Trago hoje para o blog Indagações-Zapytania
um valioso artigo do professor e
historiador italiano Alberto Melloni*, sobre o Papa Francisco e as suas posições firmes
e bem claras como líder da Igreja Católica em relação às políticas dominantes
no mundo contemporâneo frente a conflitos militares e guerras civis em vários
pontos do nosso planeta.
Penso que vale a pena conhecer esse texto, razão
pela qual publico-o também neste espaço, na esperança de estar ajudando um
pouco na sua divulgação.
O
artigo foi publicado no mês de agosto de 2014 no jornal italiano Corriere
della Sera, e também, posteriormente, no site do Instituto
Humanitas Unisinos (IHU).
WCejnóg
IHU
- Notícias
Sexta, 22 de agosto de
2014
O papa contra as hipocrisias
da política. Artigo de Alberto Melloni
Aquilo que Francisco
usa, que Lutero não se ofenda, é a liberdade do cristão: a mesma que o
leva a olhar para a dor deste presente desmemoriado e desconfiado de um modo
que recusa para si a definição de "político".
A opinião é de Alberto Melloni,
historiador da Igreja, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia
e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha.
O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 19-08-2014.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto
Para um planeta que olha
deprimido para o umbigo da sua crise, o papa de Roma propõe uma leitura
de conjunto, afiada, audaz, memorável. A fórmula de uma "Terceira Guerra Mundial em
capítulos" que o Papa Francisco assumiu,
permanecerá como "o massacre inútil" de Bento XV?
Pode ser: porque
desmascara a hipocrisia que visa a reduzir o porte das coisas, dividindo de vez
em quando os bons (hoje cabe aos curdos) dos maus, e depois se adormenta, como
no fim dos contos de fadas. Francisco fez aquilo que nenhum líder
mundial era capaz de fazer: isto é, olhar para o mundo com verdade, sem
narcisismos.
Sobre a sua mesa, a
diplomacia vaticana descarrega informações que martelam um único ponto de vista,
o das vítimas que pontilham um horizonte de guerra que, a 2.500 quilômetros de Roma,
toca a Ucrânia, o Curdistão, a Síria, a Terra Santa,
a Líbia e que pouco mais além vê a África em chamas e o perigo da
tensão indo-paquistanesa, o terrorismo, a repressão, até a divisão das Coreias
que saúdam a chegada do papa com dois mísseis e a sua partida com as manobras
militares norte-americanas e às quais ele propõe a utopia de uma reconciliação
"sem vencedores nem vencidos".
Desacostumado (por culpa
dos cristãos) de ver o cristianismo caminhar na luz, acostumado a ver diluído o
fermento do Evangelho no tempo sob montanhas de astúcias, o mundo da mídia olha
atônito para a liberdade e a dureza com que o papa desloca o discurso público
com uma visão global de si e do mundo.
Aquilo que Francisco
usa, que Lutero não se ofenda, é a liberdade do cristão: a mesma que o
leva a olhar para a dor deste presente desmemoriado e desconfiado de um modo
que recusa para si a definição de "político".
Há um ano, Francisco,
e atrás dele o secretário de Estado vaticano, cardeal Parolin, faz
coisas incríveis que humilham a arrogância das chancelarias das grandes
potências e o oportunismo militaresco com que um Ocidente ex-cristão
tenta refazer a sua boa consciência sonhando com guerras que, como explicava o
secretário da Conferência Episcopal Italiana, Dom Galantino,
acabariam na conta daqueles que se diz que se quer defender. E que, além disso,
depois de terem alterado os parâmetros da política externa global, dizem que as
suas coisas não são "políticas".
Por que dizer que tudo o
que aconteceu – o apelo a uma
unidade da Coreia antes das manobras norte-americanas, o jejum contra o bombardeio da
Síria, que teria levado o califado ao Mediterrâneo,
a parada no muro de Belém e no
túmulo de Herzl, o convite a Peres e a Mahmoud Abbas, e
agora também essa hipótese de leitura da crise – não era "político"?
Para distinguir-se de uma "política" que não agrada a Francisco:
feita de astúcias das quais, nessa segunda-feira, no avião, o papa zombou,
lembrando com quais e quantos pretextos a "política" que é
prepotência se revelou.
Ele mesmo tinha
fornecido a chave de leitura dessa linguagem poucas horas antes, falando sobre
a China: ele tinha distinguido o diálogo "político" (em outros
termos, onde se medem as forças) do "fraterno" e "humano"
(onde se medem as sinceridades). E, a partir dessa intensidade humana, explicou
o horizonte de uma guerra camuflada pela fragmentação.
O papa colocou o dedo no
desastre apocalíptico do Iraque. Um mundo devastado pela insipiência
daqueles que reabriram a guerra entre sunitas e xiitas, e da qual Francisco
vê todas as vítimas no mesmo plano, rejeitando a lógica dos "cristãos
perseguidos" para tomar aquela (apocalíptica) das "crianças
mortas".
"Deter o
agressor" – a fórmula usada por Wojtyla para o cerco de Sarajevo
– é o objetivo que ele indicou e que é formulada por toda a consciência que
sente o clamor do pobre, mesmo de modo menos penetrante do que o ouvem os
ouvidos de Deus. Mas Francisco não se deixou arrastar a endossar os
bombardeios ou por aqueles que querem que ele retroceda da proposição "guerra
chama guerra".
Ele repassou para a ONU,
onde a Síria e a Rússia dirão o "eu avisei". E onde
talvez ele também dirá isso, aprofundando teologicamente a questão das crianças
mortas. Ele não se deteve nos outros quadrantes de crise hoje mais lancinantes,
como a Ucrânia: mas também não quis fazer distinções, como fazem aqueles
que imputam alguns mortos à guerra e outros a quem a faz.
Ele jogou uma pedra na
lagoa, e agora caberá à "política" se mostrar à altura dessa visão
das coisas. Ele não mudou o mundo, depois dessa entrevista: quem dorme em um
casebre, quem chora por um pai ou por um filho não sente a diferença, esmagado
como está pelo mistério da iniquidade.
Mas saber que a fé
cristã pode oferecer essa leitura de conjunto sem a qual estamos à mercê das
emoções de um momento é um desafio e uma bofetada naqueles que expulsam as
pessoas dos seus casebres, naqueles que matam os filhos das mães e as mães dos
filhos, naqueles que não entendem que uma amizade adiada sempre se torna
inimizade.
__________________________________
* Alberto Melloni (nascido em 1959) é
um historiador da igreja conhecido especialmente por seu trabalho sobre o
Concílio Vaticano II. Estudou em Bolonha, Cornell e Friburgo. Lecionou na
Universidade de Bolonha, na Universidade de Roma III e é agora professor de História
do Cristianismo na Universidade de Modena e Reggio Emilia, titular da Cátedra
Unesco para o Pluralismo Religioso e Paz, e diretor da Fundação de estudos
Religiosos João XXIII, em Bolonha (fscire.it). Ele também é um colunista do
jornal O Il Corriere della Sera, e faz comentários para a RAI
TV.
Professor
Melloni tem sido membro da Fundação desde 1982, Vice-secretary desde 2002 e
secretário-geral desde 2007. Fundada em 1953, a Fundação é um dos mais
importantes centros de pesquisa histórica na Europa. [In:wikipedia ]
Fonte: IHU - Notícias
Fonte: IHU - Notícias
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