Embaixo, a segunda parte do depoimento do atual
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Müller, que fala sobre o tema da Teologia da Libertação.
A matéria, intitulada ‘Minhas experiências sobre a Teologia da Libertação’,
foi publicada em 18 de setembro de 2012 no Adital. Todas as pessoas que procuram
a verdade sobre o assunto encontrarão aqui
muitos valiosos esclarecimentos e informações.
Não deixe
de ler.
WCejnóg
18.09.12
- Mundo
[Gerhard
Müller] ‘Minhas experiências sobre a Teologia da Libertação’
Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé.
Adital
(2)
Minha participação em cursos teológicos,
especialmente nos seminários de Cuzco, Lima e Callao, entre outros, esteve
sempre acompanhada de longas semanas de trabalho pastoral nas regiões andinas,
especialmente em Lares, na arquidiocese de Cuzco. Ali os rostos adquiriram um
nome e converteram-se em amigos pessoais, experiência esta de Comunhão
universal no amor a Deus e ao próximo, o que deve ser a essência da Igreja
católica. Finalmente, foi para mim uma profunda alegria quando, em 2003, em
Lares, na arquidiocese de Cuzco, sendo já bispo, pude administrar o sacramento
da Confirmação a jovens cujos pais conhecia já desde há tempo e que eu mesmo
havia batizado.
Essa é a razão pela qual eu não falo da Teologia da
Libertação de forma abstrata e teórica nem menos ideológica para bajular o
grupo eclesial progressista. De igual modo também não temo que isso possa ser
interpretado como falta de ortodoxia. A teologia de Gustavo Gutiérrez,
independente do ângulo a partir do qual se olha, é ortodoxa porque é
ortoprática e nos ensina o adequado agir cristão porque procede da verdadeira
fé.
Uma rápida leitura do livro Beber em seu próprio
poço² coloca de manifesto que a Teologia da Libertação se fundamenta em uma
profunda espiritualidade. Seu substrato é o seguimento de Cristo, o encontro
com Deus na oração, a participação na vida dos pobres e dos oprimidos, a
disposição para escutar seu grito pela liberdade e pelo esplendor dos filhos de
Deus; é participar da sua luta para acabar com a exploração e a opressão, de
sua ânsia pelo respeito aos direitos humanos e de sua exigência de participação
justa na vida cultural e política na democracia. Trata-se da experiência de que
não se é estranho no próprio país, mas que a Igreja e o Estado querem ser
abrigos e fiadores da liberdade espiritual e cívica. A meta é o início e o
acompanhamento de um processo dinâmico que quer libertar o homem de sua
dependência cultural e política.
Do mesmo modo que Gustavo com sua pessoa, seu
testemunho espiritual, seu compromisso com os pobres e suas magníficas
reflexões deu, na nossa época, um rosto à Teologia da Libertação, assim também
nos mostrou de maneira impressionante a pessoa de Bartolomé de las Casas que,
no século XVI e ao contrário de seu contemporâneo Colombo, não descobriu um
país e tomou posse dele para a Coroa espanhola, mas que descobriu a injusta
opressão e a humilhação da população indígena e se propôs a levar aos homens o
reino de Deus, no qual já não haverá senhores nem escravos, mas apenas irmãos e
irmãs com os mesmos direitos.
