogmática em Munique,
no fim do encontro, me disse que a discussão lhe havia lembrado a importância
da prática, razão pela qual me propôs vir periodicamente ao Peru
para dar uma mão como professor. Durante 15 anos, ele sempre passou de três a
quatro semanas das suas férias anuais ensinando no seminário de Cuzco,
cujos alunos eram índios com uma escolarização muito baixa, e dedicando os fins
de semana ao trabalho pastoral nas áreas rurais. Eu não vi muitos professores
europeus passarem as suas férias assim! Naturalmente, quando ele se tornou
bispo, ele só pôde voltar ao Peru apenas por períodos mais breves. Ao longo dos
anos, a nossa amizade cresceu. Em suma, eu penso que ele é uma pessoa
intelectualmente muito aberta que teve a simplicidade e a coragem de dizer que
a perspectiva libertadora mudou o seu modo de conceber a teologia".
Eis a entrevista.
O
senhor acredita que a avaliação positiva de Dom Muller se limite aos seus
escritos ou também se estende à Teologia da Libertação como um todo?
Eu nunca lhe
perguntei, e, com efeito, quando ele fala da teologia da libertação, ele logo
me cita. Mas eu posso imaginar, sem me equivocar muito, que a sua avaliação não
diga respeito apenas à minha reflexão, porque as posições de nós, teólogos da
libertação, são essencialmente as mesmas, e eu nunca o ouvi criticar outro
autor.
A
Teologia da Libertação tentou reler a mensagem evangélica e a reflexão cristã
"a partir do pobre". Nas últimas décadas, a partir do seu tronco,
nasceram filões teológicos que tentam fazer o mesmo, mas "a partir da
mulher", "a partir do índio", "a partir do
homossexual" etc... O O que o senhor pensa?
Sempre me
pareceu importante dispôr de uma noção global, que para mim era a de
"insignificante", porque é possível ser insignificante por falta de
dinheiro, mas também pela cor da pele ou pelo fato de falar mal a língua
dominante em um país, como ocorre no Peru para a metade
indígena da população. Quando eu falo dos "pobres", portanto, eu não
me refiro apenas àqueles que têm uma renda baixa, mas também "a quem não
conta, não tem peso social", quem é marginalizado ou esquecido.
Já no livro Teologia da
Libertação, eu falava também de etnias e culturas
desprezadas, além, sobretudo a partir de 1975, da mulher, tanto que o documento
final da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano,
realizada em Puebla, no México, em 1979, retomou
um texto meu que fala dela como "duplamente oprimida, enquanto pobre e
enquanto mulher". Eu não aprofundei muito essa reflexão, porque sobretudo
as teólogas fizeram isso, e não era necessário repetir o que elas dizem. A
teologia feminista deriva da experiência da mulher, e isso me parece importante,
me interessa muito. Mas não é uma teologia só para as mulheres, porque ela tem
uma dimensão universal.
O Frei
Betto frequentemente enfatiza que, na última década, na América Latina, subiram
ao governo líderes ligados idealmente à "opção pelos pobres" e à Teologia
da Libertação. Como o senhor avalia essa referência?
Eu desconfio
muito dessas identificações. Certamente, o presidente do Equador, Rafael
Correa, tem uma educação cristã, tendo estudado em Louvain
com o padre François Houtart, conheceu o nosso mundo e fez referência a
ele. Ao mesmo tempo, é um economista com as suas ideias. E o chefe de Estado de
El
Salvador, Mauricio Funes, mencionou muitas
vezes Dom Romero, que, além disso, é um símbolo para todo o país. Os
líderes políticos têm todo o direito de citar essas referências, porque isso
significa que, para eles, são significativo, e isso me alegra.
A Igreja – eu
falo da Igreja, porque as ideias que se atribuem à Teologia da
Libertação também estão presentes também nos documentos do
episcopado latino-americano – motivou, embora não sozinha, o interesse pela
política pelos pobres, a justiça, os direitos humanos, e muitas pessoas se
identificaram com a teologia da libertação, mas ela não é um clube ou um
partido político no qual nos inscrevemos! Por isso, eu não acho que se possa
dizer que um presidente da República esteja ligado a ela. Eu não tenho dúvidas
– e isso me agrada – que a Igreja latino-americana nos últimos 40 anos
influenciou muito a sociedade.
E, por outro
lado, quanta repressão por parte dos governos foi motivada na luta contra a
teologia da libertação! Portanto, ela está presente no ambiente político, para
melhor ou para pior, mas há outros fatores que influem. Muitos anos atrás, um
jornalista de Barcelona me pediu uma opinião sobre a revolução
sandinista que tinha triunfado na Nicarágua, definindo-a
de "obra de pessoas ligadas à Teologia da Libertação". Eu objetei
dizendo que eu pensava que havia elementos mais importantes da teologia da
libertação: se na Nicarágua houve uma revolução,
isso se deve, acima de tudo, à violência e à injustiça da ditadura dos Somoza.
Não devemos perder o senso de proporção! A Teologia da Libertação
certamente motivou muitas pessoas, mas não se pode atribuir a ela todas as
ações. Eu me alegro que ela tenha uma influência: faz-se teologia para mudar
este mundo! Mas não é verdade que a América Latina mudou por
seu mérito.
Há
algum tempo o senhor está trabalhando sobre a questão do pluralismo religioso.
Qual é a sua posição a respeito?
