Abaixo,
mais um artigo sobre a relação entre a ciência e a religião, e vice-versa. É de
autoria do cardeal italiano Gianfranco Ravasi.
Por
achar as colocações do autor bem contundentes, interessantes e muito úteis
para o esclarecimento de várias dúvidas que hoje norteiam muita gente,
principalmente os jovens e adolescentes, trago este artigo também para o blog
Indagações-Zapytania. Desta maneira, espero, pelo menos um pouco, contribuir para a sua
divulgação.
A matéria foi publicada no jornal Il Sole 24 Ore (Itália) no mês de junho de 2014 e,
posteriormente, também
no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Vale
a pena ler!
WCejnóg.
IHU - Notícias
Quarta, 18 de junho de 2014
Diálogo aberto com a ciência.
Artigo de Gianfranco Ravasi
Se
principalmente no passado era a religião que desembainhava a espada e atingia
sem hesitação o pensamento científico como blasfemo ou sacrílego – uma prática
hoje exercida somente por certos fundamentalismos sacrais –, nos nossos tempos, é a ciência que se arma para liquidar como falsa, primitiva e até perigosa toda forma religiosa.
A opinião
é do cardeal italiano Gianfranco
Ravasi, presidente do Pontifício
Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 15-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis
o texto.
Anos
atrás, mostraram-me a gravação do primeiro episódio de uma feliz série de
televisão norte-americana intitulada Cosmos,
dirigida por um astrônomo renomado astrônomo "naturalista" e,
portanto, ateu declarado, Carl Sagan, série que continua até hoje com outros diretores.
O que me
surpreendeu foi justamente as palavras de abertura que ele proclamava de forma
lapidar: "O cosmos é tudo o que é, ou foi, ou sempre será". O
cientista, como bom anglo-saxão, deveria ter se dado conta (ou talvez o fez
intencionalmente) que manejava uma frase teológica do Apocalipse: "Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o
Senhor Deus, Aquele-que-é, que-era e que-vem, o Deus Todo-poderoso" (1,
8).
No
entanto, ele cometia um erro científico, porque atribuía ao cosmos uma
qualidade teológica e formulava uma afirmação metafísica e não baseado na
evidência empírica. Esse é o risco da invasão, praticada em paralelo antiético
também por alguns teólogos.
Subentendido
a ele está um modelo muito praticado da relação entre ciência e fé, o do
conflito. Se principalmente no passado era a religião que desembainhava a
espada e atingia sem hesitação o pensamento científico como blasfemo ou
sacrílego – uma prática hoje exercida somente por certos fundamentalismos
sacrais –, nos nossos tempos, é a ciência que se arma para liquidar como falsa,
primitiva e até perigosa toda forma religiosa (pensamos em Dawkins e
no seu conhecido Deus, um delírio, em Crick, em Searle,
em Weinberg,
em Dennett e assim por diante).
Porém, um
cientista ateu célebre como Stephen
Gould já tinha
introduzido outro modelo de comparação muito menos combativo: ciência e
religião são dois "magistérios não sobreponíveis que devem permanecer
independentes". Famosa é a distinção que Langdon
Gilkey propôs: a
religião faz as questões do "porquê"; a ciência, as do
"como"; a primeira escava o "fundamento" do ser; a segunda,
se detém sobre a "cena".
Mas não
paramos por aqui, e floresceu um terceiro modelo relacional, chamado de
integração ou de diálogo: ciência e religião, embora conservando os seus estatutos
epistemológicos específicos, "precisam uma da outra para se completarem na
mente de um homem que pensa seriamente", como já escrevia em 1906 um
grande físico do nível de Max Planck.
Hoje quem
propugna esse encontro reciprocamente respeitoso são muitos cientistas e
filósofos (McGrath, Ward,
Craig, Swinburne, Flew e outros) e, entre eles, brilha o
astro de Francis
Collins, o artífice – com James Watson – do "Projeto
Genoma Humano", destinado a mapear os 20 mil, ou 25 mil genes do nosso
DNA, determinando, assim, as sequências dos três bilhões de pares químicos
básicos.
