Justamente
nestes dias está acontecendo em Roma/Vaticano o Sínodo dos Bispos sobre o tema
da família. Quais serão as dcisões da Igreja? Será que haverá alguma mudança ou novas
orientações pastorais nesse campo? – são as indagações de muitos cristãos – católicos.
Neste
contexto, acho muito oportunas e úteis as considerações do Frei Bento Domingues
em relação aos temas que estão sendo discutidos e analisados por esse Sínodo. Uma leitura
tranquila e atenciosa desse texto pode ajudar muito a quem busca, a entender
melhor as questões em pauta.
A materia foi
publicada em três partes no portal www.publico.pt.
Para contribuir
um pouco na divulgação, trago-a também para o blog Indagações-Zapytania.
Não deixe de
ler!
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Convidados
para jantar, proibidos de comer
Por
Frei Bento Domingues O.P.*
In PÚBLICO 21/09/2014
I Parte
A participação numa refeição pertence à simbólica da Eucaristia.
1. No contexto da preparação do Sínodo dos Bispos, convocado para o Vaticano pelo Papa Francisco, a realizar de 5 a 9 de Outubro, sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, é normal que se tenham intensificado, nos diferentes continentes, os confrontos de tendências pastorais e teológicas sobre os antigos e novos modelos de família.
Na realidade, desde o Vaticano II, não houve pausa nas controvérsias sobre as implicações da celebração católica do casamento. Não serão extintas no próximo Sínodo dos Bispos. O Papa Francisco não pode nem deve fazer tudo sozinho e tem de contar com os pedregulhos que os adversários da sua orientação lhe colocaram e colocam no caminho.
Não estamos na situação dos primeiros cristãos. Eles julgavam que o fim do mundo estava mesmo a chegar, como se pode ver nas cartas de S. Paulo aos Tessalonicenses. Os próprios textos do NT acusam uma certa evolução acerca do casamento, pois as comunidades cristãs tiveram de responder a desafios que Jesus não pode nem podia humanamente prever. Para lhe serem fiéis tiveram de inovar.
Por outro lado, se a identidade cristã da família não tivesse nada a ver com a pluralidade de mundos em mudança e tivesse sido configurada na eternidade, de uma vez para sempre, nem sequer seria precisa tanta despesa na preparação, nas viagens e na estadia, em Roma, dos 253 participantes dessa Assembleia, que continua mais representativa da hierarquia eclesiástica do que dos fiéis.
2. O próprio Jesus nasceu na história de uma família com a qual nem sempre teve uma relação tranquila. A esse respeito, as narrativas de S. Marcos sobre a família de Nazaré são pouco piedosas.
Depois do cenário da constituição dos Doze para a pregação, Jesus voltou para casa. A multidão era tanta que os familiares nem se podiam alimentar. Perante esse facto, “os seus saíram para o deter, dizendo, ele está louco”.
Chegaram os escribas, os intérpretes da Lei de Moisés, confirmaram a sentença e manifestaram que era diabólica a causa daquela loucura: Belzebu está nele e “é pelo príncipe dos demónios que ele expulsa os demónios”.
O final desse texto regressa, de forma insólita, à questão da sua família: “Chegaram então a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: a tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele, porém, perguntou: quem é a minha mãe e os meus irmãos? Percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”(Mc
3).
Sobre o ponto de vista familiar, a sua visita a Nazaré foi um desastre completo (Mc 6,1-6). Na narrativa de S. João diz-se, longamente, que os seus irmãos o gozavam e não acreditavam nele (Jo 7, 3-5).
Existe um contencioso evidente entre Jesus, a sua família e a dos discípulos. Por que será? O seu propósito não era a destruição, mas a evangelização da família. Esta, grande ou pequena, não pode ser um mundo fechado. Não consta que este nazareno tenha constituído família, apesar dos romances que lhe atribuem. Ele pretendia algo que pode parecer uma loucura, mas que permanecerá como o verdadeiro sentido da história humana: somos todos filhos de Deus, chamados a fazer do mundo uma família de muitas famílias, de muitos povos e culturas. Somos todos irmãos.
3. Voltemos a assuntos caseiros que farão parte dos debates do próximo sínodo. A pergunta inevitável é esta: qual é o estatuto espiritual dos católicos que vivem em união de fato e dos católicos divorciados recasados?
Acerca dos que vivem em união de fato, há esperança que se venham a casar. Não há certeza de que não se venham a divorciar. Não está definido que os que vivem em união de fato não possam ser católicos e comungar.
Quanto aos divorciados recasados a controvérsia já conta com um grande dossier[1]. Houve a tentação de os considerar não católicos, de os situar fora da Igreja. João Paulo II não alinhou. Insistiu em que devem inserir-se na vida da Igreja, nas suas atividades e frequentar a Eucaristia.
Já ninguém se atreve a dizer que estão excomungados. Alguns configuram estratégias espirituais para que possam desenvolver uma profunda vida cristã e, na missa, comungarem espiritualmente, nunca, no entanto, aceder à comunhão sacramental. Mesmo em estado de graça divina, estão marcados por uma ruptura de uma aliança indissolúvel.
