"É preciso dizer que a maioria dos padres é formada
por homens honestos, sérios, simples e inteiramente doados ao povo. E isso é
uma grande consolação. Mas, na maioria das vezes, esses padres não são
valorizados, não são apresentados pela mídia católica, sendo sobrepujados pelos
impostores, geralmente midiáticos e “carismáticos” que se apresentam ao
povo como os únicos modelos de presbíteros. Com isso o estrago está feito,
pois o povo, iludido por “lobos vestidos com peles de ovelhas” (Mt 7,15), acaba
deixando-se seduzir." - do texto abaixo
.
Hoje,
trago para o blog Indagações-Zapytania mais um artigo do nosso ilustre colega José Lisboa Moreira de Oliveira, que trata
com muita competência e clareza um
dos assuntos mais importantes e, ao mesmo tempo, dolorosos para a Igreja Católica
Apostólica Romana: a questão dos “impostores no Ministério da Ordem”.
Acho que este texto deveria ser amplamente divulgado e discutido no seio da própria
Igreja, em todos os círculos e setores. Caso contrário, infelizmente, não
haverá perspectivas de uma verdadeira e, sobretudo, autêntica renovação dessa Instituiçaõ, tão necessária nos
tempos atuais para ela poder cumprir a missão recebida de Jesus.
O autor publicou este artigo no seu blog O Chamado, no
mês de agosto de 2014.
Não deixe de ler!
WCejnóg
O
Chamado
Sexta-feira, 15 de agosto de 2014.
Análise
de conjuntura eclesial
Os
impostores no Ministério da Ordem
José
Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo,
teólogo, escritor e professor
O
meu amigo, Pe. José Antônio, do clero da arquidiocese de Mariana (MG), com quem
tive a grata satisfação de trabalhar no Setor Vocações e Ministérios da CNBB
(1999-2003), em recente artigo divulgado na internet, levantava a pergunta
acerca do principal medo do papa Francisco. A pergunta poderia
ser muito bem invertida para evidenciar quais são as pessoa que, na Igreja
Católica, mais temem as audaciosas propostas de renovação apresentadas pelo
papa Francisco, e que, a meu ver, estão condensadas na sua exortação Evangelli
Gaudium. Quem, na Igreja Romana, teria medo de propostas como esta:
“Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os
objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas
comunidades” (EG, 33)?
Com
certeza estariam em primeiro lugar os grupos católicos ultraconservadores, bem
representados pela Fraternidade São Pio V, fundada pelo bispo cismático
Lefebvre. Porém, os conservadores católicos não causam tanto medo ao papa e nem
o papa lhes provoca medo. Reagir a toda mudança na Igreja está no DNA desses
grupos, os quais acreditam piamente que o único modelo histórico de Igreja é
aquele construído a partir do Concílio de Trento, ou, pior ainda, a partir do
espírito da Contrarreforma.
Quem,
então, causaria medo ao papa Francisco, ou, melhor dizendo, quem tem medo das
propostas do papa Francisco? Pe. José Antônio, sem rodeios, afira que é o
“clero camaleônico”, ou seja, aqueles padres que vendo o ministério ordenado
como status, como profissão bastante rentável, como pedestal para a
fama e o sucesso, temem um papa que insiste em dizer que o ministério ordenado
é serviço e que os padres precisam “sentir o cheiro das
ovelhas”.
Prosseguindo
em sua reflexão, o Pe. José Antônio alerta para um particular assustador: a
quase totalidade desse “clero camaleônico” é formada por padres jovens e por
seminaristas, futuros padres, que já se comportam como se fossem ministros
ordenados. É assustador porque era de se esperar que padres jovens e
seminaristas, formados depois do Concílio Vaticano II, fossem capazes de acolher
com entusiasmo e paixão a proposta de renovação da Igreja apresentada pelo papa
Francisco. Mas não é isso que estamos vendo. Boa parte deste clero permanece
indiferente ao que o papa Francisco vem dizendo. Sinal claro dessa indiferença
é a falta de divulgação, de conhecimento, de estudo e de aplicação pastoral da
exortação Evangelli Gaudium. Pude constatar isso pessoalmente em
recente assessoria a um grupo numeroso de pessoas, na sua quase totalidade
formada por leigos, sobre a exortação papal. A queixa geral era de que os
padres não falam da Evangelli Gaudium. Constatou-se inclusive o
caso de padres que nem sequer sabiam da existência da exortação. Há poucos dias
uma senhora de uma paróquia do interior da Bahia perguntava ao jovem pároco de
sua cidade porque na sacristia da igreja paroquial ainda não tinha sido
colocada a fotografia do papa Francisco. Queria saber porque tudo tinha parado
na foto do papa Bento XVI. O pároco respondeu-lhe que a razão era o fato de que
os vidraceiros da cidade estavam sem moldura. Conversa essa que não colou, pois
a senhora, do alto da sua experiência de idosa, percebeu que o pároco
estava mentindo.
