O artigo de Michael Rozier, SJ, que hoje trago para o blog
Indagações-Zapytania traz um olhar crítico sobre a questão do surto do vírus
ebola em países africanos e sobre a reação de pânico e desespero nos países ricos
frente à possível epidemia dessa doença.
É importante indagar não somente sobre o perigo do
vírus e como o mundo pode se proteger dessa doença, mas também sobre todas as suas verdadeiras
causas. No mundo contemporâneo, onde os interesses dos países ricos deixam o resto do nosso
planeta em segundo plano, muitas verdades de fato não são contempladas e
tampouco divulgadas para o conhecimento
de todas as sociedades.
O texto foi publicado na revista America (nos EUA) e posteriormente também
no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
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IHU
- Notícias
Quinta, 23 de outubro de
2014
A verdadeira história sobre o
ebola
A rápida
propagação e o perfil exótico da doença, a luta contra um adversário tão hábil
em sobreviver como um vírus pode ser algo inebriante para a imprensa. E, embora
devamos mobilizar recursos para conter a onda de ebola na África
Ocidental, a história que hoje conhecemos tão bem pode não ser
a mais importante a ser contada. O ebola está matando as pessoas, mas o seu
verdadeiro poder vem da pobreza e da instabilidade política.
A opinião é de Michael
Rozier, SJ, doutorando do Departamento de Gestão e Políticas de
Saúde da Universidade de Michigan, Estados
Unidos. O artigo foi publicado na revista America,
22-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o artigo
O surto de uma
doença é uma história que pode realmente pega. Os invisíveis microrganismos
alojam-se dentro de um hospedeiro humano e viajam despercebidos entre as
grandes massas. Isto é, até que ele decida se revelar e colocar a humanidade de
joelhos. A narrativa é poderosa. Outras pessoas, que deveriam ser fontes de
apoio, de repente, tornam-se ameaças. Os cientistas devem fazer valer cada gota
de conhecimento para alcançar uma vitória apertada sobre o seu diminutivo
inimigo. Eu suspeito que estaríamos torcendo pelo vírus perdedor se ele não
estivesse nos atacando.
Tal é o caso com
o surto atual de ebola. O que começou como apenas alguns casos, em grande parte
ignorados, em março deste ano, na Guiné, acabou capturando a atenção
do mundo. Epidemias anteriores (como a SARS em 2003 ou o H5N1 em 2004) tiveram
taxas de mortalidade muito mais baixas do que o ebola, porém criaram uma
preocupação global similar. A rápida propagação e o perfil exótico da doença, a
luta contra um adversário tão hábil em sobreviver como um vírus pode ser algo
inebriante para a imprensa. E, embora devamos mobilizar recursos para conter a
onda de ebola na África Ocidental, a história que
hoje conhecemos tão bem pode não ser a mais importante a ser contada.
O ebola
está matando as pessoas, mas o seu verdadeiro poder vem da pobreza e da
instabilidade política.
Desde que foi
identificado, pela primeira vez, em 1976, houve quase uma dúzia de surtos de
ebola. Na instância atual, no entanto, o vírus fez o seu caminho em direção às
áreas urbanas da Guiné, Libéria
e Serra Leoa. Quando o vírus permanece isolado em postos
rurais, é mais fácil de conter. Mas uma vez que ele faz o seu caminho até as
cidades, onde há uma maior densidade de pessoas e mais movimento, cresce
consideravelmente a complexidade de isolamento e de quarentena.
Com mais pessoas
em situação de risco, uma maior cooperação pública se faz necessária. No
entanto, a população nesses países foi condicionada a temer as instruções do
governo. Na Libéria, o povo cresceu sob o comando de Charles
Taylor, um condenado criminoso de guerra, responsável por
crimes indescritíveis contra os cidadãos liberianos, crimes que beiram o
genocídio. Aqueles em Serra Leoa cresceram com décadas de
golpes e guerra civil, liderados por aspirantes a ditadores que recrutam
crianças para fazerem parte de seus exércitos. Parte da sobrevivência
necessária nesses países requer desconfiar e fugir do governo. Então, quando os
profissionais de saúde em uniformes oficiais querem reunir os familiares e
amigos que estão "doentes", é fácil ver por que o público não é tão
cooperativo quanto a gente gostaria. O vírus se desenvolve enquanto as pessoas
vivem com medo. Mas não podemos ignorar que somos nós, e não o vírus, que
originalmente costuramos a desconfiança.
Há uma outra
razão bem simples por que o surto na África Ocidental é mais complicado
do que deveria ser. Nos Estados Unidos, temos cerca de 24
médicos para cada 10.000 pessoas. Na Guiné, há um médico para o mesmo
número. Em Serra Leoa, um médico deve cuidar de 50.000 pessoas. E
na Libéria, há algumas dezenas de médicos para todo o país
cuja população é de 4,4 milhões de pessoas. Enquanto nos Estados
Unidos os epidemiologistas monitoram os pacientes em risco e
reservam quartos de isolamento para as pessoas infectadas, as nações do Oeste
Africano tem dificuldades para adquirir luvas de látex para os
seus trabalhadores de saúde ou água sanitária para desinfetar as camas onde as
vítimas morreram. Sim, o vírus é mortal. Mas não podemos ignorar que as formas
de pobreza ampliam o seu poder.