É um tema muito
importante, sobre o qual eu estou refletindo há anos. Eu participei de vários
encontros sobre o diálogo inter-religioso, mas nunca vi representantes das
religiões animistas africanas, tão difundidas naquele continente, ou das
indígenas da Amazônia, mas somente das "grandes religiões
mundiais", ou seja, o Islã, o xintoísmo, o hinduísmo,
o judaísmo, que tem relativamente poucos adeptos, mas é muito importante etc.
Parece-me que isso não está certo se queremos construir uma hipótese científica
sobre as religiões que seja convincente. O diálogo inter-religioso é muito
interessante, mas para participar dele basta ter respeito pelos outros.
O problema real
diz respeito à teologia das religiões, e se trata do estatuto de Cristo
como salvador único e universal. Desagrada-me dizê-lo, mas eu penso que nenhuma
teoria até agora elaborada pela comunidade teológica é satisfatória, e chama-me
a atenção que Paul Knitter, que eu conheço bem e tem refletido e escrito
sobre isso muito mais do que eu, no seu último livro, diz mais ou menos o mesmo,
isto é, que o que produzimos até agora ainda são aproximações, e as hipóteses
atuais só desfizeram um pouco a névoa.
Em particular,
a tripartição "exclusivismo – inclusivismo – pluralismo", que até foi
útil em um certo momento, me parece superada, até porque as posições existentes
entre os teólogos não podem mais ser remetidas a essas três categorias. É
preciso ter a modéstia de admitir que devemos aprofundar ainda o tema no plano
teológico, o que, contudo, não é condição prévia para o diálogo com as outras
religiões, indispensável para nos conhecermos. Sobre tudo isso eu também falei
com o padre Jacques Dupuis, e eu o vi sofrer por causa das
incompreensões por parte da Igreja. Dupuis morreu triste,
depois de ter sido tratado muito mal...
Maltratado
como o senhor..
Sim, eu também,
em um certo momento. Mas depois aprendi que não é preciso perder o senso de
humor, uma virtude que ajuda a não nos sentirmos o centro do mundo ou um
exilado perene, a não nos levarmos muito a sério, e que impede que nos amarguremos.
Eu gosto muito de rir e acredito que isso me ajudou nos momentos difíceis. É
preciso seguir em frente, sem se sentir indispensável: até porque a reflexão
teológica teria continuado mesmo sem mim. No entanto, eu nunca fui objeto de um
processo, mas sim de um diálogo, mesmo que eu tenha tomado conhecimento dele
quando ele já tinha iniciado!
Com que
espírito o senhor viveu aqueles momentos em que percebia a desconfiança da
hierarquia contra o senhor?
É desagradável
ouvir que você é definido como "alguém que se infiltrou na Igreja para
destruí-la". Que alguém diga que não está de acordo é normal, mas aquela
acusação era maluca! A controvérsia, além disso, tinha uma forte dimensão
midiática no Peru; nela se envolviam bispos e personalidades
políticas. Eu dialoguei muito, não convenci ninguém das minhas posições, mas
talvez eles perceberam que aquilo que acreditavam sobre mim não era verdade. Em
Roma,
onde são mais cultos, eles entenderam mais e me perguntaram sobre o marxismo só
na primeira vez. Depois se concentraram em questões mais propriamente
teológicas.
Foi um caso que
durou diversos anos, até que, em 2004, o cardeal Joseph
Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
escreveu um breve texto para dizer que o diálogo tinha concluído de modo
satisfatório: não tinham encontrado nada de errôneo. Foi um mau momento, não só
para a relação com Roma, mas também para a situação no Peru.
Mas eu sou teimoso e constantemente busquei que me explicassem o mérito das
críticas, porque isso também serve para os outros, em vez de me submeter sem
discutir ou então romper o diálogo.
A
eleição do Papa Francisco e o seu desejo de "uma Igreja pobre para os
pobres" levou muitos a falar de "revanche" da Teologia da
Libertação. O que o senhor pensa? E quais seriam os desafios diante do novo
papa em sua opinião?
O papa ama os
pobres porque leu o Evangelho e o compreendeu. Pode até ser que ele conheça a
teologia da libertação e, se ela o ajudou a aproveitar essa importante
perspectiva cristã, melhor! Mas o desafio dos pobres está há muito tempo
presente no horizonte da Igreja, senão não se entenderia o martírio que temos
experimentado na América Latina, começando por bispos como Enrique
Angelelli, na Argentina, Oscar Romero, em El Salvador,
e Juan Gerardi, na Guatemala. Construir essa
"Igreja pobre para os pobres" é uma grande aposta.
E que
conseqüências ela tem?
Dizer que a
pobreza é um grande desafio para a Igreja implica em fazer mudanças. Por
exemplo, deve-se afirmar com maior força em cada país a necessidade de que as
necessidades dos pobres sejam a principal preocupação política, mesmo que sem
propor programas concretos, porque isso cabe à sociedade civil e política. E o
problema da pobreza não se reduz ao aspecto econômico, mas envolve, por
exemplo, a diversidade cultural, como é evidente no Peru,
onde a maioria da população tem raízes indígenas. As situações variam de país
para país, e as propostas devem ser muito concretas. Estou convencido de que
assumir a perspectiva dos últimos muda o comportamento dos cristãos.
Sempre se fala
da América Latina como de um "continente
católico", mas essa imensa pobreza põe dúvida que ela o seja realmente,
porque a nossa fé não se reduz a cumprir algumas obrigações religiosas, que têm
pouco sentido se não são acompanhadas pela luta pela justiça.
Todos os
cristãos deveriam compartilhar o compromisso com a dignidade das pessoas, com
os direitos humanos.
Fonte:
IHU
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