Hoje trago para o
blog Indagações-Zapytania um excelente texto de Ferdinand Mount *, que é a resenha do livro “Fields of Blood: Religion and the
History of Violence’, de Karen Armstrong **.
Foi publicado na revista The
Spectator (no Reino
Unido), em setembro de 2014. Posteriormente, também no site do
Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Considero
muito interessante e rica em detalhes a abordagem, repleta de informações e análises, que o texto apresenta. Realmente, vale a pena ler!
WCejnóg
IHU - Notícias
Terça, 30 de setembro de
2014
A religião não envenena as
coisas – as coisas envenenam a religião
"O
maravilhoso livro de Karen Armstrong purifica, com certeza, a nossa mente. Ele
pode até mesmo fazer um pequeno trabalho de reparo no coração",
escreve Ferdinand Mount, em
resenha do livro “Fields of Blood: Religion and the History of
Violence’ [Campos de sangue: Religião e a história da
violência], de Karen Armstrong, publicada na versão impressa da revista The
Spectator, 20-09-2014. A tradução é de Isaque
Gomes Correa.
Eis a
resenha.
O dizer está na
ponta da língua. Na verdade, é um mantra moderno: “A religião é a causa de
todas as guerras”. Karen Armstrong afirma que ouviu
isso por parte de psiquiatras americanos, taxistas londrinos e de muitas outras
pessoas. No entanto, as coisas não são bem assim. Para começar, de quais
guerras estamos falando? Entre as muitas causas que levaram à Grande Guerra, nunca ouvi
mencionar a religião. O mesmo em relação à Segunda Guerra
Mundial. Os piores genocídios no século passado – o
assassinato de judeus por Hitler e o massacre de armênios por Atatürk
(sem mencionar a expulsão e massacre contra os gregos na Ásia Menor) – foram
perpetrados por nacionalistas seculares que odiavam a religião em que nasceram.
As guerras inglesas dos séculos XVIII e XIX – as guerras
napoleônicas e a Guerra dos Sete Anos – se deram
por aquilo que o Duque de Wellington chamou de “a
escória da terra” por território e impérios, e não por crenças às quais seus os
líderes só pertenciam de forma nominal.
Precisamos
voltar ao século XVII e às guerras religiosas para encontrarmos um motivo
plausível. Hobbes certamente acreditava que os pregadores eram a “causa de
todos os nossos males”. Mas os historiadores modernos estão mais inclinados a
descrever a guerra civil inglesa como a Guerra
dos Três Reinos e/ou como uma luta contra a autocracia de Carlos
I. As guerras religiosas no continente europeu realmente
parecem uma consequência da divisão pós-Reforma, embora Armstrong
mostra que aí passou a haver uma rivalidade imperial também. O Papa
Paulo IV lançou-se na guerra contra o católico devoto Filipe II,
da Espanha. Os reis católicos da França aliaram-se com os turcos otomanos
contra os habsgurgos católicos e lutaram durante 30 anos no mesmo lado, como
também fez metade dos príncipes protestantes da Alemanha.
Deixando de lado
a Guerra das Rosas e a Guerra dos 100 anos,
as quais não foram guerras religiosas, precisamos remontar 700 anos até às últimas
Cruzadas para encontrar guerras sangrentas que tiveram
motivação religiosa.
Aí, finalmente,
encontramos um conflito no qual o pulsar da paixão religiosa nunca se
desvaneceu. De todas as gafes estreladas pelo mestre desta arte, George W. Bush, a sua
descrição da guerra contra o terror como sendo uma cruzada fica em primeiro
lugar.
No geral,
todavia, num início de milênio em que a religião tem se mostrado tão presente,
a possibilidade de ela ser, de fato, motivo para guerras parece, pelo
contrário, bastante secundária. O que então explica esta convicção moderna
obstinada de que a religião é o a força motriz do derramamento de sangue
organizado? Karen Armstrong construiu uma reputação formidável como
conhecedora das religiões mundiais, ao mesmo tempo
sendo uma oradora eloquente e simpática (o que é raro) além de imparcial (o que
é mais raro ainda). Na tentativa de separar os entrelaçamentos envolvendo religião
e violência, ela acompanha os grandes impérios e as
principais religiões do mundo. Sua obra “Fields of Blood” [Campos de sangue]
tem um texto fácil de ser lido e, na maior parte do tempo, é tão convincente
quanto lúcido e robusto.
A autora parte
um terreno um tanto instável. Ela conta que “há poucas provas de que os
primeiros humanos lutavam uns contra os outros”. Foi quando eles pararam de
caçar e começaram a plantar que a competição por terra, mulheres e gado se
iniciou: “com a agricultura veio junto a civilização, e com a civilização
vieram as guerras”.