Mas
há também aquele grupo de padres e de seminaristas que faz de conta que acolhe
as propostas do papa Francisco. Age, porém, como camaleão, por mero oportunismo
e para continuar levando vantagem em tudo, visando não perder as benesses
oferecidas pelo acesso ao ministério ordenado. Este grupo de clericais
externamente faz de conta que aderiu ao papa Francisco, mas, na prática, sempre
que pode, oculta, desvirtua e desvia os ensinamentos papais, não permitindo que
o povo tome conhecimento daquilo que o papa Francisco está propondo com certa
insistência.
Diante
do que acabamos de expor vem de imediato a pergunta: o que leva padres e
seminaristas a agir desta forma? Por que temem o papa Francisco? Por que agem
com indiferença ou fazendo de conta que acolhem a palavra do bispo de Roma?
Inúmeros
estudos publicados nos últimos anos explicam de modo suficiente este problema.
São estudos com dados incontestáveis, baseados em pesquisas sérias. A própria
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Organização dos Seminários
e Institutos do Brasil (OSIB) e a Comissão Nacional de Presbíteros (CNP)
patrocinaram alguns desses estudos,
Duas causas estariam
por trás desse comportamento. A primeira delas é a visão de vocação presbiteral
como sendo a vocação por excelência. Ser padre é “dez”, é estar
acima de qualquer coisa. Chegar a ser padre é colocar-se acima de tudo e de
todos os mortais. A segunda causa seria o desejo das dioceses de suprir a falta
de padres, levando-as a admitir nos seminários e no presbitério
verdadeiros impostores que olham para o ministério ordenado
como a forma mais fácil de adquirir poder, status, fama e dinheiro. A tais
pessoas não lhes importa o serviço ao povo, mas as vantagens que
vão ter com o acesso ao ministério ordenado.
A
filósofa, socióloga e teóloga Arlene Denise BACARJI realizou recentemente um
estudo sobre essa questão, baseando-se em dados de pesquisas feitas em diversas
partes do mundo por eminentes pesquisadores. O próprio título do seu estudo é,
por si mesmo, bem sugestivo: A impostura no Ministério da Ordem.
Transtornos de personalidade e perversão no Clero à luz da psicanálise e da
psiquiatria. O estudo acaba de ser publicado pessoalmente
pela autora. É lamentável que ela não tenha encontrado uma editora católica
capaz de assumir a publicação, obrigando-a a fazer uma edição privada. Essa
recusa não deixa de trazer um grande prejuízo para a própria Igreja Católica.
Em
seu estudo, depois de analisar a origem do problema da impostura no Ministério
da Ordem, a autora se detém cuidadosamente na reflexão sobre os transtornos e as
perversões dentro dos quadros da Igreja, particularmente entre o clero. Fala
dos desvios institucionais, de personalidade antissocial, narcisista patológica
e sobre as perversões propriamente ditas. No final aponta algumas
possibilidades de saída do impasse.
Arlene
Bacarji mostra como a natureza hierárquica, uma falsa compreensão da
misericórdia, a segurança que o ministério ordenado proporciona e o celibato
visto como um modo de não se relacionar em profundidade com ninguém atraem com
muita facilidade pessoas com transtorno de personalidade e muita gente
perversa. A pessoa com essas patologias “sempre consegue um bispo desavisado,
misericordioso, confiante em sua remissão, que o acolherá” (p. 36). Bacarji
lembra que o sistema eclesiástico favorece tais pessoas, uma vez que “elas
aprendem rapidamente como subir em postos de poder, como fazer para serem
elevados a bispos, cardeais” (p. 43).