1ª Parte - Fonte: http://www.publico.pt
II
Parte
Que haverá, no que aconteceu há dois mil anos, que nos possa ajudar a
desassossegar o nosso presente?
1.
Aconselharam-me a ter cuidado com o modo como são abordadas as problemáticas
levantadas pelo Sínodo sobre a Família, pois a Igreja não pode dar a imagem de
que tanto abençoa casamentos como divórcios ou recasamentos.
Observação
sábia. Não me parece, no entanto, que nos encontremos perante esse perigo.
Receio algo diferente: que o descuido dos católicos com a significação da
complexidade do que está acontecer possa levar à indiferença, à banalização ou
a diagnósticos e remédios que matam.
As
religiões são expressões públicas e sociais da fé. O legalismo e o ritualismo
tendem a envenenar a sua vida concreta. Chegam a querer substituir-se à
liberdade de Deus e à consciência humana. A lei e o ritual pretendem traçar o
caminho a Deus e aos seres humanos: ou passam por ali ou não
passam.
Jesus
rompeu com essa concepção fundamentalista. O encontro de Deus connosco não
segue apenas nem principalmente o traçado das cerimónias do culto. O serviço
desinteressado dos mais necessitados é o seu teste inequívoco (Mt 25,
34-38). O próprio catolicismo precisa de ser continuamente evangelizado.
Sendo
esta a realidade cristã, para que perder tempo com os rituais litúrgicos?
Talvez porque somos humanos.
2. Tomás de Aquino, no
comentário à primeira carta de S. Paulo aos Coríntios (c 15), sobre a
ressurreição, tem uma posição arrepiante para os espiritualistas: a salvação da
minha alma não é a minha salvação, pois a minha alma não é o meu eu (anima
mea non est ego).
Ao
dizer isto não tenta oferecer uma explicação da vida depois da morte, da qual
não sabe nada. Parte da convicção de que a morte não pode ser a última palavra
do itinerário humano. A salvação não pode ser entendida como a reanimação de um
cadáver.
O
ser humano é uma viva corporeidade espiritual e um espírito
corporal. São duas dimensões de uma única e mesma realidade. Esta
perspectiva recusa qualquer dualismo, pois não se trata de um anjo
caído no mundo. Numa óptica cristã, a expressão “salvação das almas”
tem inconvenientes antropológicos, cristológicos e litúrgicos insuperáveis. As
celebrações sacramentais implicam uma corporeidade sensitiva e expressiva
marcada pela cultura e pela história. A inculturação litúrgica não é um luxo. É
uma condição de verdade.
Nos
debates do seu tempo, acerca da definição dos sacramentos cristãos, Tomás de
Aquino inscreveu-a no vasto mundo da simbólica, em todos os seus registos. A
diminuição da consistência sensível dos signos sacramentais é um atentado à sua
significação divina e humana. A sua primeira eficácia depende da capacidade de
evocação - uma exterioridade que acorda para uma interioridade -, para um
acontecimento de graça, de transformação da vida. O enfraquecimento da
densidade simbólica é meio caminho andado para a mecânica da magia: faz-se
o truque e acontece.
A
celebração dos sacramentos implica uma tríplice significação: a evocação de um
acontecimento do passado, a sua eficácia presente e a abertura a um futuro sem
clausura. Na Eucaristia, o sacramento dos sacramentos, quando lemos as
narrativas evangélicas, começamos sempre por dizer: Naquele tempo.
Não é para nos instalar no passado, mas para o confrontar com o nosso presente.
Não temos de resolver questões de há dois mil anos, mas perguntar: que haverá,
no que aconteceu há dois mil anos, que nos possa ajudar a desassossegar o nosso
presente?
Temos
a ideia de que o passado passou e acabou. S. Tomás, ao abordar os mistérios da
vida de Cristo, perguntava: como poderão esses acontecimentos salvar o nosso
tempo? A resposta tem sentido: Jesus estava completamente na onda de Deus e,
por isso, a sua intervenção histórica, o amor que a percorria, atinge
todos os tempos e lugares.
3. Tantas voltas para
quê? No Tablet [1], o cardeal Walter Kasper, é confrontado com o acesso dos
católicos recasados à comunhão eucarística. Sabe muito bem que há situações
diferentes, mas o que, em última análise, deve contar nas atitudes de toda a
Igreja é a misericórdia. Não está a dizer nada de novo, não só do ponto de
vista bíblico, como na sistematização teológica. A misericórdia
efectiva é o que de melhor podemos dizer de Deus [2].
Todos
estão de acordo que a simbólica da Eucaristia é a da refeição partilhada. Não
há quem negue que o sacramento da Eucaristia, do princípio ao fim, é a maior
celebração da misericórdia, do perdão, da reconciliação. Na própria consagração
do vinho diz-se, explicitamente: Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice
do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e
por todos para a remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.
2ª
Parte – Fonte: www.publico.pt
III
Parte
Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não são
Deus.
1.
