Hoje trago para o blog Indagações-Zapytania o artigo O fogo da morte no corpo da terra, de Ruben Caixeta*. Apesar de ser antigo (2012), o texto continua muito atual, falando com clareza e propriedade da questão indígena no Brasil. A sua leitura pode ajudar bastante a quem estiver aberto e interessado em entender o que realmente se esconde por trás dos conflitos de terra, e por que os povos indígenas precisam e merecem a ter os seus direitos assegurados e respeitados. Acho muito expressivas, fortes e corretas as colocações dos represetantes desses povos, citadas no texto abaixo.
Este artigo foi publicado originalmente no catálogo
da edição 2012 (FORUMDOC.BH) do Festival do Filme Documentário e Etnográfico e reproduzido por PISEAGRAMA.
Vale a pena ler!
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O FOGO DA MORTE NO CORPO DA TERRA
Por
Ruben Caixeta
Enquanto
comemoramos os 20 anos de demarcação da Terra Indígena Yanomami, a maior do
Brasil, constatamos a luta desesperada dos índios Guarani Kaiowá pela
sobrevivência num pequeno pedaço de terra no Mato Grosso do Sul. Nos últimos
meses fomos sacudidos e chocados por imagens e palavras: de um lado, a terra
nos era mostrada como um “ente vivo” que merece respeito e cuidado dos humanos;
de outro, a terra era reduzida a objeto a ser usado e transformado em
mercadoria pelo homem.
Num
artigo publicado em outubro de 2012, José Ribamar Bessa Freire
conta-nos que os Guarani, no primeiro século da era cristã, saíram da
região amazônica, onde viviam, e caminharam em direção ao sul do continente.
Dois mil anos depois, um italiano, nascido em 1948 na Toscana, atravessou o
oceano Atlântico com sua família, veio para Porto Alegre, de lá para Curitiba,
se naturalizou brasileiro e se instalou, finalmente, no Mato Grosso do Sul,
onde encontrou os Guarani, que lá estavam há quase 2 milênios. O italiano,
André Puccinnelli, recém-chegado, se tornou governador do Estado em 2007.
A
partir de 1915, os índios do Mato Grosso do Sul começaram a ver seus espaços
restringidos a pequenas reservas pelo Estado brasileiro, através do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), para que as terras indígenas fossem disponibilizadas
em prol do avanço das frentes de colonização pastoril e agrícola. Tal como o
governador André Puccinnelli, os fazendeiros, pecuaristas e agronegociantes que
chegaram ao Mato Grosso do Sul e ocuparam as terras dos índios eram, na sua
maioria, provenientes dos estados do sul. O confinamento dos Guarani em
pequenas reservas se intensificou nos anos de 1970: alguns deles foram parar em
acampamentos em beiras de estrada, outros se dispersaram no meio dos brancos ou
em terras estrangeiras, enquanto aumentavam as fazendas de gado, plantações de
cana, soja e outras lavouras de grande extensão.
Numa
carta de 17 de março de 2007, os professores e líderes Kaiowá disseram: “o fogo
da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra
sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A
pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras,
ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida.” Um aluno
Guarani de José Ribamar Bessa, ao entrevistar um velho guarani da aldeia de
Cantagalo, ouviu o seguinte depoimento: “Esta terra que pisamos é um ser vivo,
é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por isso que o
Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani não polui a água,
pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só que muita gente não
percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa
cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata
de um ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós”.