Nesse
percurso dialógico, prossegue um importante filósofo da religião, professor da Rockhurst University, de Kansas
City, Brendan Sweetman*. É
significativo que seja um filósofo, e não um teólogo ou um cientista, porque,
assim, ele está mais protegido contra tentações apologéticas, embora revelando
um ótimo pano de fundo científico e teológico.
O
resultado é um excelente equilíbrio de todas as questões em aberto, mesmo as
mais sangrentas ou febris. Sim, porque não há quem não veja que muitos
capítulos inaugurados pela ciência – como as neurociências, a engenharia
genética, as células-tronco embrionárias, a clonagem, a nanotecnologia – geram
cachos de problemas éticos, filosóficos e teológicos não pode nem ser varridos
com autossuficiência, nem explorados pelo cientista unicamente com a sua
instrumentação epistemológica.
A leitura
do texto de Sweetman é fascinante por duas razões (devo
confessar que, examinando-o, ocorreu-me de deslizar a uma sensação rara: é o
livro que eu gostaria de ter escrito sobre o assunto, se eu tivesse a
capacidade e competência necessárias, que, infelizmente, não possuo).
A
primeira qualidade é logo dita e é exterior: o texto é didático sem ser
didascálico, é atraente sem ser banal, é rigoroso sem ser severo. Não por
acaso, ele prossegue por "pontos" consequenciais e incrusta a página
com exemplificações e também referências culturais gerais.
A segunda
característica é, naturalmente, a mais decisiva e se concentra sobre o mérito.
Depois de uma premissa de índole histórica, em que se vai de Aristóteles a Darwin e
Freud, Sweetman entra no emaranhado dos
entrecruzamentos entre fé e ciência, sem nenhum pudor, ou reserva, ou timidez.
Assim,
logo se chega ao debate com o naturalismo, "o rosto moderno da
ciência", nos seus vários corolários. Depois, emboca-se a estrada
acidentada da evolução, com o cortejo de perguntas que essa teoria levanta em
nível de provas e com as implicações derivantes de natureza filosófico-moral.
Encontramo-nos, de tal modo, diante da pessoa humana submetida pela ciência
contemporânea a uma surpreendente modificação de conotações, a tal ponto que se
fala até de "transumanismo".
Fervem,
então muitas perguntas: o que é a consciência? E o livre arbítrio? E a inteligência
artificial? E o nexo mente-cérebro? E a alma? E uma hipotética outra humanidade
extraterrestre? Justamente esse último desafio, que está na base do discutido
projeto Seti (talvez alguns se lembrem do
filme Contact, de Robert
Zemeckis, de 1997, com Jodie Foster), abre outro horizonte
vertiginoso marcado por um imponente pergunta: há um projeto no universo?
A ideia
já havia sido formalizada por um obscuro filósofo, William Paley, em 1802, mas foi retomada pela
recente, aclamada e contestada teoria do Design Inteligente, devedora de Paley na
sua estrutura de fundo, mas com o recurso a mais argumentos, como o das
"leis físicas" (Swinburne e Davies) ou o "antrópico" (Barrow, Tipler, Polkinghorne).
Assim,
somos conduzidos de modo explícito e sem embaraços ao nexo Deus-universo que
também repercute sobre outra conexão, exaltada por Pascal, a entre nós e a
imensa grandeza do cosmos. Mas as interrogações aqui são abissais: de um lado,
o Big Bang, a relatividade, a mecânica quântica, e assim por diante; de outro,
Deus causa primeira e ator no palco do mundo.
Duas
ordens diferentes de quesitos, mas que se interpelam, se confrontam, se
aplacam. "Quanto mais descobrimos o universo – conclui Sweetman –
e quanto mais se faz necessário o diálogo entre ciência e religião, mais as
'questões últimas' se tornam difíceis de evitar, mais elas nos impelem a uma
resposta responsável".
E o
capítulo final unirá entre si os dois extremos, ciência e religião-ética em uma
sequência em que os anéis são distintos, mas não exclusivos; autônomos, mas não
repulsivos.
__________
* Brendan Sweetman. Religione
e scienza (editado por Andrea Aguti). Brescia: Queriniana, 272 páginas.
Fonte: IHU - Notícias
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