A
autora apresenta o perfil do impostor no Ministério da Ordem:
“O poder, o brilho, o sucesso, só dependem de sua eloquência no altar, de sua
capacidade de sedução e poder de atração, e de sua capacidade retórica,
persuasão, de introjetar os sentimentos e emoções na sua fala de modo que
impressione o público, para que seja admirado, endeusado e adorado. O Altar se
torna um palco. Pois a oficialização desse poder já está dada. A impostura no
Ministério da Ordem por estas personalidades todas que tratamos neste livro se
caracteriza pela grandessíssima capacidade da pessoa de fazer ‘teatro’.
Elas representam muito bem” (p. 43). E representam tão bem que são capazes de
camuflar a aversão ao papa Francisco e ao que ele propõe, bastando para tanto
apenas um “discurso bonito” (p. 44), ou seja, aquele discurso lacunar,
através do qual a pessoa fala um monte de baboseira que seduz os desprovidos de
senso crítico, mas que não diz absolutamente nada.
O
que fazer? Existem saídas? É claro que sim. O problema é saber se os bispos
estão dispostos a coloca-las em prática. Eu aponto pelo menos três. A primeira
delas é desmistificar a figura do padre, retirando dele toda auréola sacral que
o envolve. Apresentá-lo como um homem comum, normal, igual aos
outros, chamado por Deus a ser diákonos, ou seja, mero servidor dos
demais. Homem sinal sacramental de Cristo servo de todos, que veio para servir
e não para ser servido (Mc 10,35-45). Nessa perspectiva o acento deve ser
colocado sobre a vocação comum batismal, como nos lembrou o
Vaticano II na Lumen Gentium. O importante não é ser padre,
mas discípulo, seguidor de Jesus,missionário, como enfatiza
diversas vezes o Documento de Aparecida.
Uma
segunda saída seria a revisão do atual modelo de ministério ordenado,
focado excessivamente no padre celibatário que passa entre oito e nove anos no
seminário e que sai de lá bastante treinado para ser “aparentemente normal”,
mas que, na prática, é uma pessoa cindida, tendendo para a mentira
crônica (Bacarji, p. 45-64). Não há como resolver o problema da impostura no
ministério ordenado enquanto não se fizer uma reforma séria no ministério
ordenado, incluindo nele novas formas de ministérios que descentralizem o poder
e quebrem o monopólio e o autoritarismo dos padres.
A
terceira proposta de saída é a mudança de comportamento com
relação a essas pessoas. Bacarji lembra “que Cristo e o Evangelho não são
tolerantes com a hipocrisia e com a falsidade” (p. 45). Por isso, ela afirma
que “a misericórdia com estas pessoas deve ser pensada em outros moldes que não
a habitual. Talvez seja mais misericordioso impedi-las de terem oportunidade de
vivenciar suas perversões e patologias anti-sociais ou narcisistas, fazendo mal
às pessoas da Igreja, à própria Igreja, a Deus e a si” (p. 67). Isso significa
que a formação inicial dos candidatos aos ministérios ordenados precisa ser
maisséria, capaz de identificar possíveis impostores e
impedindo-os de chegar à ordenação. Mas para isso é preciso que à frente dos
seminários estejam pessoas equilibradas e não seres transtornados e perversos.
Por
fim, é preciso dizer que a maioria dos padres é formada por
homens honestos, sérios, simples e inteiramente doados ao povo. E isso é uma
grande consolação. Mas, na maioria das vezes, esses padres não são valorizados,
não são apresentados pela mídia católica, sendo sobrepujados pelos impostores,
geralmente midiáticos e “carismáticos” que se apresentam ao povo
como os únicos modelos de presbíteros. Com isso o estrago está
feito, pois o povo, iludido por “lobos vestidos com peles de ovelhas” (Mt
7,15), acaba deixando-se seduzir. “As batinas, hábitos, clergyman, para estas
pessoas, representam poder e também especialidade em relação aos outros
mortais, por isso muitos deles fazem questão dessas coisas já desde o
seminário” (BACARJI, p. 62). Precisamos, pois, estar muito atentos, pois a
impostura no ministério ordenado “costuma confundir muitos superiores e a todos
nós” (Ibid., p. 70).
O
livro de Arlene Bacarji pode ser solicitado pelo e-mail: arlened@uol.com.br
Fonte: Blog O Chamado