Os
índios Guarani Kaiowá têm sofrido a violência na pele. Os números são
alarmantes. Segundo um relatório do Conselho Indígena Missionário (CIMI), entre
2003 e 2010 foram assassinados 452 indígenas no Brasil, sendo 250 deles só no
Mato Grosso do Sul. Segundo o Mapa da Violência, elaborado pelo Instituto
Sangari e pelo Ministério da Justiça, a proporção de suicídios no país é de 4,9
para 100 mil pessoas – número que é 6 vezes maior entre a população indígena do
estado do Amazonas e 34 vezes maior entre a população indígena do Mato Grosso
do Sul. Entre a população jovem indígena, a taxa de suicídio chega a 446 casos
para 100 mil pessoas no Mato Grosso do Sul. A Organização Mundial de Saúde
(OMS) considera que a taxa de 12,5 para cada 100 mil pessoas é muito elevada. A
conclusão é de que os índices de suicídios dos indígenas no Mato Grosso do Sul
“não têm comparação nem no contexto internacional entre os países com taxas de
suicídio consideradas trágicas; não resta dúvida de que, neste campo,
deveríamos ter condições de formular, de forma rápida e emergencial, políticas
e estratégias em condições de enfrentar esse flagelo”.
Enquanto
tais políticas não são formuladas e muito menos colocadas em prática pelo
Estado, os índios Guarani Kaiowá, desesperados, enfrentam a bala e o poder
político e econômico dos fazendeiros num movimento de reocupação de suas
terras. Na última década, de forma mais intensa, os Guarani prepararam-se
para voltar a habitar as margens de cinco rios: Brilhantes, Dourados, Apa,
Iguatemi e Hovy. Foi o que fez um grupo de 170 índios Kaiowá, que ocuparam há
cerca de um ano e meio 2 hectares de mata na beira do rio Hovy, no município de
Iguatemi, no Mato Grosso do Sul. O lugar é denominado por eles Pyelito
Kue-Mbarakay, que significa na língua guarani “terra dos ancestrais”.
No
mês de setembro de 2012, o juiz federal Sergio Henrique Bonacheia determinou a
expulsão dos indígenas da terra reocupada, alegando que não importava “se as
terras em litígio são ou foram tradicionalmente ocupadas pelos índios ou se o
título dominial do autor é ou foi formado de maneira ilegítima”.
Esse
foi o estopim para que os Guarani Kaiowá se mobilizassem e escrevessem uma
carta, que teve ampla circulação nas redes sociais, na qual declaravam o desejo
de resistência e, ao mesmo tempo, escancaravam as intenções da “nossa” justiça
e do nosso tipo de sociedade hegemônica: se seriam de fato expulsos de suas
terras, marginalizados em alguma beira de estrada, considerados irrelevantes ou
obstáculos ao “progresso e ao desenvolvimento”, então que os fazendeiros e a
justiça assumissem sua real face, sua violência e seu desprezo. Eis duas
passagens da carta:
1)
“(…) avaliamos a nossa situação e concluímos que vamos morrer todos mesmo em
pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto
aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos acampados a 50 metros do rio
Hovy, onde já ocorreram quatro mortes, sendo que dois morreram por meio de
suicídio e dois em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das
fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de 1ano, estamos sem
assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje.
Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o
nosso território antigo Pyelito kue-Mbarakay”.
2)
“(…) ali estão o cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato
histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos
antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao governo e à
Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos
para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos,
de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de
enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os
nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais”.
Depois
dessa mobilização, a ordem de despejo foi cancelada ou adiada. O governo corre
de um lado para o outro para evitar que a violência manche sua imagem. Não se
discute nem se vislumbra tocar nos pontos essenciais que permitem tal
violência: o modelo de desenvolvimento em curso, a estratégia de exportação de
bens primários (dentre outros, soja e minérios). Na lógica do crescimento
acelerado, para se incluir o Brasil na órbita central do sistema capitalista e
financeiro mundial, é preciso “desentravar” terras ocupadas pelos índios,
quilombolas, ribeirinhos ou por todos aqueles que não estão dispostos a se
render a qualquer custo ao mercado ou a transformar suas terras, rios e
florestas em lagos para hidrelétricas, em plataformas de exploração de minério,
em pastos para bois ou em lavouras de cana-de-açúcar e soja. Enquanto isso, o
governo pretende “apagar as marcas” da violência do sistema
capitalista-desenvolvimentista e acalmar movimentos de base e minoritários ao
conceder migalhas financeiras e de poder àqueles órgãos responsáveis por
proteger e fazer respeitar os grupos minoritários e os direitos difusos: Funai,
Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial.