Las Casas chegou supostamente às Índias ocidentais,
o continente descoberto por Colombo que hoje chamamos de América, de
aventureiro e cavaleiro da fortuna. Da perspectiva do descobridor da América
tratava-se de territórios que podiam ser tomados como posse para a Coroa da
Espanha e cujas riquezas e habitantes estavam privados de todo direito e,
portanto, expostos à agressão da vontade ilimitada de enriquecimento. Em um
princípio também Las Casasesteve imerso nesse sistema de privação de liberdade
e de exploração. Mas, finalmente, reconheceu no rosto dos maltratados o rosto
de Jesus Cristo e assim se converteu em intercessor eloquente e defensor dos
povos oprimidos em sua pátria, a América. Com isso retornava ao sentido
original da missão cristã: Jesus enviou os seus discípulos para pregar a todos
os homens o Evangelho da salvação e da libertação. Neste sentido, missão como
encontro de pessoa a pessoa em nome de Jesus é estritamente o contrário de uma
forma apenas aparentemente religiosa de colonialismo e imperialismo. Não se
pode conquistar territórios para Cristo e subjugar os seus habitantes ao
domínio de um estado que se diga cristão. A pregação dos enviados em nome de
Cristo supõe antes poder adotar livremente a fé. Deste modo, cria-se uma rede
universal de discípulos de Cristo que, segundo sua vontade, constituem uma
comunidade de irmãs e irmãos e, portanto, a Igreja visível de Deus no mundo. A
este processo impulsionado pelo espírito de Pentecostes os homens acrescentam
suas raízes e sua identidade cultural e se deixam transformar pelo espírito de
Deus para uma identidade comum mais elevada. Deste modo, cresce o conhecimento
de que somos filhos de Deus, chamados a uma vida exemplar, destinados à
perfeição no futuro divino. E assim a Igreja pode ser em Cristo o sacramento da
salvação do mundo e o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade
de todo o gênero humano (ver Lumen Gentium 1).
Las Casas nomeia em sua brevíssima relação da
destruição das Índias ocidentais a verdadeira causa da tremenda injustiça que
os conquistadores espanhóis cometeram contra as pessoas que encontraram em sua
viagem de descobrimento.
Sobre aqueles que eram cristãos de nome, mas não
por sua conduta, Las Casas disse: "A única e verdadeira causa do
assassinato e da destruição dessa espantosa quantidade de pessoas inocentes nas
mãos de cristãos era exclusivamente apoderar-se de seu ouro” ³. Gustavo Gutiérrez formulou este caminho
libertador de Las Casas com o seguinte juízo: "Deus ou o ouro”⁴.
Este é o caminho rumo à libertação segundo nos
ensina Jesus no Evangelho: "Não se pode servir a dois senhores, a Deus e
ao dinheiro”, e em outro lugar especifica: "A raiz de todos os males é o
amor ao dinheiro” (ver Timóteo 6, 10).
Aquele em quem colocamos a nossa confiança, esse
realmente é o nosso Deus. Os cristãos do século XXI, mas também os humanistas,
se orgulham de ter deixado para trás o colonialismo e o imperialismo
eurocentristas. Contudo, na justa indignação diante das atrocidades perpetradas
na conquista da América, África e Índia e a humilhação da China, corremos
muitas vezes o perigo de acreditar, sentindo-nos moralmente seguros, de que no
século XVI nós teríamos estado do lado de Las Casas e contra os exploradores.
Evidentemente, as circunstâncias históricas de então não são sem mais
comparáveis com as do mundo globalizado atual. Não obstante, a alternativa
fundamental entre a opção pelo dinheiro e o poder, de um lado, e Deus e o amor,
do outro, se apresenta hoje também a cada pessoa em particular e tanto a todas
as comunidades e sociedades como a Estados e Alianças. Também hoje, continentes
inteiros, como a África e a América do Sul, são marginalizados. Uma pequena
parte da população mundial reparte entre si os recursos contribuindo deste modo
para a morte prematura de milhões de crianças e para que a maior parte da
população do mundo viva em circunstâncias desastrosas.
Continua...
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Notas:
²
GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber em seu próprio
poço. Itinerário espiritual de um povo. São Paulo: Loyola, 2000.
³
Em português, encontra-se no livro LAS CASAS,
Frei Bartolomeu de. Liberdade e Justiça para os Povos da América — Oito
Tratados Impressos em Sevilha em 1552. São Paulo: Paulus, 2010.
⁴ GUTIÉRREZ, Gustavo. Deus ou o ouro nas Índias.
Século XVI. São Paulo: Paulinas, 1993.
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Gerhard Ludwig Müller (nasc.
31 de Dezembro de 1947) é arcebispo
Católico e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, nomeado pelo
Papa Bento XVI, 02 de Julho de 2012).
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