“Tudo
o que se faz ou diz nas redes, toda produção ou exibição de gosto pessoal,
acaba servindo ao marketing ou à valorização de bens vendidos no mercado.” – do
texto abaixo.
O artigo A louca lógica do capitalismo
de vigilância,
de Rafael Evangelista*, é interessante e
esclarecedor. O uso da internet e a participação de redes sociais tornou-se tão
comum e frequente, que muito provavelmente muitos de nós, talvéz até a grande
maioria dos ‘usuários’, nem sequer suspeitamos que passamos a ser “usados” como
produto, o que possibilitou (e continua contribuindo para isso) o surgimento de
empresas de tecnologia de informação, que hoje se tornaram gigantescas e
poderosas, contadas entre as mais ricas do mundo. Podemos indagar: Como isso
acontece? O que está por trás desse enriquecimento?
O
artigo abaixo pode servir de uma boa ajuda para entendermos essa questão. Foi
publicado no Portal OUTRASPALAVRAS no mês de agosto (de 2015).
Não
deixe de ler!
WCejnóg
A louca lógica do capitalismo
de vigilância
Vigiar internautas, para conhecer seus desejos mais profundos,
tornou-se essencial para lucros do Facebook, Google e outras plataformas. Por
isso é tão importante examiná-las.
Por Rafael Evangelista
Em julho, fui convidado para uma mesa sobre direitos
humanos e internet no Fórum da Internet, realizado pelo Comitê Gestor (CGI). Na
ocasião defendi, entre outros pontos, que os grandes negócios da internet de
hoje se baseiam em vigilância e, no limite, em uma violação cotidiana da
privacidade dos usuários das diversas plataformas. Na mesa estava também um
representante do Google, que rechaçou a afirmação, apontando que, tecnicamente,
juridicamente, não se tratava de violação de privacidade, pois todos aceitamos
termos de uso que autorizam as empresas a coletar dados.
Parte da audiência protestou, não reconhecendo esse
caráter “voluntário” da adesão aos termos de uso. São longos, complexos,
abusivos e feitos para não serem lidos. Usar ou não usar essas plataformas está
longe de ser uma escolha livre das pessoas, somos levados a aceitar os termos
não porque concordamos com eles, mas porque estar fora de muitas dessas redes
sociais e plataformas da internet em parte significa isolar-se socialmente e
mesmo profissionalmente.
Mas, para além dos termos de uso, esse debate nos
permite discutir aspectos importantes do mercado atual de internet, mostrando
como os dados trocados entre as pessoas na rede são o combustível que alimenta
o motor de lucro das grandes empresas.
É lugar comum nos cursos de comunicação o professor
perguntar aos alunos, logo quando ingressam, qual é o real produto vendido pelo
jornal. Com misto de incredulidade e surpresa, ouvem que a mercadoria ali não é
a notícia, mas o leitor. É ele, a mirada de seus olhos no papel, que será
vendida ao anunciante. Da mesma forma, é a atenção de milhões de pessoas presas
à tela da tevê que vai justificar os milhares de reais pagos pelos vendedores
de produtos às emissoras que exploram o espectro eletromagnético e fazem
televisão.
Até aí, sem muita novidade, na internet isso também
acontece. “No Facebook o produto é você” é uma frase popular e igualmente
verdadeira: quanto mais usuários na rede social, mais valor de mercado ganha a
empresa. É aspecto da economia dos sistemas de informação, a escassez de
atenção que se dá pelo excesso de produção informativa. Nosso tempo consumindo
mídia se tornou um bem escasso, já que há tanta produção de mídia por aí.
Prender a atenção das pessoas é algo crucial e essa é
uma das razões que fazem as redes sociais viverem mexendo nos algoritmos que
determinam o que vemos e o que não vemos nos nossos feeds, nas nossas linhas do
tempo. Num polêmico estudo, o Facebook alterou os posts que seriam
vistos normalmente pelos usuários, para testar como variaria seu humor. “Para
nós, é importante o impacto emocional do Facebook nas pessoas que o usam, por
isso fizemos o estudo. Sentíamos que era importante avaliar se ver conteúdo
positivo dos amigos os fazia continuar dentro, ou se o fato de que o que se
contava era negativo os convidada a não visitar o Facebook. Não queríamos
irritar ninguém”, escreveu um dos
coautores do estudo.
Ter contato com algo muito contrário ao que
acreditamos nos causa cansaço, repulsa; algo muito semelhante à nossa opinião
nos dá tédio, é repetição. Como um
cassino que quer prender os jogadores o máximo de tempo em frente aos
caça-níqueis, as redes querem os usuários deslizando os dedos na tela, buscando
por incessantes novidades de seus “amigos”.
Contudo, a elogiada interatividade da internet, a
troca em mão dupla das informações na rede, dá novas características a essa
relação comercial da economia da atenção. Além de receberem informações, os
usuários também as enviam, mesmo involuntariamente, e isso é incorporado pelas
empresas numa espiral de valorização que vai além dos mecanismos tradicionais.