Para
defender seus próprios interesses, latifundiários e empresas mineradoras se
aliam a uma esquerda caduca e erguem uma bandeira cara à ditadura militar:
acusam os índios e seus aliados dos movimentos sociais e ambientalistas de
estarem a serviço de uma conspiração internacional contra a soberania da nação.
Não sem cinismo, calam-se em relação às grandes multinacionais da exploração
mineral, das sementes e defensivos agrícolas. Afirmam que as terras indígenas
somam 12 ou 13% do território nacional. Omitem que a maior parte dessas terras
está localizada na Amazônia, em região de difícil acesso (e, por enquanto,
inacessível à exploração mineral e agrícola), e que, para todo o resto do país,
apenas 1,5% das terras foram demarcadas para os índios, sendo que, por exemplo,
no Mato Grosso do Sul, onde vive boa parte dos Guarani Kaiowá, o território
demarcado para os indígenas representa apenas 0,4% da superfície.
A
fome dos ruralistas pela terra não tem limite. Depois da tragédia anunciada
pela carta dos índios Guarani de Pyelito Kue-Mbarakay, a presidente da
Confederação Nacional de Agricultura (CNA), Kátia Abreu, assim escreveu na
Folha de São Paulo: “É simplificação irreal e equivocada resumir o drama pelo
qual passam os 170 índios da etnia guarani-kaiowá a uma simples demanda por
terra. […] Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a
inoperância do poder público. […] Mais chão não dá a ele [ao índio] a dignidade
que lhe é subtraída pela falta de estrutura sanitária, de capacitação técnica e
até mesmo de investimentos para o cultivo.” Como já disse Henyo Barreto, não
deixa de ser impressionante como o argumento dos ruralistas é expropriatório: a
terra é uma questão e necessidade para eles, não para os índios. Mais do que
isso, a senadora Abreu está convicta de que os “empreendedores do setor
agropecuário” são vítimas: “ocorre aí uma expropriação criminosa de terras
produtivas, e o fazendeiro, desesperado, tem que abandonar a propriedade com
uma mão na frente e outra atrás”. E faz uma ameaça: “Se for da vontade do
governo e do povo brasileiro dar mais terra ao índio, que o façam. Mas não à
custa dos que trabalham duro para produzir o alimento que chega à mesa de todos
nós”.
O
que a ruralista está querendo é que os seus pares sejam indenizados se
porventura a terra que eles ocuparam dos índios for revertida para uso dos
índios. No entanto ela não pronuncia uma palavra sequer sobre a indenização aos
índios pelas mortes, expropriações, migrações forçadas e tantas outras sequelas
que lhes foram deixadas pelo “empreendedor” agrícola com a conivência do
Estado.
Bessa
Freire talvez não imaginasse que estava indo além da metáfora quando disse que
a relação que o índio tem com a terra é uma relação de “cuidado”, como
se cuida de uma flor, enquanto a relação do colonizador ocidental com a
terra pode ser descrita com a analogia do estupro: ela deve ser “desbravada”,
“desflorada”, “penetrada”. Uma reportagem do UOL, no dia 5 de novembro de 2012,
ouviu de uma índia guarani de 23 anos, da aldeia Pyelito Kue-Mbarakay,
que, no final de outubro de 2012, foi coagida por oito pistoleiros para que ela
os levasse até os líderes indígenas, e, como se negou, foi vítima de um estupro
coletivo.
Alguns
dias depois, no Acre, a Polícia Civil prendia Assuero Doca Veronez, acusado de
fazer parte de uma rede de prostituição infantil. Assuerro é o presidente da
Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Acre e foi vice-presidente da
poderosa Confederação Nacional da Agricultura (CNA), liderada pela senadora
Kátia Abreu. A polícia gravou, com autorização judicial, mais de 2,8 mil horas
que revelam uma rede intricada de exploração sexual de mulheres, dentre elas
meninas entre 14 e 17 anos, sendo que alguns envolvidos chegavam a oferecer
mais de R$ 2 mil para ter uma relação sexual com virgens. No dia 5 de novembro
de 2012, por determinação do desembargador Francisco Djalma, Veronez foi
libertado.