Esta é
essencialmente a conhecida história do bom selvagem a nós ensinada por Rousseau e Margaret
Mead, sem mencionar Marx e Engels. No entanto, esta ideia atualmente está sendo
fortemente contestada. Steven Pinker,
na esteira do antropólogo Lawrence Keeley, no livro “The
Better Angels of Our Nature” [Os melhores anjos da nossa
natureza] afirma que as chances de uma morte violenta eram muito piores para os
caçadores-coletores do que para nós – 30 vezes mais, segundo Keeley.
Outros antropólogos ainda afirmam que os nossos ancestrais mais remotos
passavam o tempo rindo, fazendo amor e participando de jogos não ameaçadores. É
difícil dizer quem está certo. Parece ser uma questão de contagem de machadadas
dadas numa amostra não confiável de esqueleto. Devo dizer, no entanto, que a
tese geral de Pinker, de que o mundo está ficando
cada vez mais pacífico, realmente parece pouco convincente neste momento.
Armstrong traz
presente os elementos históricos que se cristalizaram nas grandes religiões.
Tipicamente, diz ela, estes surgem em condições de estresse social e de
violência estatal opressiva. O fundador prega que a matança cruel e incessante
só pode ser superada se olharmos o Outro como o nosso companheiro.
Invariavelmente, a regra de ouro é: todos são iguais aos olhos de Deus, faça o
que gostaria que lhe fosse feito, ame o seu inimigo, ofereça a outra face.
Esta mensagem é
comum a Confúcio, Zoroastro, Jesus,
Guru Nanak – o fundador dos sikhs
–, Gandhi e Nurse Cavell. Maomé
é também conhecido por ter dito a seus seguidores que “Ninguém é um crente
verdadeiro até que deseje ao irmão o que deseja para si mesmo”. Há muitos
versos no Alcorão que instruem os muçulmanos a não retaliar, e sim perdoar e
tolerar, a responder à agressão com misericórdia, paciência e cortesia.
Mas, é claro, há
outros versos que não ensinam isso (o famoso Verso da Espada), que incitam os
fiéis a abaterem os idólatras. A triste verdade é que as religiões se corrompem
com o sucesso. Quanto mais populares elas se tornam, mais próximas ficam do
âmbito dos poderes estatais, e mais as suas práticas e doutrinas precisam ser
remodeladas para atenderem aos seus novos senhores. Melancolicamente, Armstrong
reflete sobre esta questão:
“Toda a grande
tradição religiosa aproximou-se da entidade religiosa na qual surgiu; nenhuma
se tornou uma ‘religião mundial’
sem o patrocínio de um império militar poderoso – e todas as tradições
precisaram desenvolver uma ideologia imperial.”
É possível
manter a tradição antiga, como o fazem os sufis e os quakers, mas isso implica
ficar do lado de fora do circuito religioso. A conversão de Constantino
também significou o recrutamento do cristianismo. Não demorou muito para Agostinho
de Hipona desenvolver uma teoria
conveniente: a da “guerra justa”. De forma semelhante, os “Ahadith”
(ou Hadiz), conjunto dos últimos relatos da vida do Profeta, conferem uma
dimensão espiritual sobre a guerra que não existe no Alcorão.
Os sikhs militantes de hoje preferem citar as doutrinas marciais do Décimo
Guru, e não aqueles do fundador Nanak, o qual ensinava que somente
“é religioso aquele que considerar todos os homens iguais”.
O subtítulo do
livro de Christopher Hitchens está, nesse sentido, ao avesso.
Este não deveria ser “How Religion Poisons Everything”
[Como a religião envenena as coisas], mas sim “How Everything Poisons
Religion” [Como as coisas envenenam a religião]. Eia a
incompreensão que leva secularistas fanáticos a exigir que a fé seja removida
da praça pública e que seja proibida, permanentemente, de voltar a ela, como um
bêbado que não mais pode voltar ao bar onde sempre arranjava uma briga.
Esta exigência
foi ouvida, pela primeira vez, no século XVII através das palavras de Hobbes e Locke, tendo se tornado um artigo de fé para os
revolucionários americanos. Thomas Jefferson acreditava que a
Igreja e o Estado provaram constituir uma “combinação repugnante”, e esteve
determinado em construir um “muro de separação” entre os dois. O que ele não
poderia ter previsto era que o nacionalismo iria, sem esforço, assumir o manto
da moralidade (farisaísmo) bem como a linguagem apocalíptica. Dentro de 60
anos, a primeira república explicitamente não sectária explodiria em guerra
civil mais moderna e mortal, com sua causa imortalizada pela
retórica do não religioso Abraham Lincoln.
