O artigo Na era da Discriminação Digital, de Rafael Evangelista*, é interessante e certamente
pode servir de ajuda a quem quiser conhecer e/ou entender melhor o que existe por
trás do uso da internet e da participação de redes sociais - fenômeno que hoje
cada vez mais está incorporado na vida dos homens e das mulheres no mundo
contemporâneo. Trata-se da questão da possível vigilância pessoal, que abre caminho
até para a discriminação. Isso mesmo: mais uma premeditada e refinada forma de
praticar a discriminação.
Podemos indagar: Como isso acontece? Será
que é real? De que se trata, na verdade?
O texto foi publicado no Portal
OUTRASPALAVRAS no mês de junho de 2015.
Para contribuir um pouco na sua
divulgação, trago-o para o blog Indagações-Zapytania.
Vale a pena ler!
WCejnóg
Como sistema financeiro usa Facebook e outras redes para negar ou encarecer empréstimos a quem tem amigos pobres, usa remédios psiquiátricos ou comete outros “desvios”.
Artigo
Na era de Discriminação Digital
03/06/2015
Por Rafael Evangelista
Depois das revelações de Edward Snowden, ficou fácil demonstrar como as
redes sociais e os serviços remotos na web (como os webmails e os aplicativos
de escritório) podem ser utilizados como instrumentos de vigilância pessoal.
Mas exemplificar os usos econômicos dessa máquina de vigilância é tarefa
mais ingrata. Os dados pessoais e as informações produzidas pelos usuários em
suas respectivas interações são usados para alimentar a força econômica das
empresas, numa relação que não é transparente e que contém injustiças ainda
difíceis de serem concretamente mapeadas, seja pelos movimentos sociais ou
pelos pesquisadores da área.
A crescente e promíscua relação entre as empresas de finanças e as grandes
companhias de tecnologia de informação e informática do Vale do Silício, na
Califórnia, ajudam a deixar essa exploração mais clara. Estão surgindo com
força empresas embrionárias (startups) que usam informações dos usuários
obtidas nas redes sociais para elaborarem um número, um índice, que
determinaria a capacidade de pagamento de um possível tomador de empréstimo.
Com isso, as empresas teriam mais segurança sobre quem poderia dar calote e, em
tese, poderiam oferecer taxas de juros menores para aqueles que fossem bem
avaliados. Na prática, o que vem acontecendo são práticas discriminatórias
justamente contra aqueles que mais precisam, os grupos sociais historicamente
mais fragilizados: imigrantes, negros, mães solteiras, moradores de bairros pobres
etc.
Uma reportagem recente da revista estadunidense
The Nation entrevista vítimas do chamada “digital redlining”. O termo
redlining
refere-se à linha vermelha imaginária feita pelos bancos em determinados
bairros pobres, para marcar populações dentro de uma área geográfica e para as
quais são praticadas taxas de juros mais altas. Essa exclusão e
discriminação agora foi importada para o mundo digital, sendo desenhada não
mais sobre um mapa, mas por um robô que integra dados importados, entre outros,
de redes sociais. Este reúne a grande massa de dados de redes como o Facebook
para determinar juros mais altos para certas pessoas.
Para o pobre, que mais precisa do empréstimo, não se trata de
simplesmente estar fora das redes. Essa opção pode ser ainda pior, pois o
sistema acaba entendendo a falta de dados como algo suspeito e aplicando as
maiores tarifas ou negando transações.
Projetos como o Internet.org, voltados às populações mais pobres,
colocam ainda mais pressão sobre as pessoas, forçando sua entrada na rede
social e o compartilhamento de informações com as companhias. O Internet.org
fornece acesso à internet gratuito, porém limitado a um conjunto de sites,
sendo o principal deles o Facebook.
Uma das empresas parceiras do projeto é a Lenddo. O usuário que nela se
cadastra e baixa o aplicativo no celular tem acesso a compras online,
empréstimos e serviços de colocação profissional. Em troca, permite que suas
atividades sejam monitoradas — ações como a interação ou amizade com certas
pessoas — e que a partir desse monitoramento seja produzido um LenddoScore, um
número que reflete o quanto o usuário é “confiável”. A Lenddo já é oficialmente usada por
financeiras das Filipinas para produzir perfis de pessoas que estão fora do
sistema bancário. Também dá informações para que telefônicas neguem o acesso a
planos de celular pós pagos e fornece informações a empregadores em busca de referências
para possíveis trabalhadores.
As populações dos países periféricos, onde o Internet.org já
atua, são particularmente vulneráveis, pois o sistema jurídico dá poucas
garantias aos cidadãos quanto a abusos e discriminações. Quênia, Gana,
Colômbia, Índia, Bangladesh, além das Filipinas, já estão nessa lista. Mas
mesmos nos países ricos a complexidade técnica desses instrumentos de predição
usando dados de navegação na internet torna difícil comprovar que, por exemplo,
o fato de alguém buscar remédios psiquiátricos foi o fator preponderante para
ter um financiamento negado.
A Lenddo é apenas um exemplo. Outras empresas de natureza semelhante já
atuam, inclusive nos países ricos. Em um dos casos citados pela Nation,
uma estudante em dívida com empréstimos educacionais torna-se alvo de
crédito predatório a partir de dados coletados em sua atividade online.
A internet, ao mesmo tempo que ofereceu grandes oportunidades para a
expansão da criatividade e da liberdade de comunicação, tornou-se um lugar
propício para novas estratégias de revitalização do capitalismo, agora baseado
na exploração informacional. Vamos passando de um sistema em que o mau pagador
era punido para uma estrutura em que o castigo vem antes, pelo cálculo
probabilístico do delito futuro. A desigualdade de forças, a assimetria no
controle da infra-estrutura tecnológica, o grande poder econômico
derivado do controle de grandes bancos de dados das populações são um
terreno fértil para o aumento da exclusão e do controle.
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* Rafael Evangelista - Doutor em antropologia social e professor do Mestrado
em Divulgação Científica e Cultural do IEL-Unicamp.
Fonte: OutrasPalavras