Nos Estados
Unidos, nós isolamos aqueles que estão doentes, colocamos em
quarentena aqueles que estão em risco e praticamos o "distanciamento
social" quando este é requerido (por exemplo, nas escolas ou locais de
trabalho próximos de surtos de gripe). Mas o que pode ser feito quando as
pessoas vivem grudadas em favelas urbanas? Milhares vivem amontoados na mesma
encosta em estruturas de telhado de zinco, batendo um no outro para cada
pequeno ato cotidiano. Os governos têm dificuldade de acessar as áreas para
recolher os corpos e as famílias não têm onde colocá-los. Água e saneamento são
inexistentes no local, de modo que a necessária desinfecção é uma fantasia. Um
vírus desenvolve-se nessas condições. Mas não podemos esquecer que fomos nós
quem o criamos.
A cobertura da
mídia sobre o surto de ebola tem recebido críticas de todos os lados. Eu
simpatizo com todas elas. Uma das críticas denuncia a ênfase desproporcional
dada aos poucos norte-americanos e europeus que têm a doença enquanto as
dezenas de milhares de africanos ocidentais são tratados como meras histórias
laterais. Outra compara os poucos milhares de mortos pelo ebola aos milhões de
pessoas que morrem de doenças cardiovasculares, diarreia ou HIV.
Esse argumento
sugere que, se a cobertura sobre o ebola diminuir, vamos prestar mais atenção
às doenças que matam mais pessoas. Mas é ingênuo pensar que este é um jogo de
soma zero. Se falarmos menos sobre o ebola, a lacuna será preenchida com as
escapadas de Justin Bieber em vez de formas de
reduzir a hipertensão.
Existem também
alguns mitos sobre o ebola que não vão morrer. Por exemplo, embora seja fatal,
não é altamente contagioso. Os epidemiologistas dão às doenças infecciosas um
número chamado de R0 (número de reprodução de base). Ele nos diz
quantas pessoas, em média, podem ser infectadas por alguém que tem a doença. O
número para o sarampo pode ser até de 18; para a pólio cerca de 6; gripe, 2 ou
3; porém, para o ebola é no máximo 2. Assim, embora o ebola seja mortal, não é
altamente contagioso.
Na saúde
pública, muitas vezes, descrevemos cinco fatores determinantes da saúde:
genética, comportamento pessoal, cuidados médicos, ambiente físico e fatores
sócio-econômicos. Os três primeiros obtem a maior parte da atenção no campo
sanitário, mas os dois últimos são muito mais poderosos do que imaginamos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o
código postal pode prever melhor o seu estado de saúde do que o seu código
genético. Isso é por causa da ampla influência dos determinantes sociais da
saúde. Seu nível de escolaridade, situação de emprego, redes sociais e
vizinhança, todos ajudam a modelar a sua capacidade de ter uma vida mais
saudável. E se uma criança quer se exercitar, por exemplo, mas as calçadas
estão rachadas, os sapatos estão caindo aos pedaços e os parques estão cheios
de equipamentos quebrados? Nosso instinto é ignorar as influências sociais e
ambientais sobre a saúde e concentrar-nos somente no comportamento pessoal e
nos cuidados médicos. Ou então, nós gostamos de culpar o indivíduo (normalmente
pelas doenças crônicas como diabetes ou obesidade) ou culpar o microorganismo
(tuberculose ou ebola). Mas deixamos de
avaliar o quão envolvidos todos nós estamos, o quão responsáveis todos nós
somos pelas condições sociais que favorecem o surgimento da doença ao longo do
caminho.
No caso do
ebola, é impossível imaginar milhares de mortes em lugares onde os governos são
confiáveis, onde as condições de vida são decentes e onde os sistemas de saúde
são fortes. Eu não estou sugerindo que todos os casos de ebola poderiam ser
evitados se livrarmos o mundo da pobreza (os novos casos em hospitais
norte-americanos bem equipados são prova suficiente para isso). Mas é falso
ignorar o ambiente social e físico, construído pelo homem, quando se fala dos
estragos do ebola.
Ao prestar
atenção a essas coisas, a culpa não é exclusiva do vírus. Nós não seremos
apenas as vítimas. Nós também nos tornamos responsáveis pelo seu efeito
devastador sobre a vida humana. Isso é muito mais difícil de aceitar. De
repente, a narrativa do surto torna-se muito menos atraente, pois ela não tem
mais um vírus complicado, microscópico como o vilão. Os seres humanos tornam-se
co-conspiradores.
O surto de ebola
acabará sendo interrompido. Ele vai se estender por meses a mais do que a nossa
capacidade de atenção pode aguentar, mas como instâncias anteriores da doença,
ele será extinto. No entanto, as condições sociais que permitiram a sua
expansão vão continuar em todos os cantos do mundo. Se pudermos aprender alguma coisa com ebola eu preferiria que não fosse
nada sobre essa doença em particular porque outra doença infecciosa vai surgir
em pouco tempo. Talvez em vez disso, possamos crescer em apreço pelas muitas
coisas que podemos controlar e prever, sobre as condições sociais que constroem
e perpetuam uma comunidade humana.
Se estamos
realmente interessados em parar o ebola e outras doenças contagiosas, deveríamos olhar mais
para as duradouras embora desconfortáveis verdades sobre a nossa
responsabilidade com relação a esses eventos. Ao longo do século passado, a
expectativa de vida humana aumentou em mais de 30 anos, principalmente devido à
melhoria dos determinantes sociais da saúde (menos de 20% desse ganho é devido
a uma melhor assistência médica). Mas os ganhos foram distribuídos de forma
desigual. Temos a capacidade de alcançar melhorias ainda maiores na saúde e a
atenção generalizada ao ebola apresenta
uma oportunidade para fazer exatamente isso.
A história real
não é sobre o ebola. Trata-se de nós. Quanto mais cedo admitirmos isso, mais
cedo vamos perceber nosso verdadeiro poder de impedir esses surtos antes mesmo
que eles comecem. Pode ser que isso não seja uma boa notícia, mas isso levaria
a um final mais feliz para todos nós.