Desde então, a
ferocidade dos nacionalistas liberais tem acompanhado
tudo o que os fanáticos armados podem fazer. O próprio Charles
J. Hitch, ainda que infinitamente amigável nas relações
pessoais, não foi nada menos do que um saladino secular. Os dias após o 11 de
Setembro foram mordazes:
“Acho que os
inimigos da civilização deveriam apanhar, ser mortos e derrotados, e não faço
pedido algum de desculpas sobre isso. Não podemos viver no mesmo planeta que
eles, e me sinto feliz porque não quero viver dessa forma. Não quero respirar o
mesmo ar destes psicopatas e assassinos (...). É eu ou eles. Estou muito feliz
com isso, porque sei que serão eles.”
Todo ato de
terrorismo é, hoje, atribuído à intoxicação religiosa. Richard
Dawkins fala que “apenas a fé religiosa é força suficiente para
motivar tal loucura total contra pessoas sãs e decentes”. Mas Armstrong mostra
que os bombardeios suicidas foram, mais ou menos, inventados pelos Tigres
[de Liberação] do Tamil [Eelam],
“grupo separatista nacionalista sem vez para a religião”. Um estudo da
Universidade de Chicago sobre ataques suicidas em todo o mundo ao longo de 25
anos descobriu “pouca relação entre suicídio e terrorismo
e o fundamentalismo islâmico, ou qualquer
outra religião”. De 38 bombardeios suicidas no Líbano durante a década de 1980,
27 foram perpetrados por secularistas e socialistas, três por cristãos e apenas
8 por muçulmanos.
O primeiro
homem-bomba foi, provavelmente, Sansão. O Livro dos Juízes conta
que, ao derrubar os pilares do templo, Sansão matou mais filisteus em sua
morte do que em toda a sua vida. Armstrong aponta que a Bíblia
aprova o modo de agir ao estilo do 11 de Setembro, e o mesmo o faz John
Milton em Sansão Agonistes [ou Sansão
Guerreiro]:
“Nada aqui é para lágrimas, nada a lamentar
Ou bater no peito; sem fraqueza, sem desprezo,
Desprezo ou culpa; nada senão bondade e lealdade,
E o que pode nos acalmar em uma morte tão nobre.”
Ou bater no peito; sem fraqueza, sem desprezo,
Desprezo ou culpa; nada senão bondade e lealdade,
E o que pode nos acalmar em uma morte tão nobre.”
Estas palavras
estão esculpidas em bronze no memorial da Eton College
às centenas de mortes causas pelas guerras ao longo da história. Israel chama a
sua capacidade nuclear de a “Opção Sansão”. De fato, a destruição
mútua assegurada garante que, nas palavras imortais de Tom
Lehrer: “we all go together when we go’, ou seja, todos
iremos juntos quando formos, em tradução literal.
A religião vem
voltando à política de forma hedionda e pervertida, em grande parte pela mesma
razão que a fez surgir em primeiro lugar: como uma reação angustiada contra um
mundo sem coração. Os ocidentais lamentam que o Islã nunca
teve uma Reforma. Os muçulmanos podem retrucar dizendo que, se nós não
tivéssemos pisado em cima deles, eles não teriam a necessidade de uma reforma.
O maravilhoso
livro de Karen Armstrong purifica, com certeza, a nossa mente.
Ele pode até mesmo fazer um pequeno trabalho de reparo no coração.
ARMSTRONG, Karen.
Fields of Blood: Religion and the History of Violence [Campos de sangue: Religião
e a história da violência]. Editora Bodley Head, 499 p.
A obra está
disponível para compra via internet.
____________________
* Sir William
Robert Ferdinand Mount,
(nascido em 2 de julho de 1939), mais conhecido
como Ferdinand Mount, é um escritor
britânico e romancista, colunista do The Sunday Times e comentador de política,
e do Partido Conservador político. [In:
Wikipedia]
** Karen Armstrong
(nasceu em Wildmoor, Worcestershire, Inglaterra). É uma escritora e especialista em temas de religião, em particular sobre judaismo, cristianismo e islamismo. Autora de vários livros. Leia mais: Aquii.
(nasceu em Wildmoor, Worcestershire, Inglaterra). É uma escritora e especialista em temas de religião, em particular sobre judaismo, cristianismo e islamismo. Autora de vários livros. Leia mais: Aquii.
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