Em
julho de 2010, ao lado do ex-governador do Acre, Binho Marques (PT), e dos
atuais senadores Jorge Viana (PT) e Kátia Abreu (PSD), Assurero Veronez teria
dito na inauguração da sede da Federação da Agricultura do Acre: “Eu vejo as
imagens da boiada do Acre correndo pelos pastos e eu sinto o meu coração
estalar. Eu sinto o peito encher de orgulho e admiração pelo meu país, pelo que
nós conseguimos com essa pecuária maravilhosa, construída pelo esforço único e
exclusivo dos pecuaristas do Brasil”. E, em seguida, ouvido as elogiosas
palavras da amiga Kátia Abreu: “Pode existir alguém no país que conheça de meio
ambiente igual ao Assurero. Nunca ninguém mais do que ele. Há 13 anos este
homem luta incansavelmente para ver a legislação ambiental modificada. Quero
declarar ao Acre a gratidão de 5 milhões de produtores rurais a um acreano de
coração, que é o Assurero Doca Veronez”.
A
título de contraponto, retornemos às palavras dos índios Guarani e Yanomami,
que justificam porque estão preocupados com o futuro da humanidade e porque
querem guardar e cuidar bem da terra que lhes foi deixada pelos ancestrais.
Tonico Benites:
Os
Guarani e os Kaiowá têm conexão direta com os territórios específicos,
consideram-se uma família só, dado que o território é visto por estes indígenas
como humano. Eles possuem um forte sentimento religioso de pertencimento ao
território, fundamentado em termos cosmológicos, sob a compreensão religiosa de
que foram destinados, em sua origem como humanidade, a viver, usufruir e cuidar
deste lugar, de modo recíproco e mútuo. Portanto, eles podem até morrer para
salvar a terra. Há um compromisso irrenunciável entre os Guarani e Kaiowá e o
guardião/protetor da terra, há um pacto de diálogo e apoio recíproco e mútuo:
os Guarani e Kaiowá protegem e gerenciam os recursos da terra e, por sua vez, o
guardião da terra vigia e nutre os Guarani e Kaiowá.
David Kopenawa Yanomami:
Se
no centro desta cidade [em referência a Nova Iorque, quando por lá passava] as
casas são altas e belas, nas suas bordas, elas estão em ruínas. As pessoas que
vivem nestes lugares não têm comida e suas roupas são sujas e rasgadas. Quando
andei no meio delas, me olharam com os olhos tristes. Isso me dá dó. Os brancos
que criaram as mercadorias pensam que são gentes engenhosas e de valor. No
entanto, eles são avaros e não têm nenhuma preocupação com aqueles que, dentre
eles, são desprovidos de tudo. Como eles podem pensar ser grandes homens e se
achar tão inteligentes? Eles não querem saber de nada destes miseráveis que, no
entanto, fazem parte deles. Eles os jogam fora e os deixam sofrer sozinhos.
Eles nem mesmo os olham, e se contentam, de longe, em lhes atribuir o nome de
pobres.
Se
destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra? Quando
conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas,
mas seu barulho não para nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e
mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O
espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por
isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem
nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: “Estamos muito contentes de
rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro!”. O pensamento
desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra,
desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não
pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo
subterrâneo. Porém, é assim. Se os “brancos-espíritos-tatus-gigantes”
[mineradoras] entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios, eles
vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais.
Queremos
que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e
que continuem a viver nela os espíritos xapïripë, a caça e os peixes.
Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem
buracos na terra, nem rios sujos. Queremos que a floresta permaneça silenciosa,
que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se
possam ver as estrelas.
Fonte: Piseagrama.org
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*Ruben Caixeta - Antropólogo e professor da UFMG. É
cofundador e coorganizador do forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e
Etnográfico. Este ensaio foi publicado originalmente no catálogo da edição
2012. (In: FORUMDOC.BH.2015) Foto: Google
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