Um leitor destas crônicas lamenta a minha perda de tempo com assuntos de moral
familiar e, em particular, com a discutida participação dos católicos
divorciados recasados na comunhão eucarística. As próprias expectativas de
mudança, no próximo Sínodo dos Bispos, são o resultado da preguiça católica em
pensar pela própria cabeça. Andar a pedir ordens ao clero é infantilismo
cultivado. Cada católico deve ser tutor de si próprio. Eu deveria limitar-me a
recordar a célebre resposta de I. Kant (de 1784) à pergunta: o que é o iluminismo?
A resposta é conhecida: “O iluminismo é a saída do
homem da sua menoridade de que ele é culpado. A menoridade é a incapacidade de
se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por
culpa própria, se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de
outrem. Sapere aude [1]! Tem a coragem de te servires do teu
próprio entendimento. Eis a palavra de ordem do iluminismo”.
Recordou-me ainda que o Vaticano II (1962-1965) foi
o começo de uma clara escuta de alguns ecos da modernidade, há muito
esquecidos: a consciência como primeira instância moral (GS 16); a declaração
sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), destacando que a
própria objetividade da verdade moral “não se impõe de outro modo senão pela
sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e
forte” (n.1).
Inteiramente de acordo, mas vamos por partes. Kant
tem razão: a recusa preguiçosa de cada pessoa se servir do próprio entendimento
e andar sempre a recorrer a um “diretor de consciência” é um exercício de
infantilismo e, por outro lado, uma atitude obscurantista de quem alimenta essa
dependência. No entanto, seria igualmente infantil não alimentar o próprio
entendimento com as investigações dos outros. O culto da auto-ignorância para ser
dono das suas decisões éticas, é uma demência. Somos seres de relação em todas
as dimensões. Não somos apenas responsáveis diante da nossa consciência, mas
também pela consciência que podemos ter do nosso mundo e do mundo dos outros.
2.
Louis Dingemans (1922-2004), sociólogo e teólogo, era um dominicano belga que
aprofundou, com um grupo de trabalho interdisciplinar, a situação eclesial dos
divorciados recasados [2].
Para a validade de uma celebração católica do
casamento sempre foi exigido o consentimento livre dos esposos e, como dizia
Kierkegaard, o amor nunca é tão grande como quando se assume como um dever
recíproco. A multiplicidade de uniões infelizes e divórcios, a fragilidade dos amores humanos ainda não
conseguiram estancar o sonho e o desejo de muitas pessoas se aliarem para
construírem uma história comum, que não esteja dependente dos humores de cada
dia. Encontram-se até pessoas “pouco praticantes” que pedem para se casar pela
Igreja e não é apenas pelas fotografias. Como diz L. Dingemans, parece que têm
uma vaga percepção de que o casamento, sendo uma loucura, precisa do Deus do
Evangelho, protetor dos loucos, sentindo que todo o verdadeiro amor é de origem
divina.
Muito ou pouco praticantes, por culpa ou sem culpa
de um ou de ambos, o fato é que existem rupturas sem remédio. Surgem, depois,
novas uniões. Pondo de lado a leviandade e os caprichos de muitos casos, também
existem divorciados recasados que nesses processos complicados aprofundaram e
redescobriram a sua fé, que desejam alimentar.
Como já vimos em artigos anteriores, não são
católicos excomungados. Pelo contrário, são convidados a participar na vida da
Igreja e a frequentarem a Eucaristia. Mas são proibidos de comungar: convidados para uma refeição e impedidos de
comer. À primeira não se entende esta incongruência e à segunda, ainda
menos. Invoca-se um estado permanente de violação da aliança matrimonial. Razão
apresentada: existe uma contradição objetiva de ordem simbólica, pois a aliança
entre Deus e a Humanidade, entre Cristo e a sua Igreja é atualizada pelo laço
entre marido e mulher. O autor citado mostra, de forma analítica, que este é um
argumento falacioso. Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não são Deus.
Podem falhar e a misericórdia de Deus nunca falha.
3. É
bom não esquecer uma oração da missa do Domingo passado: Senhor, que dais a
maior prova do vosso poder quando perdoais e vos compadeceis, derramai sobre nós
a vossa graça.
O Papa Francisco, que tem muita graça em receber a
graça de Deus, resolveu, na audiência geral do passado dia 10 (setembro),
propor que a Igreja, em todas as suas expressões, seja uma escola da
misericórdia. Não estávamos habituados. Era mais associada a um ministério
com tribunais lentos e sem piedade.
___________
[1] Atreve-te a pensar
[2] Cf. dossier Chrétians qui sont dévorcés
et remariés, Centre Dominicain de Froismont, Bélgica ; Louis
Dingemans, Mariage et alliance. L’ambiguïté d’un symbole,
Rev. Lumière et Vie, n 206 (1992), pg 25-38 ; Jesus face au
divorce, Racine|Fidélité, 2004
3ª
Parte - Fonte: www.publico.pt
* Frei Bento Domingues, O.P. é frade dominicano na ordem dos pregadores,
em Portugal.
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