Seus próprios dados de usuário não têm valor comercial para quem os produz, mas
ao serem circulados pelas empresas tornam-se um produto com valor de mercado ou
um insumo ao aprimoramento da publicidade. Ninguém em sã consciência pensaria
em cobrar por um post no Facebook, ou pela visualização de uma foto no
Instagram ou por uma piadinha no Twitter. Para o amigo que vê aquilo tem valor
de uso, informa ou diverte. Mas, se o produtor tentasse cobrar por isso
dificilmente encontraria compradores. Já dados de navegação, lista de
amigos, buscas na internet são de valor ainda menos evidente e impossíveis de
serem colocados no mercado, por seus próprios produtores, em unidades
comercializáveis. Porém, quando organizadas em grandes conjuntos, pelas
plataformas que se tornam legalmente proprietárias dos dados que doamos ao
assinarmos os famigerados termos de uso, essas informações viram algo muito bem
pago.
Recentemente, o Facebook obteve direitos comerciais exclusivos
sobre a maneira como os usuário estão conectados
em uma rede. Basicamente, patenteou a possibilidade de uso comercial das listas
de amigos. Uma das aplicações imediatas, registrada na patente, é o digital redlining, a
prática de usar a informação sobre quem são seus amigos para conceder ou negar
crédito. Como o Facebook não está no ramo de emprestar dinheiro, supõe-se que
ele vá vender esse serviço a bancos, ou seja, lucrará com a informação sobre
quem são os nossos amigos na rede.
Quando acusadas, durante o caso Snowden, de coletarem
dados pessoais de seus usuários, os mesmos que acabaram sendo utilizados pela
NSA, as empresas defenderam-se afirmando a anonimização, o que quer dizer que
elas retirariam a ligação entre o dado de identificação e os dados produzidos
pelos usuários. Porém, anonimizados ou não, os dados, manipulados como
metadados (dados sobre dados), são úteis para tornarem a publicidade mais
direcionada e efetiva e, por isso, com maior valor de mercado. Não apenas o
fato de alguém marcar o seu time do coração com um like, ou dizer que assistiu
o filme x ou y é algo incorporado, mas os comentários sobre a mais recente
vitória do Palmeiras ou a menção feita a um amigo sobre o último show visto
ajudam a melhorar a precisão da publicidade, que agora é individualizada. Tudo
o que se faz ou diz nas redes, toda produção ou exibição de gosto pessoal, acaba
servindo ao marketing ou à valorização de bens vendidos no mercado.
O mesmo vale para a navegação rastreada por cookies,
aquelas pistas que vamos deixando dos sites acessados e que se tornam
informação usada para direcionar a publicidade. Esta em geral nem será vista
ali, por onde se passou, mas no site de um terceiro.
Ao ser lançado, o hoje hegemônico Gmail causou um
certo incômodo público, já que seu modelo de negócio, a maneira escolhida para
financiar o então inédito espaço de armazenamento oferecido ao usuário, passa
por um bisbilhotar ativo do que se escrevem na mensagem. Ainda que por um robô,
toda comunicação trocada via Gmail é lida e informa os bancos de dados do
Google. A princípio, isso é utilizado para mostrar uma publicidade direcionada
ao próprio usuário, mas nada impede que seja também usada como um termômetro do
mercado. Pode servir para antecipar a produção de algum produto, cuja demanda
potencial foi medida e estaria prestes a aumentar. Ou até mesmo orientar a
compra de ações da empresa responsável por essa produção.
O usuário não precisa nem apertar da tecla “enter” de
seu computador para ter a informação processada, como mostram as sugestões de
complemento para as buscas feitas automaticamente pelo Google Search. O mesmo
vale para textos no Facebook, que já usou a
autocensura dos usuários, aquilo que
eles escrevem mas acabam não enviando, como objeto de estudo. Seja em
pesquisas, seja em melhoramento direto e automatizado do mecanismo de busca,
essas entradas de dados dos usuários servem para melhorar – e valorizar
comercialmente – as plataformas de busca e sociais.
Google, Facebook, Twitter e outros não produzem
conteúdo, apenas intermediam trocas comunicativas e operam seleções
personalizadas sobre o que é trocado. O objetivo é reter a atenção e, ao mesmo
tempo, estimular mais produção de comunicação entre os usuários, que entretêm a
si mesmos, seja com produção criativa própria, seja com seleção de material
jornalístico, informativo, artístico ou de entretenimento encontrado na web
pelas próprias pessoas.
O lucro, por sua vez, não está somente na
intermediação, mas em um conjunto de práticas de rastreio, vigilância,
armazenamento, processamento e
apropriação privada de dados. São elas que permitem o melhoramento dos serviços
das plataformas e a constituição de novos produtos informacionais, que servem a
todo um conjunto de atores do mercado capitalista.
As empresas de tecnologia da informação estão hoje
entre as maiores do mundo, junto com bancos e empresas de petróleo, e se
sobressaem por sua lucratividade aliada ao baixo uso de mão de obra. Entender
melhor a natureza do enriquecimento dessas empresas, buscando destrinchar no
que se baseia esse crescimento é vital para enfrentar em lutas concretas as
desigualdades que o capitalismo produz.
Fonte: OUTRASPALAVRAS
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*Rafael Evangelista
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Doutor em antropologia social e professor do Mestrado em
Divulgação Científica e Cultural do IEL-Unicamp.
In: OUTRAS PALAVRAS
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